É um dos lugares em que mais se demora para processar o tanto de informação – e diferença cultural. Sobretudo em função do fuso horário. São 12 horas a mais em relação ao Brasil, acrescidas das heroicas horas de voos. Com sorte, você chega à capital japonesa em 30 horas de voo – provavelmente, fazendo conexão em algum lugar no Oriente Médio ou na África – partindo de São Paulo. Desembarca-se em Tóquio com os olhos marejados de tanto avião, pernas inchadas, dor de cabeça. Tontura de sono. A experiência com a cidade é também aquela de lidar com as pessoas que nela circulam. E, diante de tamanho desdém e cansaço com que cheguei, resolvi, como a personagem de Blanche Dubois, em Um bonde chamado desejo, “depender da bondade de estranhos”. Peguei o metrô no aeroporto de Narita em direção à estação Asakusabashi, próximo ao “coração financeiro” de Tóquio. O trajeto é longo, dura quase duas horas, e, naturalmente, perdi-me. Já tinha lido relatos de viajantes no Japão que comentavam uma certa dificuldade em lidar com o gigantismo do metrô de Tóquio. Muitas linhas, muitas estações, vários trens passando por uma mesma estação.
Resultado: parei numa estação meio obscura em que não havia (ou eu não vi, meio zonzo da jet lag) o nome do destino no nosso alfabeto – apenas com as “letrinhas” japonesas. Sem me dar conta da gravidade da situação, tonto e cambaleante de sono, apenas estendi o papel impresso com o voucher do hotel em que eu iria me hospedar para o primeiro sujeito na estação de metrô – era perto das 22h. Parece que turistas perdidos no metrô de Tóquio são uma prática ligeiramente comum, porque o cidadão balbuciou umas palavras em japonês, como se estivesse me explicando como chegar, e eu apenas disse: “I don’t speak japanese, sorry!” – e devo ter feito uma expressão misto de cansaço e pânico que convenceu o interlocutor a desviar-se da sua rota e me acompanhar até o meu destino final. Silencioso, sério e olhando para baixo e para o seu celular – buscando informação no Google Maps, esse homem de quem não sei o nome, conduziu-me até a estação próxima ao meu hotel, ajudou-me com a mala e fez aquele ritual performático, inclinando o corpo para frente e juntando as mãos como que agradecendo. Fiquei constrangido com tamanha gentileza, acho que só disse “arigatô”, quando viu que eu estava seguro; sem cerimônias, se foi. Nem sequer olhou para trás. Vi no Facebook, quando cheguei, enfim, ao hotel, que, veja só, era Dia do Amigo.
O Nihonbashi Hotel, em que me hospedei, é um desses ambientes mistos: hospedagem econômica, estilo Ibis, e também “hotel cápsula”. Tóquio é uma das capitais mais caras do mundo (para morar e se hospedar), por isso, espaço é um bem precioso. Acrescente aí sua densidade populacional extremamente alta – de 14 mil pessoas por quilômetro quadrado – maior que Nova York e o dobro da densidade populacional de São Paulo. Ou seja, não se vive em Tóquio, espreme-se. Para economizar e viver uma experiência de interculturalidade ainda mais intensa, resolvi me hospedar numa cama cápsula. É estranho e sui generis, curioso e ligeiramente bizarro. As cápsulas são como “valas” na parede, bem no estilo de um cemitério (perdão a metáfora macabra, mas é a que me veio na hora), não tão estreitas (dá para se virar tranquilamente e até se sentar nela). As dimensões variam, mas essa em que eu fiquei tinha 2m30cm de profundidade por 1m50cm de altura. Achei que fosse menor e mais claustrofóbica. Porém não sou parâmetro para nada: durmo em qualquer lugar, sem luxo.
