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Em busca da Terra Prometida

O acirramento dos fluxos migratórios em todo mundo, nos últimos anos, aumenta os pedidos de refúgio no Brasil, que ainda é idealizado por muitos estrangeiros como um Eldorado

TEXTO Suzana Velasco

01 de Novembro de 2016

No Rio de Janeiro, onde esta reportagem foi realizada, a República do Congo é a principal fonte de solicitantes de refúgio

No Rio de Janeiro, onde esta reportagem foi realizada, a República do Congo é a principal fonte de solicitantes de refúgio

foto Gilvan Barreto

[conteúdo da ed. 191 | novembro de 2016]

A despensa de um navio foi o abrigo de Mariama Bah em sua travessia pelo Oceano Atlântico. Escondida na cozinha, ela deixou Gâmbia, país de 1,9 milhão de habitantes na África Ocidental, sem saber aonde nem quando chegaria. Depois de duas, talvez três semanas, descobriu que viajara para o Rio de Janeiro. Mariama veio apenas com seus desejos e o inglês para se comunicar. Seus documentos e roupas ficaram para trás, junto com um casamento forçado e a filha, Maimuna.

Quando criança, Mariama vivia com os avós em Brufut. Em uma de suas férias escolares, visitou a mãe e o padrasto na vila onde viviam e não retornou mais. A criança de 9 anos estava prometida para um primo de sua mãe no Senegal, país vizinho, e por isso não voltaria às aulas. Casou-se aos 13, teve uma filha aos 14. Aos 27 anos, ela sabe que em seu país, onde cerca de 60% da população é de analfabetos, muitos pais já determinam o marido da filha quando ela é bebê. Mas nada lhe foi dito ou justificado a esse respeito quando era criança.

“Eu era a melhor aluna, queria ser doutora. Era extrovertida, participava de todas as atividades na escola. Não entendia por que não podia mais estudar”, conta, em português fluente. “Sou da etnia fula, em que a educação não é muito valorizada. As oportunidades existem para os homens, eles decidem na nossa cultura. Se uma mulher não é casada, não tem valor. Eu não sabia nada quando me casei. Achava que, se parasse de ter relações, a gravidez sumiria.”

Mariama precisou travar uma “luta corporal” com o marido para fugir de casa. Deixou a filha de um ano com a tia e, de volta a Gâmbia, foi acolhida por um tio. Voltou à escola, mas ela e sua família passaram a ser estigmatizadas. “Eu era vista como uma pessoa ruim, má influência. Passei muitas humilhações”, diz Mariama, cuja mãe só se casou de novo porque o pai foi assassinado quanto ela tinha 2 anos. “Em Gâmbia, se a mulher tem filho, a vida dela acaba. Tinha o sonho de sair, porque a vida que eu desejava não bate com nossos costumes. Quero ter minha própria história.”

Um pescador em Brufut e um estranho no Rio de Janeiro a ajudaram a começar a traçar sua história. O primeiro a levou até o navio de rumo desconhecido. O segundo lhe deu o endereço da Cáritas Arquidiocesana, no Maracanã, zona norte do Rio, onde recebeu assistência jurídica para provar o contexto de um país onde a violência contra a mulher é estrutural – e assim conseguir o status de refugiada. Criado em 1976 para ajudar latino-americanos que fugiam de perseguição política – e passavam por aqui em busca de um terceiro país de acolhida, já que o Brasil também estava sob ditadura –, o serviço vinculado à Igreja Católica é um dos pilares do sistema de refúgio no Brasil.

CRESCIMENTO
Mariama é hoje um dos 8.863 refugiados e refugiadas reconhecidos no país, segundo os últimos dados oficiais do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), de abril de 2016. É menos de 0,005% da população brasileira – ou 0,013% do total de refugiados no mundo, que somava 65,3 milhões ao fim de 2015 –, mas representa um aumento de 127% em relação a 2010, quando havia 3.904 reconhecidos. A tendência é que esse número tenha uma taxa de crescimento ainda maior nos próximos anos, já que o número de solicitações de refúgio aumentou 2.868% no Brasil entre 2010 e 2015, passando de 966 para 28.670.

