Do ponto de vista das transformações sociais, o comportamento da criança mudou muito nas últimas décadas. O estabelecimento de vínculos com os meios de comunicação é diário. Adultos plugados em smartphones, tablets, computadores e televisão são parte da paisagem cultural infantil, mesmo antes dos dois anos de idade.
É comum ouvir a afirmação de que “as crianças de hoje não são como as de antigamente”. De maneira geral, não temos mais aquele ser em formação relegado a fazer tudo o que uma autoridade máxima determina, sem questionamentos. Hoje em dia, explica-se e negocia-se cada vez mais com as crianças. Essas mudanças de comportamento são reflexo de uma série de transformações culturais de caráter político, econômico e social. As instituições tradicionais de socialização infantil – família, escola e igreja – passam por crises e redefinições. Como esperar que esse cenário não tenha impacto direto na infância e juventude?
“Escola, família e igreja deixaram de ser as únicas e principais referências de socialização, além de dividirem e disputarem um lugar central na construção das identidades infantis com outras dimensões culturais, como o mercado, os meios de comunicação e as novas tecnologias. A mudança de paradigmas culturais e filosóficos produz um apelo presente imediato e puro, com alcance de satisfações instantâneas e efêmeras. O mercado impõe seu modelo de sociedade, baseado no consumo, e, no campo específico da cultura, fundamentado nas indústrias do entretenimento”, afirmam as pesquisadoras Valeria Dotro e Cielo Salviolo.
As especialistas em comunicação e infância discutiram esses aspectos culturais durante uma atividade de formação, para realizadores, sobre a produção audiovisual infantil. “As crianças contemporâneas não estão acostumadas a pensar e atuar segundo a permissão do adulto. Isso está vinculado ao acesso prematuro e cotidiano à informação, aos saberes e ao consumo”, analisam.
AVANÇOS
De acordo com Beth Carmona, o cenário hoje, no Brasil, é muito melhor do que há 10 anos. “Não se pode negar o avanço trazido pela Ancine (Agência Nacional de Cinema), com a abertura de uma série de novos editais e a Lei da TV Paga, que criou a obrigatoriedade das emissoras fechadas exibirem uma cota mínima de conteúdo brasileiro. Mas, ainda assim, a produção infantojuvenil não tem quase nada de apoio específico. Temos pouca diversidade e variedade de conteúdo nacional”, analisa Beth. Em sua gestão na TV Cultura, ela foi responsável pelo lançamento de programas que viraram referência de qualidade em produção infantil no país, exibindo exemplos que marcaram uma geração, como Castelo Rá-Tim-Bum, Mundo da lua e Cocoricó.
Hoje, Beth Carmona dirige a ComKids, uma plataforma digital que promove cursos, encontros, seminários e serve como fórum de discussão sobre produção de conteúdos para crianças e adolescentes. O espaço é importante para o intercâmbio de experiências na América Latina. O ComKids realiza, em São Paulo, o Prix Jeunesse Ibero-Americano, a versão latino-americana do festival internacional que acontece há mais de 50 anos, em Munique, na Alemanha. Realizada por quem pesquisa a infância, a adolescência e a mídia, a iniciativa reúne, a cada dois anos, produtores e realizadores de conteúdo infantil do mundo todo.
De acordo com Beth Carmona, a produção nacional ainda precisa de bastante incentivo, desenvolvimento e formação, porque “o mercado é muito voraz”. “Do ponto de vista da diversidade, falta muito, mesmo, no produto nacional. O mercado infantil é faminto. Ele trabalha com padronizações, licenciamento, moda. Tudo isso acaba promovendo uma mesmice: produtores copiam qualquer iniciativa que tenha tido sucesso, então você tem a repetição de fórmulas. É um mercado que trabalha com modismos”, analisa. “São mais de 12 canais de televisão por assinatura que oferecem 24 horas de programação para criança. São somente três canais nacionais. O restante é de estrangeiros, que praticam as cotas, mas, ainda assim, o volume de conteúdo disponível nas plataformas é imenso. A produção brasileira precisa fazer frente a grupos fortes, que estão cercados de propaganda e marketing pesado.”
Quando fala em avanços, Beth Carmona menciona o aumento inegável da variedade na programação de hoje, “então, a qualidade acaba aumentando”. Além disso, diz que o conteúdo sob demanda cresceu nos últimos anos e a televisão termina perdendo um pouco de espaço. “Ela ainda reina, mas não reina sozinha, o que é maravilhoso. As crianças têm mais possibilidades. A quantidade de conteúdo oferecido em plataformas como YouTube e aplicativos para tablets e smartphones é fantástica.” Segundo a produtora, o mais importante é haver uma curadoria para criança, independente da plataforma: “Pais e professores precisam saber escolher aquilo que é importante para provocar a conversa e ajudar na formação dessas crianças e jovens. O diálogo desenvolve o raciocínio, o gosto, a estética; dá elementos de linguagem que ajudam a criança a perceber as coisas”.