Hotéis cápsulas são uma verdadeira instituição de Tóquio. Há vários, sempre perto de grandes estações de metrô, em geral, usados pelos próprios japoneses para pernoitar – quando estendem no happy hour, na balada ou no trabalho, o metrô já fechou e o preço para ir para casa de táxi é muito alto. Adendo: o metrô de Tóquio fecha cedo, ônibus não são uma opção viável (trânsito intenso, ruas estreitas) e táxi pode custar algo em torno de 5.000 yens para um subúrbio (algo em torno de R$ 250). Logo, por pouco mais de 2.000 yens (o equivalente a R$ 70), você dorme numa cápsula, com direito a sauna, ofurô e sala de banhos para relaxar. Há uma tradição no Japão dos onsen, que são os banhos com águas termais comuns no interior, em meio a jardins e imagens tranquilizadoras para a prática da meditação. Naturalmente, numa cidade grande como Tóquio, esses onsen viram ambientes repletos de piscinas de águas mornas, saunas e imagens do Monte Fuji nas paredes, evocando uma ideia de paz e tranquilidade. Confesso que, depois de passar o dia batendo perna por Tóquio, não tem nada mais convidativo que um banho num onsen urbano – que quase sempre está localizado dentro de um hotel cápsula.
CULTURA OTAKU
Parte do fascínio de Tóquio e do seu poder de atrair turistas passa pelo que se convencionou chamar de “cultura otaku”, ou seja, o conjunto de práticas e afetos envolvendo fãs de anime (animação japonesa), mangá (história em quadrinhos), posokon (computadores e acessórios digitais), gemu (games e jogos digitais), tetsudo (miniaturas e brinquedos), gunji (armas e artefatos militares) e jidosha otaku (carros), entre outros. O epicentro dessa subcultura está no Bairro de Akihabara, vizinhança repleta de lojas de eletrônicos, sex shops e livrarias. Entre a estação de metrô Akihabara e Ueno, forma-se uma espécie de “corredor” por onde circulam japoneses e turistas, em meio a letreiros luminosos de neon e ruas estreitas apinhadas de gente, dando a sensação de que você está dentro de um cenário de algum mangá. Não hesite em fazer turismo em lojas de tecnologia. Em Tóquio, elas são verdadeiros templos para fãs de artefatos tecnológicos, gadgets e afins.
Uma das maiores lojas é a Yodobashi-Akiba, que conta com 10 andares em que é possível comprar baterias e computadores até roupas e capacetes simuladores de realidade virtual. Relógios conectados a celulares e os óculos que “registram” o real por uma “lente” ligada a centros de localização também fazem parte do cardápio. A região de Akihabara é conhecida pela infinidade de coisas úteis e inúteis em termos de tecnologias. Também é um ponto de referência para comprar suvenires e mangás. “É uma região que recebeu incentivo para instalação do comércio popular e ficou mais pop no ano de 1997, quando o anime Neon Genesis Evangelion foi exibido nos cinemas e disseminou Akihabara como uma área cool”, afima o pesquisador Morikawa Kaichiro, da Meiji University, que investiga as cenas urbanas de Tóquio ligadas à cultura otaku. O curioso em Akihabara, para além do mercado formal, é um certo “mercado negro”, onde são comercializados robôs e partes deles – alguns para fins, acredite, sexuais.
Diante de toda febre em torno do jogo Pokémon Go, naturalmente, há áreas em Tóquio inteiramente dedicadas a eles. Os Pokémon Centers são lojas especializadas para os poke fãs, localizadas em grandes centros de compras ou em estações de metrô e trem. Essas lojas têm tudo o que possa existir na face da terra em relação a Pokémon: games, brinquedos, pelúcias e bonecos do Pikachu (e dos outros Pokémons também); figurinhas, acessórios personalizados (mouse, canetas, bijuterias, pijamas, pantufas), chocolates e cookies e, finalmente, as Pokebolas. Além da infinidade de opções de compras, também ficam espalhados pela loja joguinhos sobre Pokémons, para se criar uma experiência imersiva na sua cultura.
Caminhando pelas ruas de Akihabara e vizinhanças, depara-se, inevitavelmente, com grandes centros de jogos, estilo Game Station, muitos deles abertos 24 horas, com jovens varando a madrugada jogando, bebendo e fumando – em alguns locais de Tóquio é possível fumar em ambiente fechado. Procure pelo Tokyo Joypolis, um gigantesco parque de diversões coberto que tem até montanha-russa; mas o que surpreende mesmo é a variedade e modernidade dos simuladores, games e cinemas 3D. Por falar em cinema, a experiência de ver animes (filmes de animação) em Tóquio é singular. Muitos deles são exibidos em salas com legendas em inglês, coreano ou mandarim (em função do intenso número de turistas). Foi no Toho Cinemas, a maior cadeia de exibição do Japão, que assisti a One Piece of Gold com legendas em inglês, numa sessão às 2h40 da madrugada. Detalhe: alguns cinemas seguem programação por toda madrugada e manhã, e não somente à tarde e à noite como no Brasil.