Além da assistência jurídica, na Cáritas, Mariama teve aulas de português, dadas por voluntários duas vezes por semana. Nesses dias, os refugiados e solicitantes de refúgio ganham R$ 12 para o deslocamento, já que costumam morar longe, com transporte precário. Ela recebeu R$ 300 para os primeiros dias no Rio, mais nada. Dormiu na rua por uma semana e morou três meses de favor em Copacabana até conseguir dividir com outros três refugiados o aluguel de R$ 350 num apartamento em Nova Iguaçu, na Região Metropolitana do Rio. Há dois meses, o espaço tem uma nova moradora: Maimuna, de 13 anos.

Depois de 10 anos sem se ver, mãe e filha reencontraram-se no Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro. Para que Maimuna se sentisse mais acolhida, Mariama esperou-a com véu islâmico, que aos poucos deixou de usar no Rio de Janeiro. “Com o tempo a gente aprende a separar religião de costumes. Na minha cultura, há mulheres que passam por circuncisão. As que não fazem são menos religiosas? – questiona.” O que fui ensinada pelo Corão é ter muito amor. Mas somos muçulmanas, eu usava o véu, e minha filha usa. Quis que ela ficasse confortável.”

Com a passagem aérea doada por uma professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Maimuna saiu de Gâmbia para que pudesse, como a mãe, continuar a estudar. “Não queria que acontecesse com a minha filha o que aconteceu comigo”. Hoje, as duas têm aulas numa escola pública de Nova Iguaçu. A filha quer ser médica, e pergunta se é difícil fazer universidade nos Estados Unidos. A mãe pensa em trocar o sonho da Medicina por Relações Internacionais, para trabalhar em organizações de direitos das mulheres, quem sabe em Gâmbia.

Mariama trabalhou num salão de beleza por um ano, mas o espaço fechou. Continuou fazendo tranças africanas por conta própria, participou de um grupo de teatro e até atuou num curta-metragem, Siyanda, que ganhou prêmio no festival de cinema 72Horas Rio. “Eu me senti incluída, minha autoestima subiu. Sempre lutei sozinha, e aqui recebi muita solidariedade. Voltei a sonhar. Hoje, eu digo ‘quando alguém achar que sua luta acabou, lute’.”

Desde agosto, ela percorre 44 quilômetros até Botafogo, na Zona Sul carioca, para dar aulas de inglês – língua oficial de Gâmbia, ex-colônia britânica. Ela é professora do Abraço Cultural, que forma refugiados para ensinar árabe, francês, espanhol e inglês. Criado em 2015, em São Paulo, e no Rio desde 2016, o projeto nasceu da plataforma Atados, que liga organizações e voluntários, e ganhou vida própria. Hoje tem 13 professores em São Paulo e nove no Rio, e todo mês organiza aulas culturais, em que alunos e professores de todas as turmas se encontram. “A ideia é não ser só um curso de idiomas ou uma causa pontual. A língua é algo que eles já trazem consigo e um meio de transmitir cultura”, diz Tatiana Rodrigues, que coordena o Abraço no Rio.

Além de Mariama, o projeto tem, no Rio, professores sírios, venezuelanos e congoleses, como Audrey Mandala, que ensina francês. Em janeiro de 2015, ele ficou preso 10 dias em Kinshasa, capital da República Democrática do Congo, porque protestava contra o governo de Joseph Kabila, no poder desde 2001. Com medo, fez um passaporte falso, pegou um avião e foi recebido pelo irmão, que vive no Rio há 24 anos. Audrey estudava ciência da computação no Congo, mas, depois de começar a dar aulas, quer ser professor e escritor, e conseguiu uma bolsa de formação pedagógica no Consulado da França.

