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Um impulso à profissionalização

Com o apoio do Brasil de Todas as Telas, diretores, produtores e roteiristas lapidam suas ideias ou já iniciam filmagens de seus primeiros projetos

TEXTO Luciana Veras

01 de Setembro de 2016

Em ação no Pará: piloto de série documental do primeiro núcleo da Região Norte já foi filmado

Em ação no Pará: piloto de série documental do primeiro núcleo da Região Norte já foi filmado

Foto Divulgação

[conteúdo da ed. 189 | setembro 2016]

Corria o mês de julho de 2014, quando a Agência Nacional do Cinema/Ancine lançou o programa Brasil de Todas as Telas, uma parceria com o Ministério da Cultura para utilizar recursos do Fundo Setorial do Audiovisual – FSA com o intuito de promover “expansão do mercado e da universalização do acesso às obras audiovisuais brasileiras”. Dois anos depois, os índices obtidos são, de fato, expressivos: 437 longas-metragens e 396 séries ou filmes para televisão foram apoiados. Porém, uma das ações mais relevantes da iniciativa permanece longe dos holofotes midiáticos. São os 69 núcleos criativos em atividade em todas as regiões do país, gestando cerca de 400 novos projetos audiovisuais, entre ficções, documentários e séries televisivas, fortalecendo um aspecto até então minoritário nas linhas de fomento – a produção de roteiros.

“Ao desenharmos o Brasil de Todas as Telas tínhamos como objetivo alterar o cenário do audiovisual com o investimento mais robusto já realizado no desenvolvimento do setor – cerca de 1,2 bilhão. Focamos em quatro eixos: distribuição e produção, desenvolvimento de roteiros e formatos, formação e exibição imediata. O eixo do desenvolvimento de roteiro é crucial porque é na base da indústria. Trata-se de ampliar a capacidade de construir histórias e roteiros e assim desenhar formatos de novas obras, para que os projetos entrem mais maduros na etapa de produção. A linha dos núcleos criativos, além desse objetivo de desenvolver a escrita do roteiro, atua para consolidar as empresas audiovisuais e para aprofundar o trabalho colaborativo da criação”, explica à Continente o diretor-presidente da Ancine, Manoel Rangel.

Até agora, houve três chamadas públicas para selecionar “propostas de incubação de núcleos criativos em empresas produtoras ou desenvolvedoras de projetos, voltadas ao desenvolvimento de carteira de propostas de obras seriadas e não seriadas e de formatos de obra audiovisual, brasileiros de produção independente”, com investimento de cerca de R$ 67,8 milhões do Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Indústria Audiovisual – Prodav. O alento é constatar que o Brasil de Todas as Telas segue impávido, a despeito das mudanças transcorridas no governo do país nos últimos meses.

Cada núcleo recebe entre R$ 900 mil e R$ 1 milhão e se alicerça a partir de uma produtora como viga-mestra e de um realizador como líder criativo. Um prazo de 18 meses se estabelece para que surjam os primeiros resultados e, a partir daí, os núcleos podem ser renovados. Do Pará ao Rio Grande do Sul, dezenas de diretores, produtores e roteiristas estão participando de reuniões mensais para lapidar suas ideias originais ou até mesmo já filmando seus primeiros episódios. É o caso, por exemplo, da cineasta paraense Jorane Castro, líder do primeiro núcleo da Região Norte, instalado a partir de outubro de 2014. Sob sua tutela estão em produção três longas ficcionais, duas séries documentais e uma de ficção. Ela, que não dirigirá projeto algum, ressalta a importância para a formação: “O núcleo tem 20 pessoas, entre pesquisadores, produtores, roteiristas e consultores. Todos já tinham experiência, mas essa confrontação com um projeto financiado criou uma consciência profissional. Isso é o mais importante: a profissionalização das pessoas envolvidas”.

Jorane Castro conta que todos os projetos do núcleo lançam um olhar “para a própria região”. “Optamos por desenvolver projetos que nunca foram feitos na Amazônia. Abordamos, entre outros temas, o tráfico de drogas na fronteira Brasil/Bolívia, uma história interessante e contemporânea; a guerrilha do Araguaia na perspectiva do imaginário amazônico; e, na série documental, cujo piloto já filmamos, falamos sobre a cultura, um encontro inspirado no diálogo entre as sonoridades paraenses e as artes visuais”, contextualiza. Sua opinião sobre a chance de “amadurecer as ideias” é partilhada pelo cineasta pernambucano Marcelo Gomes, líder do núcleo ancorado na REC Produtores. “É um aprendizado imenso. Uma oportunidade valiosíssima de colocar nossas certezas em xeque e de nos influenciar por olhares de profissionais de diversas gerações que admiramos. Eles trazem outras visões do mundo para nossas histórias. Sinto que os roteiros saem cada vez mais enriquecidos a cada sessão do núcleo”, acredita.

