Arquivo

Arnaldo, mestre e amigo

TEXTO José Cláudio

01 de Outubro de 2016

À direita, Arnaldo Pedroso d'Horta (São Paulo, SP, 1914-1973) e Sérgio Millet (São Paulo, SP, 1898-1966)

À direita, Arnaldo Pedroso d'Horta (São Paulo, SP, 1914-1973) e Sérgio Millet (São Paulo, SP, 1898-1966)

Foto Reprodução

[conteúdo da ed. 190 | outubro de 2016]

Sempre tive vontade de ler as cartas de Madame de Sévigné e outros célebres missivistas. Sempre gostei de cartas. No meu tempo, no tempo que tinha tempo, a gente se escrevia. No meu só, não. Desde Sêneca, desde sempre. Taí uma coisa com que não contava: o sucateamento da carta. O celular resolve tudo na hora, para qualquer parte do mundo, sem precisar correio. Será que não temos mais o que dizer aos amigos? Quando não conseguir mais levantar o braço para pintar, como aconteceu com Miró, vou ler e reler as cartas dos amigos. Agora me lembrei daquela música cantada por Carlos Galhardo: “Revendo papéis antigos/Velhas cartas dos amigos/O teu retrato encontrei”. Tenho uma caixona de papelão cheia (preciso até renovar a pimenta do reino, para não dar bicho).

A carta a que me refiro agora pode ser lida no site www.arnaldopedrosodhorta.com.br, onde encontrarão outras cartas e outros dados.

“Paris, 22, setembro, 1962”. Eu tinha casado em janeiro de 1960 e a vida era difícil, embora eu nunca tivesse me lamentado. Mas amigo adivinha. “Zé:/Vai junto um traveller-check de cinquenta dólares que você me fará o obséquio de aceitar como um gesto de amizade, que não cria dívida nem obrigação./Para recebê-lo, você deverá endossá-lo, assinando atrás. Não o endosse, porém, sinão na presença de quem o desconte, transformando-o em cruzeiros. Ao câmbio atual, si v. for ao City Bank ou a outro banco de Recife, deve dar uns vinte e poucos contos. Mas numa casa de câmbio ou com um corretor de câmbio você poderá vendê-lo ao preço do câmbio paralelo, apurando entre trinta e trinta e cinco contos. Consulte algum seu amigo que entenda do assunto, para não perder no negócio. Mas não o assine antes de acertar a venda, e só na presença do comprador – isso é essencial nessa espécie de cheque.” Não tenho ideia de quanto valeria hoje esses vinte e poucos ou entre trinta e trinta e cinco contos, talvez o amigo Clóvis Vasconcelos (obrigadíssimo pelos oiticorós!) pudesse informar.

“A hepatite é uma doença que judia muito das pessoas, mas ela tem, hoje em dia, tratamento seguro. Espero que sua mulher sáia-se dessa logo. Eu próprio tive um comêço dessa doença, mas no meu caso a culpa não era de virus nenhum, e sim de outros remédios que estava tomando para atender a outra moléstia; e o remédio é que pôs á prova o fígado.” Leonice, minha mulher, não estava com nenhuma hepatite ou outra qualquer doença. Tratava-se da “síndrome de Gilbert”, que na prova de função hepática acusava “portador de hepatite”. Ficou dois meses de licença do trabalho, bibliotecária da Faculdade de Direito do Recife. Repouso absoluto. Aconselhada por Dna. Eunice Robalinho, chefe da referida biblioteca, a ouvir outra opinião médica, já que os exames não indicavam melhora, a própria Dna. Eunice sugeriu consultar Dr. Ciro de Andrade Lima, especialista em doença do fígado. Ele dava aula aos estudantes de medicina no Hospital Dom Pedro II. Parece que estava havendo um congresso de médicos da especialidade e ele expôs o caso de Leonice. Dr. Ciro realizou muitos exames e descobriu que era uma formação genética, a tal síndrome de Gilbert, e que não requeria remédio nem tratamento nenhum. Isso depois de muito aperreio, remédios desnecessários e até mudança de clima: dois meses em Fazenda Nova.

Arnaldo escrevia cartas generosas, na letrinha miúda de sua máquina portátil. “A idéia, entretanto, de que um ditador poderia acelerar a evolução social, é uma idéia de um primarismo absoluto, é uma reação de puro desespêro, que nada tem a ver com a inteligência política. Qual foi o ditador moderno que acelerou a evolução social? Hitler? Mussolini? Salazar? Batista? Nenhum deles o fez – e nem Fidel Castro o fará. As ditaduras levam á guerra ou levam á opressão absoluta do povo; elas têm servido a interesses de classe, do velho estilo capitalista, ou de casta, do novo estilo comunista. Num caso como no outro, o povo é igualmente desprezado, espoliado, judiado.”

“Você não se lembra disso, mas no período que intermediou entre as duas grandes guerras, e que foi o período de implantação das bases de industrialização na Alemanha, na França, no Japão, na Itália, isso se conseguiu, em cada lugar dêsses, mediante a destruição das pequenas indústrias pelas grandes, com a consequênte formação de grandes exércitos de desempregados, que foram um flagêlo durante todo aquele período. Parece que isso é uma coisa inevitável (quando o rítmo é artificialmente exagerado), até que a indústria pesada permita a criação da indústria de consumo, pois esta última tem como pressuposto a extensão do mercado consumidor e, em consequência, a elevação do nível de vida geral.”/“É muito difícil discutir esses problemas numa carta, que acaba ficando pernóstica, pretenciosa e cheia de bobagens./No fundo, o Brasil continua ainda hoje a pagar a despeza da ditadura de Getúlio: esta interrompeu o processo de educação democrática, afastou toda uma geração de qualquer experiência política e introduziu os metodos de corrupção pessoal como arma corrente.”/“Cícero [Dias] me disse que, si estivesse aí votaria, como você, em Julião, embora Julião tenha ficado aborrecido com êle porque se recusou a ilustrar um livro de poesias dele, muito ruins.”  

 

Publicidade

veja também

Heroísmo da visão

A ocupação de um campo inóspito

A protagonista da música em mutação