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O mundo que a tela apresenta

Atual conteúdo oferecido às crianças pelas emissoras abertas e pagas deixa de fora um ingrediente importante à formação de indivíduos críticos: a diversidade

TEXTO Maria Eduarda Andrade

01 de Outubro de 2016

"Da mesma forma que o adulto lê um livro com a criança que não sabe ler, a televisão também tem que ser 'lida' com a criança"

Arte Hallina Beltrão

[conteúdo da ed. 190 | outubro de 2016]

Uma escola em Boa Viagem, zona sul do Recife, comemora a semana do índio com atividades que falam sobre “os primeiros habitantes do Brasil”. Valentina, aos cinco anos de idade, chega em casa com uma pergunta que pega sua mãe de surpresa. A menina quer saber: índio existe de verdade?

Valentina achava que índios eram como dragões ou unicórnios, seres que habitam a imaginação, e não o mundo real. A sua mãe, a jornalista e professora Catarina Andrade, ficou surpresa. “Como assim, Valentina não sabe que índio existe?” Além de programar uma ida com a família ao município de Pesqueira, no agreste de Pernambuco, onde vivem comunidades indígenas, decidiu fazer, na escola da filha, uma apresentação para mostrar às crianças um pouco de como vivem os índios no Brasil. Na ocasião, exibiu trechos do filme Das crianças Ikpeng para o mundo, uma produção documental protagonizada por meninas e meninos do Parque Indígena do Xingu, no Mato Grosso.

No filme, feito por crianças e jovens, os pequenos cineastas apresentam sua rotina na aldeia, passeiam entre ocas, sobem em árvores, caçam no rio. Apresentam o cacique da tribo e sua família. Mostram como usam o banheiro de latrina da aldeia, brincam umas com as outras. Um menino provoca o amigo, dizendo que ele está namorando uma colega. Ao mostrar cenas triviais do seu cotidiano, eles oferecem uma valiosa amostra das experiências de ser criança indígena, que certamente a maioria da população infantil brasileira desconhece.

Vários motivos poderiam ser citados como razão para tanto desconhecimento. Um deles, sem dúvidas, é a pouca variedade do conteúdo televisivo oferecido ao público infantil e infantojuvenil. Assistir à TV é um hábito arraigado da cultura nacional, o veículo está presente em praticamente todos os lares do país, mas, infelizmente, a televisão brasileira disponibiliza programas que não correspondem à diversidade do seu povo, reduzindo-o a uma representatividade superficial.

É importante ressaltar que, no Brasil, algumas crianças passam mais horas em frente à televisão do que na escola. Pesquisa do Painel Nacional de Televisão, do Ibope Media, responsável por registrar a evolução do tempo dedicado à TV nos canais abertos e fechados, mostra que crianças e adolescentes entre quatro e 17 anos, de todas as classes sociais, assistem, em média, 5h35 de programação por dia. A medição, de 2015, aponta um aumento de quase uma hora de consumo diário de TV entre 2004 e 2014 para o público da mesma faixa etária. Enquanto isso, um estudo da Fundação Getúlio Vargas apontou, em 2009, que estudantes dessas idades passam, em média, menos de quatro horas diárias em salas de aula.

Para Ana Bock, professora de Psicologia da PUC São Paulo, duas questões são cruciais no uso da televisão por esse público: o conteúdo consumido e a solidão no momento de exposição à tela. “A criança fica muito solitária ao assistir televisão. Muitas vezes, os adultos se ocupam de outras coisas e a criança fica sozinha. Falta trabalhar a televisão como ferramenta cultural. Da mesma forma que a gente lê um livro com a criança que não sabe ler, a televisão também tem que ser lida com a criança. Elas não nascem sabendo cortar com tesoura, comer de garfo e faca, amarrar o sapato. A gente, pacientemente, as ensina. A televisão é uma ferramenta igual à tesoura. A gente precisa ensinar a usar”, disse a especialista, em entrevista à TV Brasil.

No mesmo debate, a advogada Isabella Henriques, diretora do Instituto Alana, que atua pelos direitos da criança, acrescentou o seguinte: “Em 10 anos, tivemos o aumento de quase uma hora no consumo de televisão. E a gente precisa lembrar que isso é uma média. Há crianças que assistem 10 horas de televisão por dia e crianças que não assistem nada, ou pouco mais de uma hora por dia. A criança está sendo exposta, nos canais abertos, a uma programação que não é adequada, que não é feita nem pensada para o público infantil. A televisão, sem dúvida nenhuma, pode ser uma importante ferramenta para as crianças, mas desde que ela seja pensada para esse público”.

É o que vem defendendo, ao longo de toda uma carreira dedicada à concepção e realização de programas televisivos voltados à infância e juventude no Brasil, Beth Carmona, que fez história na TV Cultura, nos anos 1990, como diretora de programação e produção. “Para a criança, a questão da representatividade é fundamental: ela precisa e gosta de se ver na tela. É muito importante ver pessoas com realidades de vida distintas. Isso estimula o convívio com o diferente, com o outro, incita a curiosidade de descobrir outros lugares. Ter conteúdo nacional diverso na televisão é possibilitar o conhecimento das várias infâncias que existem no Brasil”, diz ela.

