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A pedra filosofal da nossa cozinha

Terra, água, fogo, ar e espaço estão na base da alquimia que se dá entre o cozinheiro, as panelas e o apetite, no preparo do alimento

TEXTO Lia Beltrão

01 de Outubro de 2016

Transformação: cinco elementos estão presentes no preparo da refeição

Transformação: cinco elementos estão presentes no preparo da refeição

Foto lia Beltrão

[conteúdo da ed. 190 | outubro de 2016]

Tudo é manifestação dos elementos. Inclusive a cozinha. Imagine uma grande e sólida panela de barro – de terra. Agora, debaixo dela, uma chama frágil e discreta dá origem a outra maior que mantém a lenha em fogo. A panela aquece em um ritmo só dela, não há quem ou o que a apresse. É ela – e apenas ela – que diz a hora de acolher o que vem de fora. Terra há e fogo também. Vem então a água. Nessa nossa panela, o que se derrama é a água nobre das oliveiras, o azeite, que penetra os poros abertos do barro, rejuvenescendo suas paredes secas. E a panela, em sua generosidade própria de elemento terra, agradece: recebe a cebola com a alegria de um chiado. O mesmo ar que alimenta as chamas se perfuma com a dança toda, sobe em direção ao céu, penetrando, no caminho, as nossas narinas. Quase sempre, do espaço aberto da nossa mente surge algo como: “Que bom!”.

Terra, água, fogo, ar e espaço são os cinco elementos a partir dos quais diversas sociedades asiáticas explicam a realidade – desde a formação das galáxias até a propensão de alguém para ter raiva ou um problema no fígado; das estações do ano ao preparo de um prato. Os gregos antigos, com um elemento a menos, levantaram teorias semelhantes às dos orientais para explicar a origem do universo e o seu funcionamento, e assim influenciaram todo o pensamento ocidental. Para medicinas como a aiurvédica, a chinesa e a tibetana, a cura significa o equilíbrio desses cinco elementos. O conceito de cura de xamãs americanos é exatamente o mesmo.

Quando a realidade passou a ser explicada não mais pelos sábios e filósofos, mas pela ciência, nomes como átomos, moléculas e reações fisioquímicas passaram a explicar (recontar?) a história do universo e do homem, e os elementos foram restringidos a um conhecimento antigo e ultrapassado, pertencente a exóticas culturas orientais ou associadas ao xamanismo de povos indígenas. Em ambos os casos, portanto, essa sabedoria nada teria a ver conosco. Os cinco elementos viraram algo arcaico, new age ou mesmo brega.

Mas, ainda assim, se há um lugar em nossa sociedade em que os cinco elementos – não apenas em sua forma sutil, mas em sua manifestação primária – permanecem visceral e ancestralmente presentes, este lugar é a cozinha. Sim, o micro-ondas, a gastronomia molecular, o macarrão instantâneo, e todo um pensamento de que cozinhar é “perder tempo”, devidamente popularizado pela indústria alimentícia, desmagnetizaram, por assim dizer, o potencial de transformação – individual e coletivo – que a cozinha doméstica tem. Contudo, ela permanece como o lugar-matriz da alquimia, como o solo no qual a natureza é transmutada em cultura, na famosa metáfora de Lévi-Strauss. Em uma cozinha, os cinco elementos estão sempre presentes, silenciosamente esperando ação, desejando que, do espaço da nossa mente e do nosso apetite, eles sejam postos em movimento, em direção ao fim: alimento, medicina ou arte. Ou os três em um prato só.

SEGREDOS DE EQUILÍBRIO
Na culinária tradicional chinesa, cada ingrediente e até mesmo cada movimento que um cozinheiro faz (acender o fogo, pegar a panela, jogar nela azeite…) pode ser classificado a partir dos cinco elementos (neste sistema, nomeados de terra, madeira, água, metal, fogo). O resultado, a refeição final, surge como um conjunto contendo doses específicas de cada elemento, manifestados como texturas, cores e sabores diferentes. Doce, ácido, salgado, picante e amargo, por exemplo, vão ter uma função terapêutica, ou não, dependendo da necessidade de quem o come. A grosso modo, alguém diagnosticado segundo a medicina chinesa com “excesso de elemento fogo”, precisa de alimentos que o diminuam – provavelmente consumindo alimentos com mais água, como missô e algas marinhas. Se, ao contrário, existe “carência de fogo”, alimentos madeira, como azeite e limão, podem reestabelecer o equilíbrio. Não é à toa que, para os chineses, a cozinha é a primeira farmácia.

