É nessa chave de “produção de contranarrativas” para combater a “tendência ao apagamento da memória” que operam as realizadoras Adriana Komives e Mariana Otero – a primeira é uma montadora brasileira radicada na França, a segunda é uma documentarista parisiense. Ambas são instrutoras dos Ateliers Varan, oficinas que, desde 1981, já percorreram mais de 30 países com o intuito de democratizar a produção audiovisual. Criado a partir de uma experiência que o documentarista francês Jean Rouch (1917-2004) teve em Moçambique, o Varan incute no aluno não apenas a importância do “aprender fazendo”, mas sobretudo a compreensão de que a produção de imagens é um ato político. Por coincidência, a temporada brasileira de 2016 transcorreu em concomitância ao processo de impeachment, dando às professoras a chance de acompanhá-lo.
Não foi a primeira vez que a presença dos Ateliers Varan coincidiu com marcos de transformações políticas. Guerra no Afeganistão, censura na produção imagética no Vietnã, o apartheid na África do Sul, mobilização social na Bolívia e na Colômbia, reconstrução da identidade nacional na Sérvia – todos esses processos foram acompanhados pela instituição e, de várias maneiras, transbordaram nos filmes produzidos a partir das sete semanas de oficinas. “O cinema é essencial para a preservação da memória de um país. O Brasil tem uma tendência a apagar sua história. Se essa mesma história não for registrada, como analisá-la depois? As imagens são essenciais. Dizer não ao golpe é poder se manifestar contra ele a partir, também, de produção de imagens e significados”, pontua Adriana Komives.
Entre abril e junho deste ano, Mariana Otero registrou as manifestações populares na Place de la Republique, em Paris, contra a Lei El-Khomry. Sancionada pelo presidente François Hollande, a legislação prevê alterações nas configurações trabalhistas, o que gerou diversos protestos (em um contexto parecido com o que se passou no Brasil, após o presidente Michel Temer anunciar mudanças similares).
“Em várias cidades francesas, os cidadãos começaram a se reunir e passar a madrugada inteira na praça discutindo caminhos para construir uma alternativa a essa lei. Eles buscavam, também, uma nova forma de se fazer política. Não é uma democracia, se você não se sente representado, não é? O que vi no Brasil é extremamente parecido com o que tem acontecido na França: tudo que se conta na televisão é falso, narrado para levar as pessoas a acreditar na versão do governo. É preciso estar nas ruas para produzir essas contranarrativas, que serão essenciais para podermos ter um olhar mais crítico e honesto para toda essa ebulição do presente”, ratifica a cineasta.
Para a diretora pernambucana Déa Ferraz, a possibilidade de existirem três filmes sobre o impeachment de Dilma Rousseff, e todos com direção de cineastas mulheres, é um alento no que descreve como “tempos sombrios”. “Os aspectos machistas e misóginos do golpe foram escancarados. Historicamente, o lugar que a presidenta ocupava não era o das mulheres – um espaço de poder e progresso pertence sempre aos homens. Para aqueles homens brancos e engravatados, como os senadores, era difícil ver uma mulher em posição de poder. O cinema é necessário para criar uma gaveta de histórias sobre a contemporaneidade e assim buscar entender o que estamos vivendo”, pondera a cineasta.
Em setembro, ela exibiu Câmara de espelhos no 49º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro – em que diversas equipes subiram ao palco envergando camisas com os dizeres de “Cinema contra o golpe” e “Viver sem temer”. Sua obra é um documentário sobre a representação feminina em um mundo no qual o machismo é naturalizado. Déa Ferraz enxerga paralelos entre os comentários dos seus personagens sobre as mulheres e “tudo que saiu sobre Dilma”: “A cultura patriarcal está arraigada. Não tem como o cinema se descolar disso. Acho maravilhoso que essas cineastas tenham filmado o impeachment porque vejo aí a chance de complexificar questões como a misoginia na política brasileira”.
Não há previsão de lançamento para os projetos de Petra Costa e Anna Muylaert; Maria Augusta Ramos, por sua vez, não quer correr com a montagem. “Estou tomando uma distância do material e imagino que ficarei seis meses em edição. Não é um filme que pode ser feito às pressas; vou rever e repensar tudo que filmei com o maior cuidado possível”, garante. Se o estado de ruptura permitir as eleições presidenciais programadas para 2018, seu documentário tende a ser um ótimo instrumento de discussão.