ORIGENS
No Estado do Rio de Janeiro, a República Democrática do Congo é hoje a principal origem dos solicitantes de refúgio – em 2015, vieram de lá quase 40% dos novos pedidos, e em 2016 o percentual cresceu para 54%, com 199 novas entradas até 21 de setembro. A comunidade congolesa no Rio, no entanto, começou a se formar já na década de 1990, quando o país ainda se chamava Zaire.

Brás de Pina, na zona norte, tem a principal concentração de congoleses na cidade, reunindo desde os primeiros que deixaram o Congo fugindo da guerra civil, até os mais novos, que saem sobretudo por perseguição política e violação de direitos humanos. Na varanda da Cáritas, sempre repleta de congoleses, homens costumam relatar casos políticos, e as mulheres, de ameaças ou violência sexual, num país onde o estupro é arma de guerra. Elas muitas vezes decidem sair do país depois que os maridos somem ou morrem.

“Kabila só tinha direito a dois mandatos, mas continuou no poder e quis alterar a Constituição. Fizemos uma organização pacífica no dia 19 de janeiro de 2015, mas o governo reagiu de forma violenta. Mais de 200 pessoas morreram”, conta Audrey, 28 anos, que, apesar de ter sido preso político, estranhou a violência no Rio de Janeiro. “O país continua em guerra no Leste, mas, na capital, um tiro paralisa tudo, as escolas e lojas fecham. Violência só existe quando há problemas políticos.”

Audrey vê uma proximidade entre as duas culturas, mas tem episódios de racismo para contar – pessoas que mudam de lugar no ônibus, que apertam o passo e a bolsa ao passarem na rua. “O carioca é um povo acolhedor. Mas também há muito preconceito aqui porque sou africano. Sinto que sou diferente. Não vejo tanto preconceito com os sírios e venezuelanos. O africano é um povo que apanha.”

No entanto, ele também teve que lidar com seus próprios preconceitos para viver no Rio. “O Brasil é um país muito mais liberal do que o meu. Lá não há liberdade para homossexuais, por exemplo. Aqui, eu consegui entender que eles existem, porque no Congo eu só tinha visto um homossexual em documentário. Eu não aceitava, foi um choque muito forte. Eu não odeio como antes. Acho que é pecado, mas guardo minha opinião para mim. A minha forma de tratar mudou. Hoje continuo sendo contra, mas também sou contra a homofobia.”

Audrey se casou no Rio com uma congolesa, com quem já se avistara em sua faculdade no Congo, e se tornou um dos pastores da “igreja africana” de Brás de Pina. Na missa de domingo, sou a única branca no local. Negros e negras de ternos ajustados e vestidos com tecidos africanos se levantam das cadeiras de plástico e cantam e dançam canções em lingala, idioma falado em grande parte do país. Há música ao vivo no culto da Assembleia de Deus Betesda Internacional, a igreja dos congoleses de Brás de Pina.

A maior parte da missa é em francês, a língua oficial da República Democrática do Congo, e traduzida com fluência para o português por Julia Salu, de 29 anos, há dois no Rio. Ela deixou o país depois que sua casa em Beni, uma das regiões mais afetadas pela guerra civil, no Leste, foi invadida e rebeldes levaram seus bens e seu marido. Durante a invasão, sua irmã conseguiu fugir com uma de suas filhas. Julia foi para a Uganda, com medo de ser morta ou violentada. Deixou casa própria, carro e o emprego de secretária. Num campo de refugiados, falaram-lhe sobre os benefícios de viver na Europa e sobre os perigos da “grande água” que teria que atravessar. Também foi em Uganda onde ela ouviu falar da Cáritas pela primeira vez. Com outros três filhos e grávida, decidiu-se pelo Rio.

REDE DE APOIO
Julia ficou duas semanas hospedada por congoleses em Cinco Bocas, favela em Brás de Pina, apesar de não conhecê-los. Essa é a principal forma de acolhimento dos recém-chegados na cidade. “Mais do que a rede pública, é com a rede de apoio criada pelos imigrantes que trabalhamos. Ela evita situações de extrema vulnerabilidade. Um congolês nunca fica na rua, porque alguém o acolhe”, afirma Aline Thuller, coordenadora do Programa de Atendimento aos Refugiados da Cáritas.