“O conhecimento dos cinco sabores e a disposição de relacionar cores, texturas, formas e peculiaridades energéticas dão um novo sentido aos atos de cozinhar e comer.” A fala é da jornalista Sônia Hirsch, autora de mais de 20 livros sobre alimentação e do primeiro livro no Brasil sobre a cozinha e os cinco elementos. O manual do herói vai do macro ao micro, de uma completa introdução à medicina chinesa a instruções sobre o que comer e como cozinhar a partir da compreensão de como os elementos funcionam, e do quanto nós e os alimentos temos de cada um deles.

No entanto, em meio ao cansaço diante de tantas fórmulas de novas dietas com promessas de uma vida longa e equilibrada, uma pergunta ecoa: não seria possível entrar na cozinha e nos relacionarmos com os cinco elementos baseados não em um conhecimento distante e exótico, como a medicina chinesa, mas em nossa própria sabedoria ancestral – seja indígena, ameríndia, brasileira, ou simplesmente em uma sabedoria individual?

A resposta de Sônia para essa pergunta é a seguinte: “Sempre acho que a comida tradicional, feita de forma tradicional, deve ter algum tipo de equilíbrio. Às vezes, é só uma questão de tempo e conseguir se aproximar direito para ver”. Christiane Seifert, autora do livro A cozinha dos cinco elementos, também vai nessa direção. Para ela, a alimentação baseada nos cinco elementos não pertence a nenhuma cozinha em particular. “Se estudarmos atentamente a base da cozinha chinesa, por exemplo, entendemos que os cinco elementos fazem parte de todas as culturas gastronômicas de longa tradição”, explica.

O livro de Christiane Seifert é uma joia rara: receitas italianas tradicionais são classificadas segundo a dietética chinesa. Isso significa praticamente um raio-X energético nas receitas mais cobiçadas do mundo, com ingredientes e modos de preparo classificados segundo os elementos. No final de cada receita, ela sugere sua função terapêutica (muitas das quais certamente já foram desvendadas pelas nonas). Uma pasta de rúcula com tomate, por exemplo, é apontada como um prato ideal para “comer no jantar, depois de um dia estressante, porque acalma os nervos, refresca, agrada ao nosso centro e nos ajuda assim a ‘puxar o plugue’ e relaxar. Não se sabe o que nos faz salivar mais, a receita ou sua função terapêutica.

DOS ANCESTRAIS
Foi também o rastro das receitas tradicionais e dos elementos que seguiu o jornalista Michael Pollan, para escrever um livro que o tornou uma celebridade e um militante pró-cozinha doméstica, por assim dizer. Em uma jornada fascinante como cozinheiro aprendiz – narrada no livro Cozinhar: Uma história natural da transformação, e que dá o tom também da série documental Cooked, à disposição no Netflix –, Pollan mostra-nos como o ato de cozinhar nos possibilita (se estamos abertos para isso) uma compreensão mais profunda do mundo natural e de nós mesmos. Para Pollan, a cozinha explica quem somos, e retornar a ela é urgente para redescobrimos nossa autonomia e passarmos de consumidores passivos da indústria alimentícia a produtores criativos de nossa própria subsistência. Cozinhar aqui é um ato político cuja prática significa experimentar, fazer alguma coisa do zero, expor-se ao poder dos elementos, que é exatamente o que Pollan faz.

Esse jornalista da Universidade de Berkeley aprende com os mestres e resolve fazer, em casa, experimentos gastronômicos do universo do fogo, quando descobre o que é um verdadeiro churrasco; da água, aprendendo tudo que pode ser cozinhado em líquidos, dentro de panelas (as chamadas “comidas de panela”); do ar, em que ele persegue obcecadamente o pão tartine, feito a partir de fermentação natural; e da terra, onde moram os micróbios que vão dar vida a fermentados como chucrute, queijo e cerveja.

A primeira tradição culinária que ele se propôs a aprender do zero segue a fórmula que dá início ao próprio advento da culinária: animal + lenha + tempo. Pollan entrevista mestres churrasqueiros e aprende a cozinhar um animal inteiro com brasas, controle e paciência, e paralelamente nos apresenta ao incontestável impacto do elemento fogo na nossa transformação enquanto espécie. A chamada “hipótese do cozimento”, apresentada por ele, afirma que “o domínio do fogo e a consequente invenção da culinária podem ser apontados como um pré-requisito evolutivo e um fundamento biológico na história do homem”.

