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Um outro olhar sobre o impeachment

Cineastas brasileiras acompanham o processo de deposição de Dilma Rousseff e produzem obras para refletir sobre o atual cenário político do país

TEXTO Luciana Veras

01 de Outubro de 2016

Para a cineasta pernambucana Déa Ferraz, documentário é ferramenta de reflexão

Para a cineasta pernambucana Déa Ferraz, documentário é ferramenta de reflexão

Foto Trago Boa Notícia/divulgação

[conteúdo da ed. 190 | novembro de 2016]

Na manhã da segunda-feira, 29 de agosto de 2016, enquanto a então primeira mulher eleita para a presidência do Brasil apresentava sua defesa ante a denúncia de que havia cometido o crime das pedaladas fiscais em 2015, havia dezenas, centenas até, de câmeras no plenário do Senado, em Brasília. A maioria delas apontava para uma senhora de 68 anos, eleita em 2010 e reeleita quatro anos depois com mais de 54 milhões de votos; eram cinegrafistas de emissoras de televisão, ávidos para registrar os cerca de 45 minutos do seu discurso. Havia, contudo, outras lentes que miravam a plateia, composta na sua maioria pelos homens engravatados que, assim como Dilma, haviam sido eleitos pelo voto direto em 2014. Por trás das câmeras, mulheres cineastas e o intuito de documentar o controverso rito de impeachment de Dilma Rousseff.

Dois dias depois, quando 61 senadores votaram pela destituição da presidenta, chegava ao fim a trajetória dela como sucessora de Luiz Inácio Lula da Silva no Palácio do Planalto. Assumia o vice-presidente Michel Temer, desde maio governando na interinidade, e o Brasil entrava em uma nova fase de um conturbado processo sociopolítico. As diretoras Anna Muylaert (Que horas ela volta?), Petra Costa (Elena, O olmo e a gaivota) e Maria Augusta Ramos (Justiça, Seca) também retrataram a sessão que determinou a perda do mandato de Dilma. A presença delas nas semanas que antecederam a cassação incomodou tanto os parlamentares, que Petra Costa e Maria Augusta Ramos chegaram a divulgar uma nota conjunta em que chancelavam o caráter independente de suas realizações: “Nossas produções não estão a serviço de partido algum”.

Impeachment, o documentário de Petra, foi o único projeto não europeu selecionado para o Venice Production Bridge, o programa de fomento do Festival de Veneza. Da Europa, contatada pela Continente, a cineasta prefere silenciar sobre o documentário: “Nesse momento, estou elaborando a experiência. Acabei dando algumas entrevistas contra a minha vontade, por conta da pressão que tivemos no meio do Congresso, mas agora prefiro realmente mergulhar no filme antes de me pronunciar sobre ele”. Anna Muylaert também opta por não comentar, por hora. Sabe-se que ela acompanhou a rotina de Dilma no Palácio da Alvorada a convite da cineasta Lô Politi, da Maria Bonita Filmes; Lô dirige, Anna produz. “O filme não é sobre a situação política; é um filme humano, dentro do palácio sobre esses 180 dias de suspensão”, comentou Anna, em entrevistas feitas para o lançamento do seu longa Mãe só há uma, em julho.

Já Maria Augusta Ramos tomou a decisão movida por “uma angústia pessoal e pelo desejo de retratar um momento traumático”; começou a filmar 10 dias após a sessão da Câmara dos Deputados, quando a maior parte dos deputados evocou família, religião e diversos motivos estapafúrdios para justificar seu “sim” ou “não”.  “Senti a necessidade de retratar e refletir sobre esse processo histórico. Como documentarista, quero desconstruir as narrativas que, para mim, não conseguem dar conta de toda a complexidade do momento”, afirma a cineasta, nascida em Brasília, formada na Holanda e radicada no Rio.

Em Justiça, de 2004, ela começou a radiografar os meandros do poder judiciário no Brasil. De uma certa forma, seus filmes subsequentes, Juízo (2007) e Morros dos Prazeres (2013), também observam experiências kafkanianas vividas nesse âmbito. Em Futuro junho, cuja narrativa passeia das “jornadas de junho” de 2013 aos jogos da Copa do Mundo de 2014, Maria Augusta buscou apreender a miríade de tensões desse biênio crucial. Um analista financeiro, um metalúrgico, um motoboy e um metroviário paulistanos seguem suas rotinas distintas enquanto o país se dirige a uma convulsão política. Seria Futuro junho uma espécie de prenúncio da crise institucional que culminou no polêmico impeachment? “Penso que essa percepção está correta. Tudo que aconteceu em 2016 é consequência daquelas tensões de 2013 e 2014“, responde à Continente.

Maria Augusta Ramos está em fase de decantação do seu projeto, cujo título ainda não se descortinou. Ela tem centenas de horas gravadas (“dos meus sete longas, foi de longe o que mais filmei”), entre sessões no Congresso Nacional, atos de Dilma ainda como presidenta nos palácios do Planalto e do Alvorada e mobilizações pró e contra o impeachment ocorridas na capital federal, para onde se mudou para a casa dos pais por alguns meses. “O foco do meu documentário é o processo jurídico-midiático do impeachment. Não é um filme sobre a presidenta e não é partidário, pois não foi feito em função de partido algum. Faço questão de ressaltar isso. Quem conhece meu trabalho sabe como construo meus documentários. Vai ser, portanto, um filme de 1h30 ou 2h com a minha visão de documentarista sobre esse processo complexo”, situa a diretora.