“Cheguei a Cinco Bocas e via homens armados como no Congo. Fiquei com medo e me mudei”, conta ela, que hoje trabalha numa pizzaria. Julia alugou uma casa em Jardim Gramacho – a mais recente concentração de congoleses no Estado do Rio, a 35km da capital – com R$ 400 dos R$ 660 mensais que recebeu da Cáritas durante um ano. A entidade segue critérios do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), dando prioridade na ajuda financeira a mulheres sozinhas e com filhos e idosos. Com a escassez de recursos e o aumento da demanda, agora é raro que esse apoio se estenda por mais de três meses.

Os abrigos municipais são utilizados apenas em último caso, já que não existe preparo para esse tipo de atendimento. Há ainda famílias que recebem os refugiados de graça, e a Cáritas eventualmente paga até três diárias num hostel. Desde o ano passado, porém, é a Igreja Matriz de São João Batista, em Botafogo, Zona Sul, o principal alojamento dos solicitantes de refúgio recém-chegados e sem contatos no Rio, com 40 vagas em quartos coletivos. Grande parte deles é de sírios, como Ahmad Asaad, 37 anos.

Ahmad partiu de Idlib, no Noroeste da Síria, há quatro anos, quando a região já era tomada por ataques aéreos e não tinha eletricidade ou água. Passou pela Turquia e vivia no Cairo com os pais, duas irmãs e um irmão, deixando outras quatro irmãs na Síria, com suas famílias. Ahmad descobriu na internet que as Olimpíadas do Rio precisavam de voluntários, inscreveu-se, foi aceito e comprou a passagem com o dinheiro que guardava para sair da capital do Egito, onde trabalhou num shopping. “Ligava todo dia para o Acnur, mas não tive ajuda. Tentei revalidar o diploma, fiz o exame, mas recusaram. Ninguém nos ajudou no Cairo.”

Vestido com o uniforme oficial das Olimpíadas, ele tira da mochila um crachá dos Jogos, que leva como uma espécie de identidade de honra: Ahmad Asaad, médico voluntário para atletas. Após o fim das Paraolimpíadas, não tinha mais hospedagem e se mudou para a paróquia em Botafogo. Além de ir às aulas de português na Cáritas, Ahmad estuda pela internet à noite, enquanto os outros solicitantes de refúgio dormem, porque tem pressa em aprender.

“Minha mãe e irmãs conseguiram ir para o Canadá e me enviaram US$ 200. Preciso de trabalho, mas revalidar o diploma de médico é difícil, ainda não sei a língua. Eu preciso conseguir mandar dinheiro para a minha família, não ela para mim”, diz Ahmad, em inglês, nas mãos um folheto do Sistema Único de Saúde, em que procura onde tratar os dentes. “Tenho muitas saudades, mas não quero voltar, porque nada será como antes na Síria. É como um sonho estar vivo.”

Ahmad deseja exercer a medicina novamente, mas, mesmo que consiga reconhecer o diploma no Brasil, sabe que o processo será longo. Em 2015, o Conare iniciou conversas com a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) para facilitar o processo de revalidação de diplomas. Na mesma época, o governo federal fez um convênio com o Sebrae, oferecendo 250 vagas em curso de empreendedorismo em São Paulo, e criou o Pronatec português, com 400 vagas em curso de língua em Rio e São Paulo e 330 vagas em curso da prefeitura da capital paulista.

As primeiras turmas se encerraram e não há previsão que sejam continuadas no governo Michel Temer. O presidente do Conare, Gustavo Marrone, afirmou, por e-mail, que “projetos que já estavam previamente acordados e já estavam acontecendo foram normalmente finalizados” e que haverá novos encontros com universidades, “assim que for possível ajustar as agendas para ter momentos para discussão com as principais lideranças nesse tema”.