Parte da cultura otaku também está ligada aos cosplays, jovens que se vestem de forma extravagante, com perucas azuis, rosa, em geral, reencenando, no cotidiano, os personagens presentes nos mangás e animes. Para vê-los, dirija-se para a região chamada Harajuku e circule pela Takeshita Dori, uma rua repleta de lojas e camelôs, algodão-doce roxo e pipocas verde-limão, coma crepe com a carinha da Hello Kitty desenhada e picolés com frutas “cravadas” no próprio gelo. É em Harajuku que a Prefeitura de Tóquio fez divisórias de ruas, para indicar trechos em obras, com a Hello Kitty estampada. Por se tratarem de jovens, em sua maioria estudantes, deixe para circular por Harajuku e redondezas aos sábados e domingos – quando eles não estão estudando e se dedicam a “dar close” nas ruas. Perto da Takeshita Dori, está o Yoyogi Park, um parque público em que a juventude japonesa que almeja o estrelato em alguma banda de J-pop (a música pop do Japão) ensaia cantando e dançando, a céu aberto, sempre aos domingos. Na grama, nas calçadas e nos bancos do Yoyogi ouvem-se cantos em corais, gritos que simulam divas pop e jovens dançando como se estivessem em programas de reality show musicais.
OLIMPÍADAS
Embora eu tenha me perdido ao chegar em Tóquio, é preciso destacar o esforço das autoridades nipônicas em “traduzir” toda a linguagem do japonês para o alfabeto ocidental, sobretudo em função das Olimpíadas 2020. Circulando pelos principais bairros da capital, já é possível ver outdoors e convocações para os Jogos Olímpicos. Junto à Tokyo Tower, por exemplo, a “Torre Eiffel” japonesa, estão sendo vendidos até suvenires olímpicos. É próximo a essa região que estão também os bairros de Shinjuku e Shibuia – o primeiro, famoso pelos letreiros luminosos que inspiraram Ridley Scott a criar sua metrópole futurista em Blade Runner; o segundo ambientou parte das cenas do filme Encontros e desencontros, de Sofia Coppola.
Circulando por essas redondezas, você vai passar pelo Cruzamento Shibuia, emblemático, que frequentemente aparece em propagandas e filmes, com milhares de executivos e “business japoneses” atravessando pra lá e pra cá. É perto dali, também, que está o Park Hyatt Tokyo Hotel, cenário em que Scarlett Johansson e Bill Murray estão hospedados na trama de Encontros e desencontros. Também nessas redondezas você pode entrar em algum karaokê bar, famoso no mesmo filme de Sofia Coppola, cujo costume, como atesta o pesquisador Morikawa Kaichiro, remete às competições entre cantores amadores no canal de TV NHK, na década de 1940, no icônico programa Nodo Jiman.
Caminhar por essas regiões de Tóquio também evoca uma certa dose de melancolia e solidão. A maneira com que circulam, olhando para o celular, a lógica monocromática, roupas pretas, brancas e cinzas, a cidade que parece devorar os habitantes. A solidão presente até nos restaurantes, muitos deles com assentos individuais, com pessoas sozinhas comendo nos balcões, conversando, provavelmente via whatsapp, diante de um bowl de lamen ou um udon (as massas que são comidas em meio a um caldo, como uma sopa), o paradoxo do excesso de cores das mascotes, dos animes e dos mangás e as cores sóbrias das pessoas que se vestem de forma excessivamente padronizada. Tóquio parece ser o futuro mesmo, utópico e distópico, que quem visita tenta se apegar ao presente. Há uma inevitabilidade em querer reter, entender a subjetividade japonesa e uma certa impossibilidade cultural de compreendê-la de fato. Enquanto isso, o monstro Godzilla está agarrado num prédio para divulgar o novo filme, um jovem maneja o celular em busca de mais um Pokémon e rostos solitários se misturam a uma multidão colorida, porém cinza. Esse não parece ser o resumo do que se chamamos descuidadamente de emoções humanas?