“Além das diferenças culturais e de sotaque, falamos das diferentes experiências de infância presentes na atualidade: crianças que vivem em situações menos favorecidas, crianças de regiões que aparecem menos na tela, como é o caso do Norte e Nordeste, crianças negras, indígenas, crianças migrantes que chegam ao Brasil em número cada vez maior. Todos esses retratos precisam estar presentes nas programações de televisão, com seus sotaques distintos e suas marcas. Precisamos de variedade”, afirma.

MUDANÇAS SOCIAIS
Do ponto de vista das transformações sociais, o comportamento da criança mudou muito nas últimas décadas. O estabelecimento de vínculos com os meios de comunicação é diário. Adultos plugados em smartphones, tablets, computadores e televisão são parte da paisagem cultural infantil, mesmo antes dos dois anos de idade.

É comum ouvir a afirmação de que “as crianças de hoje não são como as de antigamente”. De maneira geral, não temos mais aquele ser em formação relegado a fazer tudo o que uma autoridade máxima determina, sem questionamentos. Hoje em dia, explica-se e negocia-se cada vez mais com as crianças. Essas mudanças de comportamento são reflexo de uma série de transformações culturais de caráter político, econômico e social. As instituições tradicionais de socialização infantil – família, escola e igreja – passam por crises e redefinições. Como esperar que esse cenário não tenha impacto direto na infância e juventude?

 “Escola, família e igreja deixaram de ser as únicas e principais referências de socialização, além de dividirem e disputarem um lugar central na construção das identidades infantis com outras dimensões culturais, como o mercado, os meios de comunicação e as novas tecnologias. A mudança de paradigmas culturais e filosóficos produz um apelo presente imediato e puro, com alcance de satisfações instantâneas e efêmeras. O mercado impõe seu modelo de sociedade, baseado no consumo, e, no campo específico da cultura, fundamentado nas indústrias do entretenimento”, afirmam as pesquisadoras Valeria Dotro e Cielo Salviolo.

As especialistas em comunicação e infância discutiram esses aspectos culturais durante uma atividade de formação, para realizadores, sobre a produção audiovisual infantil. “As crianças contemporâneas não estão acostumadas a pensar e atuar segundo a permissão do adulto. Isso está vinculado ao acesso prematuro e cotidiano à informação, aos saberes e ao consumo”, analisam.

AVANÇOS
De acordo com Beth Carmona, o cenário hoje, no Brasil, é muito melhor do que há 10 anos. “Não se pode negar o avanço trazido pela Ancine (Agência Nacional de Cinema), com a abertura de uma série de novos editais e a Lei da TV Paga, que criou a obrigatoriedade das emissoras fechadas exibirem uma cota mínima de conteúdo brasileiro. Mas, ainda assim, a produção infantojuvenil não tem quase nada de apoio específico. Temos pouca diversidade e variedade de conteúdo nacional”, analisa Beth. Em sua gestão na TV Cultura, ela foi responsável pelo lançamento de programas que viraram referência de qualidade em produção infantil no país, exibindo exemplos que marcaram uma geração, como Castelo Rá-Tim-Bum, Mundo da lua e Cocoricó.

Hoje, Beth Carmona dirige a ComKids, uma plataforma digital que promove cursos, encontros, seminários e serve como fórum de discussão sobre produção de conteúdos para crianças e adolescentes. O espaço é importante para o intercâmbio de experiências na América Latina. O ComKids realiza, em São Paulo, o Prix Jeunesse Ibero-Americano, a versão latino-americana do festival internacional que acontece há mais de 50 anos, em Munique, na Alemanha. Realizada por quem pesquisa a infância, a adolescência e a mídia, a iniciativa reúne, a cada dois anos, produtores e realizadores de conteúdo infantil do mundo todo.

De acordo com Beth Carmona, a produção nacional ainda precisa de bastante incentivo, desenvolvimento e formação, porque “o mercado é muito voraz”. “Do ponto de vista da diversidade, falta muito, mesmo, no produto nacional. O mercado infantil é faminto. Ele trabalha com padronizações, licenciamento, moda. Tudo isso acaba promovendo uma mesmice: produtores copiam qualquer iniciativa que tenha tido sucesso, então você tem a repetição de fórmulas. É um mercado que trabalha com modismos”, analisa. “São mais de 12 canais de televisão por assinatura que oferecem 24 horas de programação para criança. São somente três canais nacionais. O restante é de estrangeiros, que praticam as cotas, mas, ainda assim, o volume de conteúdo disponível nas plataformas é imenso. A produção brasileira precisa fazer frente a grupos fortes, que estão cercados de propaganda e marketing pesado.”

Quando fala em avanços, Beth Carmona menciona o aumento inegável da variedade na programação de hoje, “então, a qualidade acaba aumentando”. Além disso, diz que o conteúdo sob demanda cresceu nos últimos anos e a televisão termina perdendo um pouco de espaço. “Ela ainda reina, mas não reina sozinha, o que é maravilhoso. As crianças têm mais possibilidades. A quantidade de conteúdo oferecido em plataformas como YouTube e aplicativos para tablets e smartphones é fantástica.” Segundo a produtora, o mais importante é haver uma curadoria para criança, independente da plataforma: “Pais e professores precisam saber escolher aquilo que é importante para provocar a conversa e ajudar na formação dessas crianças e jovens. O diálogo desenvolve o raciocínio, o gosto, a estética; dá elementos de linguagem que ajudam a criança a perceber as coisas”.  

 

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