TRABALHO LEGAL
Enquanto o diploma não é reconhecido, Ahmad está disposto a trabalhar em qualquer área, e foi encaminhado pela Cáritas para o Centro Público de Emprego, Trabalho e Renda mais próximo, que este ano se tornou um local de referência para atender refugiados. Todo solicitante de refúgio recebe um protocolo de identificação da Polícia Federal e tem direito a tirar uma carteira de trabalho provisória, até que saia a decisão sobre seu pedido.

Ainda é difícil, porém, que solicitantes de refúgio consigam um emprego formal. “Para que serve um protocolo que precisa ser renovado a cada seis meses? Nenhuma empresa vai querer contratar”, questiona o técnico agropecuário colombiano Jairo Alfonso Diaz Laverde, 34 anos. Em cinco anos no Brasil, Jairo teve um único emprego com carteira assinada, por quatro meses. Mesmo depois de conseguir o reconhecimento do refúgio, diz ter sido rejeitado em empregos ao mostrar a identificação. “Os patrões olhavam o nome ‘refugiado’ e me recusavam. Aqui, acham que sou mafioso, guerrilheiro ou paramilitar.” Por pressão dos próprios refugiados, a classificação foi retirada das carteiras de trabalho.

Jairo e um amigo cruzaram a fronteira entre Letícia, no Sul da Colômbia, e Tabatinga, no Amazonas, em 2011. Conseguiram um visto de três meses e navegaram três dias e meio pelo Rio Solimões, até Manaus. A ideia era conseguir trabalho e ficar. “Tinha R$ 40 e só falava ‘obrigado’ e ‘Coca-Cola’. Meu amigo disse que não tínhamos dinheiro a um homem que conhecemos no barco, e ele nos deixou US$ 100. Fomos para um buraco de R$ 30. No dia seguinte, batemos nas casas e nos oferecemos para cortar a grama. Muitos recusaram, mas uma senhora aceitou. Foi nosso primeiro trampo”, diz Jairo, com a fala já repleta de gírias.

De trampo em trampo, Jairo fez jardinagem, pintou santos em igrejas, foi garçom e reformou quiosques perto do Teatro Amazonas. Uma mulher para quem pintou casas pediu informações na Polícia Federal, e lá ele soube que sua história cabia numa solicitação de refúgio. A família de Jairo é do norte do Valle del Calca, área rural onde um cartel de narcotráfico atuou no fim da década de 1990 e nos anos 2000, junto com paramilitares. O pai e o padastro de Jairo foram assassinados. “Os paramilitares ainda são ativos na região, saem para recrutar jovens nas portas dos colégios. Fazia faculdade de Marketing em Bogotá, mas a Colômbia é pequena, não me sentia seguro.”

Jairo saiu da capital com um filho e a mulher grávida para viver em Cali e, quando a filha mais nova completou dois anos, decidiu emigrar, com a esperança de levar a família depois. “O Brasil era então o país com a melhor perspectiva econômica da região.” Depois de um ano e nove meses em Manaus, ele ainda esperava pela entrevista do Conare, agora junto com um dos irmãos, que chegara um ano antes. “A Polícia Federal disse que havia vários processos vinculados a meu sobrenome, por isso a demora para investigar a minha família.”

Aconselhados a se mudarem para o Rio de Janeiro, os dois viajaram e, dois meses depois, já tinham o Registro Nacional de Estrangeiro. Trabalharam sem salário num mercado de verduras, em troca de comida e um galpão para dormir. “Aqui é muito comum passarem a perna em estrangeiros”, diz ele, que vê os estereótipos contra colombianos se repetirem. “A mãe de uma brasileira foi contra nosso namoro, outra namorada achava que eu era fugitivo. O primeiro contato com um brasileiro costuma ser uma piada sobre Pablo Escobar. Mas o Brasil foi bom comigo.”