Indagada sobre eventuais comparações com Entreatos, o documentário de João Moreira Salles que registrou Lula entre o primeiro e o segundo turnos da eleição de 2002, ela remete à sua filmografia: “Meus filmes têm um interesse no social e em como o funcionamento das instituições afeta o cidadão. Entreatos é um ótimo filme, mas vejo nos meus próprios trabalhos uma chave para esse documentário que estou fazendo. Assim, será uma contranarrativa, pois nunca seria um ‘discurso oficial’”.

CONTRANARRATIVAS
É nessa chave de “produção de contranarrativas” para combater a “tendência ao apagamento da memória” que operam as realizadoras Adriana Komives e Mariana Otero – a primeira é uma montadora brasileira radicada na França, a segunda é uma documentarista parisiense. Ambas são instrutoras dos Ateliers Varan, oficinas que, desde 1981, já percorreram mais de 30 países com o intuito de democratizar a produção audiovisual. Criado a partir de uma experiência que o documentarista francês Jean Rouch (1917-2004) teve em Moçambique, o Varan incute no aluno não apenas a importância do “aprender fazendo”, mas sobretudo a compreensão de que a produção de imagens é um ato político. Por coincidência, a temporada brasileira de 2016 transcorreu em concomitância ao processo de impeachment, dando às professoras a chance de acompanhá-lo.

Não foi a primeira vez que a presença dos Ateliers Varan coincidiu com marcos de transformações políticas. Guerra no Afeganistão, censura na produção imagética no Vietnã, o apartheid na África do Sul, mobilização social na Bolívia e na Colômbia, reconstrução da identidade nacional na Sérvia – todos esses processos foram acompanhados pela instituição e, de várias maneiras, transbordaram nos filmes produzidos a partir das sete semanas de oficinas. “O cinema é essencial para a preservação da memória de um país. O Brasil tem uma tendência a apagar sua história. Se essa mesma história não for registrada, como analisá-la depois? As imagens são essenciais. Dizer não ao golpe é poder se manifestar contra ele a partir, também, de produção de imagens e significados”, pontua Adriana Komives.

Entre abril e junho deste ano, Mariana Otero registrou as manifestações populares na Place de la Republique, em Paris, contra a Lei El-Khomry. Sancionada pelo presidente François Hollande, a legislação prevê alterações nas configurações trabalhistas, o que gerou diversos protestos (em um contexto parecido com o que se passou no Brasil, após o presidente Michel Temer anunciar mudanças similares).

“Em várias cidades francesas, os cidadãos começaram a se reunir e passar a madrugada inteira na praça discutindo caminhos para construir uma alternativa a essa lei. Eles buscavam, também, uma nova forma de se fazer política. Não é uma democracia, se você não se sente representado, não é? O que vi no Brasil é extremamente parecido com o que tem acontecido na França: tudo que se conta na televisão é falso, narrado para levar as pessoas a acreditar na versão do governo. É preciso estar nas ruas para produzir essas contranarrativas, que serão essenciais para podermos ter um olhar mais crítico e honesto para toda essa ebulição do presente”, ratifica a cineasta.

Para a diretora pernambucana Déa Ferraz, a possibilidade de existirem três filmes sobre o impeachment de Dilma Rousseff, e todos com direção de cineastas mulheres, é um alento no que descreve como “tempos sombrios”. “Os aspectos machistas e misóginos do golpe foram escancarados. Historicamente, o lugar que a presidenta ocupava não era o das mulheres – um espaço de poder e progresso pertence sempre aos homens. Para aqueles homens brancos e engravatados, como os senadores, era difícil ver uma mulher em posição de poder. O cinema é necessário para criar uma gaveta de histórias sobre a contemporaneidade e assim buscar entender o que estamos vivendo”, pondera a cineasta.

Em setembro, ela exibiu Câmara de espelhos no 49º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro – em que diversas equipes subiram ao palco envergando camisas com os dizeres de “Cinema contra o golpe” e “Viver sem temer”. Sua obra é um documentário sobre a representação feminina em um mundo no qual o machismo é naturalizado. Déa Ferraz enxerga paralelos entre os comentários dos seus personagens sobre as mulheres e “tudo que saiu sobre Dilma”: “A cultura patriarcal está arraigada. Não tem como o cinema se descolar disso. Acho maravilhoso que essas cineastas tenham filmado o impeachment porque vejo aí a chance de complexificar questões como a misoginia na política brasileira”.

Não há previsão de lançamento para os projetos de Petra Costa e Anna Muylaert; Maria Augusta Ramos, por sua vez, não quer correr com a montagem. “Estou tomando uma distância do material e imagino que ficarei seis meses em edição. Não é um filme que pode ser feito às pressas; vou rever e repensar tudo que filmei com o maior cuidado possível”, garante. Se o estado de ruptura permitir as eleições presidenciais programadas para 2018, seu documentário tende a ser um ótimo instrumento de discussão. 

 

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