O Brasil passa por um momento singular nesse contexto, com uma série de trabalhos recentes expandindo a concepção e a utilização da voz, deslocando-a de seu posto figurativo do canto. A musicóloga, performer e compositora gaúcha Isabel Nogueira lançou dois trabalhos este ano: Voicing, solo, e Lusque fusque, com o coletivo Medula. As obras propõem a imersão em uma “voz-som, voz-sentido, voz-ruído”, uma confluência de vozes que se transformam em meio a bits e ondas eletromagnéticas em um espaço-tempo estendido.
“Através de colagens, prolongamentos, sobreposições, uso de loops, uso de recursos nos quais a semanticidade da palavra deixa de ser seu sentido primordial, pretende-se criar camadas de sentido em que deixa de ser perceptível uma unicidade da voz e suas associações com gêneros ou contextos sociais”, aponta Isabel.
Integrante do Medula e colaborador em diferentes trabalhos de Isabel Nogueira, Luciano Zanatta explica que Lusque fusque trabalha com e no limiar da canção para, no fim, reinventá-la. “O disco parte de ter a voz, de ter alguma linha estrutural, mas que dialoga com ruído e com quebra de arranjo. É pegar vários paradigmas da canção – seja predominância da voz, inteligibilidade do texto, organicidade do arranjo, padrão de afinação, padrão de harmonia – e inserir um contexto musical que mostre, por exemplo, que aquela ideia de afinação, os 12 tons, a escala temperada etc. – não é tão rígida. A gente usa outro modelo. A gente foi pensando em pegar os limites dos conceitos e fazer com que a matéria musical fizesse o limite se contradizer. Tiramos tudo aquilo que parecia caracterizar uma canção, mas aquilo segue sendo uma canção”, afirma Zanatta.
Os últimos trabalhos de Lilian Campesato também trazem uma exploração importante da voz. Em O estranho – apresentada ano passado, no Festival Internacional de Música Experimental (FIME) em duo com Fernando Iazzetta tocando eletrônicos –, a voz do dramaturgo e diretor teatral Antonin Artaud é que deflagra o espaço contraditório entre o significado das palavras e a forma como são ditas na tentativa de produzir “o espaço do outro, do louco”.
Mais impactante ainda é o solo vocal Fedra – apresentado no Encontro Nacional dos Compositores Universitários, em novembro de 2014, e no ano seguinte no FIME. O mote é a agonia suicida da figura de mesmo nome da mitologia grega. A peça “recria por meio de sons fisiológicos, sons da respiração, sons guturais, um espaço íntimo que é compartilhado com os ouvintes como algo familiar. Nesse caso, o ruído não reside apenas nas qualidades acústicas da voz, mas naquilo a que ela remete”, descreve Lilian. Seguindo o próprio conceito de ruído (além de performer, ela é pesquisadora na área de música experimental e arte sonora), persiste ao lidar com os extremos da dor, do corpo, dos equipamentos, da própria noção de arte.
“Era simplesmente tentar buscar esses sons internos, minha história, no meu corpo. Quase uma psicanálise reversa. O que está por trás desses sons todos, dessas angústias? É um pouco o que eu vou tentar fazer com Fedra”, conta Lilian. “Tem uma coisa na história de Fedra que me interessa muito, que está presente na ambiguidade presente na produção desses sons. Por exemplo, tem um sexismo que a história de Fedra traz, que eu como mulher coloquei a minha emissão vocal ali, pensando nesses lugares da voz feminina. Muito a ver com momento de tensão, de medo. Tem momentos que é um gozo, tem momentos que é afirmação de mim mesma, tem momentos que é uma angústia muito grande de um lugar que é presente no universo feminino, momentos em que a minha voz está nesse lugar da angústia por uma inferioridade que depois passa para a extroversão absoluta da voz.”
A paulista Juçara Marçal é outra criadora fundamental neste cenário, certamente o nome mais popular. Passando pelo grupo vocal Vésper, a banda semiacústica A Barca e os experimentos na forma-canção afro-brasileira no Metá Metá, Juçara mergulhou radicalmente em experimentações com pedais e improvisação a partir da voz – particularmente notáveis nos álbuns Abismu (com Kiko Dinucci na guitarra e Thomas Harres na bateria) e Anganga (com o produtor noise carioca Cadu Tenório). Ela intensificou essas ideias com o projeto Nós da Voz, no qual se apresentou semanalmente em sessões de improvisação com um grupo de artistas diversos – incluindo a cantora Ava Rocha, o rabequeiro e saxofonista Thomas Rohrer, o baterista Sergio Machado, além dos já citados Kiko Dinucci e Cadu Tenório, entre outros.
“Esse processo de tornar-se envolto na sonoridade do barulho vem com o Metá Metá”, conta Juçara. “Você descobre outras maneiras de usar a voz, ou mesmo o berro. Acho que é até um caminho natural usar o grito a partir dessa ideia de tela vazia para criar sons com sua voz, e não apenas interpretar uma canção.”
Sem ignorar suas devidas particularidades, pensar esses trabalhos como um diálogo dentro de uma perspectiva histórica é uma preocupação constante. Outros regimes de significação, outras experiências estéticas, as possibilidades sensíveis nas narrativas vertiginosas e não lineares. É ainda, como reforça Isabel Nogueira, “uma atitude política. Questionar os papéis e modificar a música, um lugar, as pessoas, de forma que esse questionamento possa ir para outras coisas”. Trata-se, enfim, de alteridade. Além do canto, produzir e escutar não a voz, mas as muitas vozes.