Jairo e a mulher se separaram e ele, sem poder voltar à Colômbia, devido ao status de refugiado, nunca mais viu os filhos – além dos dois menores, sua filha mais velha, de 16 anos, mora com a avó. Seu irmão mais novo chegou em setembro, também para pedir refúgio. Os três irmãos e a mulher de um deles dividem uma quitinete, pela qual pagam R$ 100 por semana. Juntos, vendem salada de frutas nas ruas do Centro. “Quando cheguei, o Brasil estava bem, agora é mais difícil conseguir trabalho, e o Rio de Janeiro é caro. Precisamos de dinheiro para comprar um freezer e investir em comida natural”, diz, sem lamento. “Você gosta de rap? Tem uma música do Escuadrón Patriota que diz ‘hoje, que pensas que é o pior dia da tua vida, é o melhor para mudar as coisas’. Se a gente está vivo, tem a oportunidade de fazer tudo de novo.”

Os colombianos são hoje a nacionalidade com o terceiro maior número de refugiados no Brasil, com 1.100 reconhecidos, depois de sírios (2.298) e angolanos (1.420), e seguidos pelos congoleses (968). No entanto, eles são também o grupo com a maior taxa acumulada de recusa de seus pedidos de refúgio, ao lado de nacionais de Romênia e Angola. Até abril de 2016, o país acumulava 6.817 indeferimentos de pedidos de refúgio. “Mesmo em países como o Congo, há dificuldade se ele não provar que veio de uma região de grave situação de guerra, como o Beni, ou se o colombiano não provar que está numa área das FARC”, afirma a coordenadora do Programa de Assistência aos Refugiados da Cáritas.

ANGOLANOS
No caso dos angolanos, uma orientação do Acnur definiu, em 2012, que não havia mais razões para o refúgio, devido ao fim da guerra civil, por isso, muitos dos novos pedidos têm sido recusados. Após essa decisão, grande parte dos angolanos que já estava no Brasil recebeu o visto de permanência – daí a discrepância entre os dados do Conare e da Cáritas, que só no Estado do Rio registra 2.311 angolanos como refugiados, 56,2% do total de reconhecidos na região.

Na favela da Maré, que abriga a maior comunidade de angolanos no Rio, um relato se repete. Eles viam o Brasil nas novelas e aqui conheceram outro país. “Meu irmão já morava na Maré, mas não me contou nada, só falou ‘pode vir’. Cheguei à noite. No dia seguinte, saí às 5h para trabalhar com ele numa obra e vi a primeira morte, num tiroteio. Ele me falou que era assim mesmo. Fui me acostumando, e gostei. Daqui, só saio para o caixão”, diz Manuel Maria da Costa Neto, 39 anos, que se casou quatro vezes no Brasil e tem cinco filhos.

Ele deixou o país em 1996 porque não queria servir na guerra, ficou sem documentos no Brasil e se beneficiou da anistia dada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso a todos os imigrantes que estavam em situação irregular no país até a sanção da Lei do Refúgio, em 1998. A medida beneficiou, sobretudo, angolanos que chegavam desde o início dos anos 1990, com o acirramento da guerra civil em Angola.

Grande parte dos primeiros refugiados angolanos sobreviveu enviando produtos para o mercado Roque Santeiro, batizado em homenagem à novela brasileira em Luanda, capital de Angola. Emiltiano da Silva, 42 anos, chegou em 1998 para pedir refúgio, e mandava até 10 malas por meio de uma transportadora. Sua mulher ficara em Luanda e vendia roupas, colchas, sapatos e sandálias Havaianas, populares entre os angolanos. Quando a guerra acabou, em 2002, o lucro caiu com a entrada de produtos chineses e tailandeses e com a alta do dólar. “Comprava na Rua da Alfândega e ganhava o dobro. Hoje, para tirar 20% é difícil”, diz.

Entre 1992 e 1997, Emiltiano foi agente de ordem pública na tropa especial da polícia, segundo ele uma espécie de Batalhão de Operações Policiais Especiais (Bope) de Angola. “Vi colegas mortos, mutilados. O Brasil tinha a facilidade da língua em comum, e um cunhado e concunhado meus já residiam aqui. Primeiro viveram em Copacabana e no Flamengo, mas não puderam mais pagar e foram para a Maré. Quando vim de Angola, eles já estavam na favela. Vim com visto de turista e pedi refúgio. Depois de cinco anos, tinha a permanência.”

