Em Um copo de cólera, menos louvado do que Lavoura arcaica, porém capaz de gerar igual comoção, descortinam-se as entranhas de um relacionamento entre um homem e uma mulher – sem pudor algum, como se a linguagem fosse livre, aguda e fértil: “…e repassei na cabeça esse outro lance trivial do nosso jogo, preâmbulo contudo de insuspeitadas tramas posteriores, e tão necessário como fazer avançar de começo um simples peão sobre o tabuleiro, e em que eu, fechando minha mão na sua, arrumava-lhe os dedos, imprimindo-lhes coragem, conduzindo-os sob meu comando aos cabelos do meu peito, até que eles, a exemplo dos meus próprios dedos debaixo do lençol, desenvolvessem por si sós uma primorosa atividade clandestina, ou então, em etapa adiantada, depois de criteriosamente vasculhados nossos pelos, caroços e tantos cheiros, quando os dois de joelhos medíamos o caminho mais prolongado de um único beijo, nossas mãos em palma se colando, os braços se abrindo num exercício quase cristão, nossos dentes mordendo ao outro a boca como se mordessem a carne macia do coração”.
Irma Chaves é psicanalista e professora potiguar há muito radicada em Pernambuco, onde lecionou durante décadas no curso de Letras da UFPE. Já havia estudado Teoria da Literatura em Madri e Lisboa e dissecado a obra do poeta pernambucano Carlos Pena Filho (1929-1960), no mestrado na PUC/RJ, quando se deparou com Um copo de cólera. “A primeira vez que li, no final da década de 1970, foi a partir de um comentário em um jornal no Rio de Janeiro. Foi um impacto. Fiquei meio perdida, pois era uma coisa inteiramente nova. Na ocasião, era uma forma diferente de narrativa, que perdia às vezes quanto aos protagonistas, que por sua vez não tinham perfil definido. Essa linguagem nova me atraiu de imediato. Continuo gostando muito”, comenta à Continente. Anos depois, já tendo lido Lavoura arcaica, ela se confrontou com críticas que reclamavam da falta de estruturação dos personagens na obra do escritor. “Mas é do estilo dele buscar um outro tipo de aproximação com os personagens a partir da linguagem. É a palavra, a linguagem e a força da literatura que nos possibilitam, nesses livros, escutar e ler coisas diferentes, que de uma certa forma nos desafiam”, pondera Irma.
Em fevereiro deste ano, A cup of rage, primeira tradução inglesa para Um copo de cólera, foi publicada na Inglaterra e nos Estados Unidos (em janeiro de 2017, chegará às livrarias Ancient tillage, versão de Lavoura arcaica que a tradutora Karen Sherwood Sotelino esperou anos para ver nas prateleiras). Em maio, Raduan Nassar foi anunciado como vencedor do Prêmio Camões, que desde 1989 reconhece a literatura em língua portuguesa. Talvez essa láurea tenha impulsionado a Companhia das Letras a promover a reedição, pois o júri da premiação, concedida em conjunto pelos governos do Brasil e de Portugal, ressaltou a “a extraordinária qualidade da sua linguagem e da força poética da sua prosa”. Aos 81 anos, recluso e avesso a quaisquer rituais de fama, o escritor teria exclamado, ao saber do Camões e dos 100 mil euros acoplados ao prêmio: “Mas minha obra é um livro e meio!”.
Lavoura arcaica (decerto o livro desse “livro e meio”) é uma ode ao tempo: “o tempo e suas águas inflamáveis, esse rio largo que não cansa de correr, lento e sinuoso, ele próprio conhecendo seus caminhos, recolhendo e filtrando de vária direção o caldo turvo dos afluentes e o sangue ruivo de outros canais para com eles construir a razão mística da história”. É, também, uma reflexão profunda sobre a mítica impossibilidade de se contestá-lo. Nas últimas quatro décadas, nem o próprio Raduan conseguiu conter o fluxo expansivo e a contínua celebração da sua obra literária, que segue fecunda e gigante. Em 2016, não cabe, como ele mesmo fraseou, “menos ainda a cada um correr contra a corrente, ai daquele, dizia o pai, que tenta deter com as mãos seu movimento”.