Isso porque cozinhar proporciona um aumento de energia nos alimentos e se torna mais fácil digeri-los. Trocando alimentos crus por cozidos, nossos ancestrais homo erectus provavelmente sofreram uma diminuição no tamanho do intestino e um aumento no tamanho do cérebro. Intestino menor, cérebro maior: nascemos como o que somos, homo sapiens. Também menos tempo passou a ter que ser gasto em atividades como caçar e coletar alimentos. “Ao nos livrarmos da necessidade de alimentação constante, o ato de cozinhar nos tornou mais nobres e nos colocou no rumo da filosofia e da música”, conclui Pollan.

A “hipótese do cozimento” ainda não pode ser comprovada por falta de evidências científicas. Seus defensores alegam o fato de que resquícios arqueológicos desses primeiros banquetes ancestrais seriam difíceis de encontrar, já que espetos de madeira e fogueiras não deixam outros rastros senão cinzas. Mesmo assim, simplesmente considerar que o impacto dos elementos na cozinha e o impacto da cozinha no homem podem ir tão longe quanto à nossa própria origem como espécie é capaz de mudar a forma como olhamos para o nosso fogão e tudo que vem dele.

Mesmo considerando os elementos em seu aspecto grosseiro, externo, distante da sutileza e complexidade da medicina chinesa, Pollan faz um apelo e um convite que não está muito distante da comida como forma de cura proposta pelos orientais. Uma cura que é também um protesto. Para ele, é preciso “recuperar a realidade da comida, fazendo com que ela volte a ocupar o devido lugar em nossa vida”.

Na verdade, a bandeira de que nós podemos promover uma verdadeira cura individual e social a partir de uma reconexão, por assim dizer, com a cozinha, está sendo levantada por inúmeros cozinheiros, chefs, especialistas, jornalistas e ambientalistas no mundo inteiro. E essa cura não tem a ver simplesmente com nutrição, com dieta, nem mesmo com equilibrar individualmente os elementos. Tem a ver com autonomia, com nos erguermos e entrarmos em contato com nossa capacidade de transformação. E, para essa transformação, os elementos – seja em sua forma externa, seja nos sabores dos ingredientes ou nos movimentos do cozinheiro – estão no centro da roda.

A DANÇA
De dentro dos nossos apartamentos, uma fogueira, uma nascente de água, uma terra cheia de minhocas, um vento que vem sem barreiras ou um céu estrelado parecem mais propaganda de um passeio ecológico do que a promessa de um contato direto com as forças que nos fizeram ser quem somos. No entanto, se abdicarmos de ter tudo pronto ou semipronto ao nosso redor, e nos expormos à aventura de transformar a natureza – mesmo que essa transformação seja tão ambiciosa quanto fazer um pão de fermentação natural, um queijo ou uma cerveja em casa –, vamos descobrir as qualidades de terra, água, fogo, ar e espaço.

Se nos demorarmos um pouco, como sugere Sônia Hirsch, vamos descobrir as qualidades dos elementos no cotidiano da cozinha: na rigidez do feijão que vai amolecendo com tempo e água; na massa de pão que apenas cresce se protegida do vento; na batata-doce que se nega a ficar crocante se não for exposta ao forno mais quente possível; no espaço vazio e potente ao nosso redor quando estamos sós; nós e a cozinha.

Cozinhar é – e isso não é poesia – lidar com os elementos. Não é dominá-los. É entender quanto cada ingrediente pede de terra, água, fogo, ar e espaço, e o quanto eles conseguem oferecer. É aprender com eles, não apenas porque desse aprendizado depende nossa subsistência (ou nossa arte, ou nosso protesto), mas o contato com eles nos coloca diante de nós mesmos. A cozinha sempre nos faz desconfiar de que algo que está oculto pode se manifestar. Quando alguém se propõe a cozinhar, a mágica sempre parece estar prestes a acontecer.

Quando se acredita nisso, controlar os elementos já não faz mais sentido. Talvez copos medidores, balanças e termômetros deixem de ter uso. Mãos podem parecer ter vida própria. Deixa-se de pensar tanto e dedica-se a ouvir chiados, sentir os cheiros mais sutis, identificar mudanças de cores quase imperceptíveis, deixar a língua decidir sozinha se basta de sal ou não. Cozinhar passa a ser uma dança cujo resultado é arte, manifesto, medicina. Ou uma dança que pode ser, em toda sua beleza e brutalidade, simplesmente, subsistência. 

 

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