Casado, com três filhos, Emiltiano queria ficar perto da família e ter estabilidade, mas o comércio em Roque Santeiro era sua única fonte de renda, por isso a mulher ficou em Luanda e só veio para o Rio há seis anos, quando os negócios pioraram, e trabalha em casa como cabeleireira. Emiltiano teve apenas um emprego com carteira assinada, por seis meses, em 18 anos no Brasil, como ajudante de obra. Começou a fazer uma previdência privada, mas precisou usar o dinheiro. “Eu não contava que ia sair de Angola para ficar onde estou. Só pensava que era o mar de rosas que passa na novela. Houve um retrocesso nos meus projetos, por isso comecei a investir no comércio em Angola, queria voltar para lá.”

Emiltiano fez serviços administrativos, foi pedreiro, manobrista e motorista e hoje faz trabalhos para uma empresa de transporte. Há um ano, ele criou a Associação de Angolanos no Estado do Rio de Janeiro, para unir a comunidade e lutar por melhorias. Ela ainda está em processo para ser reconhecida oficialmente como associação, mas, na Maré, Emiltiano já é uma espécie de representante comunitário. Ele conhece todos que se reúnem no cruzamento da favela reconhecido como Adega dos Angolanos.

No bar ML, os angolanos Macanda e Lica servem comidas típicas de Angola, como mufete, com feijão e banana da terra, e moamba de ginguba, um prato com frango e amendoim. Nos fins de semana, a novela na televisão dá lugar ao som da kizomba. Nas paredes estão pintadas a bandeira angolana e uma palanca negra, animal importante na mitologia africana. O balcão ostenta um troféu do campeonato de futebol dos imigrantes de 2008, realizado no Aterro do Flamengo, e recebido por Domingos Martins Neto, o Macanda, 39 anos.

Domingos saiu de Luanda em 2000, quando os guerrilheiros se aproximavam da capital, e ficou hospedado na casa de amigos da Maré, antes de conseguir um emprego numa rede de fast food. “Em Luanda, não via pessoas andando na rua com arma de fogo como aqui. Aos poucos nos habituamos”, conta ele, que teve duas filhas com uma brasileira antes de conhecer Lica, e diz nunca ter sentido racismo no país. “O Brasil é maravilhoso. Só tenho a agradecer.”

Ao lado do bar, Manuela Domingos da Conceição, 42, faz penteados de estilo africano no salão de beleza Família Unida, que abriu em 2011. Ela veio para o Brasil em 1999, depois que o marido, irregular no Rio, foi anistiado em 1998. Os quatro filhos ficaram em Luanda até a mãe se adaptar. “Nunca tinha ouvido falar em favela, não sabia que o Rio tinha morros nem troca de tiros. Também não sabia que havia tanto negro, achava que aqui era a terra de branco que vemos nas novelas. A gente cresceu aprendendo que país racista era Portugal. Mas o Brasil também é. Em lojas já me seguiram ou pediram para eu abrir a bolsa”, conta ela, que já trabalhou como empregada em outros salões e como faxineira de hospital.

Mesmo com todas as surpresas e dificuldades, os angolanos na Maré ainda acham que têm melhores oportunidades no Brasil. Não precisam pagar para conseguir vaga na escola pública – “não queria contar isso, mas em Luanda tínhamos que dar propina”, diz Emiltiano. Também podem fazer cursos técnicos a preços mais baratos. Sentem saudades dos parentes que deixaram, mas trouxeram ou formaram famílias, adaptaram-se a uma nova rotina, criaram suas comunidades, fincaram suas raízes no Rio de Janeiro, na favela da Maré, na Adega dos Angolanos. Quem sabe um dia seus filhos brasileiros entrem em outros navios desconhecidos, e cruzem novamente o Oceano Atlântico.

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