Sócio da REC, o produtor João Vieira Jr. antecipa que na produtora são seis longas ficcionais em evolução – entre eles, Discontinued, com Marcelo e Cao Guimarães na escrita, que pretende “explorar a sexualidade de pessoas com mais de 70 anos”; Ne me quitte pas, de Armando Praça; e Depois daquela noite, de Sérgio Machado. Para ele, a experiência coletiva propiciada pelo núcleo criativo é “um luxo e uma necessidade”. “Nem sempre luxo e necessidade são incongruentes juntos ou antagônicos. É um luxo no sentido de possibilitar ao produtor abreviar o tempo de maturação de um roteiro: em vez de um roteirista escrever sozinho ou com um(a) colaborador(a), é como se você pudesse reunir uma equipe de consultores, especialistas, em torno do desenvolvimento de cada projeto. Para isso, é importante que o produtor selecione adequadamente esses projetos e que propicie um ambiente favorável à colaboração. Cabe a ele antever quais as necessidades específicas de cada projeto e facilitar o acesso a elas. Um projeto precisa de muita pesquisa, outro, de um consultor histórico e um terceiro, de um criador de diálogos”, pontua.

Os cineastas e roteiristas Hilton Lacerda e Karim Aïnouz aparecem entre os criadores do núcleo da REC Produtores e também em outros aglomerados criativos. Lacerda está no núcleo da Polo de Cinema, produtora estabelecida em São Paulo, e celebra o fato de poder trabalhar no aprimoramento de sete projetos para televisão. “É um núcleo todo feito de séries de ficção, desenvolvidas ao mesmo tempo, numa discussão permanente para nacionalizar a linguagem das séries brasileiras. De uma certa forma, esse núcleo também furou uma barreira; mais da metade dos projetos são relacionados a experiências baseadas em Pernambuco”, afirma.

Ele cita Lama dos dias, uma série ambientada entre 1990 e 1994, com direção dele e de Helder Aragão (DJ Dolores), sobre a ebulição cultural que desembocaria na eclosão do Manguebeat, e Chão de estrelas, um “desmembramento de Tatuagem, ambientado dentro de um núcleo de teatro em uma ocupação de prédio no centro do Recife”, com participação do grupo Magiluth. As duas séries já estão com contrato assinado para exibição no Canal Brasil e devem ser filmadas no primeiro semestre de 2017. A linguagem das séries também é objeto do processo de imersão artística liderado pelo cearense Karim Aïnouz desde maio deste ano. São duas e cinco longas de ficção em andamento. “Vejo a experiência dos núcleos criativos como um espaço para trocas e reflexão que não conheço em nenhum outro lugar no mundo. A troca é essencial e tem que ser feita na hora certa. Esta é a hora, não na sala da montagem, por exemplo”, comenta Karim.

O cineasta cearense, embora radicado em Berlim, dá aulas regularmente no Instituto Dragão do Mar, em Fortaleza, e quis cooptar “uma geração nova de roteiristas”. “Sou um líder que é muito mais um produtor, nesse sentido. Tentei juntar essa turma com dois objetivos: pensar uma estratégia de produção a longo prazo dentro do contexto cearense, no sentido concreto e de conteúdo, levando em conta a cidade e o estado; e trabalhar o audiovisual a partir dos gêneros. Vive-se hoje em dia uma crise gigantesca de público no cinema brasileiro. Quero que esses projetos se aproximem do público de maneira digna, apropriando-se de códigos com os quais ele está acostumado, mas numa perspectiva autoral. Serão filmes com personalidade. Cada autor tem sua caligrafia e a ideia é tentar exercitá-la a partir de alguns códigos”, exemplifica o diretor.

Serão cinco anos de trabalho, ele vislumbra. O primeiro ciclo voltado para o suspense, a partir de histórias de crimes. Um segundo momento, com o que ele chama de “núcleo das lágrimas”, para investigar o melodrama; e o terceiro, um olhar para o “bangue-bangue erótico e a pornochanchada”. A confluência de gêneros marca também o trabalho no núcleo estabelecido pela Cinemascópio Produções e liderado pelo realizador pernambucano Kleber Mendonça Filho. São duas séries documentais – Os filmes já começam na calçada, com direção do próprio Kleber, e Histórias de fantasmas verdadeiros para crianças, de Mariana Lacerda – e três longas de ficção: CPI, de Leonardo Sette, Hospital privado, de Juliano Dornelles, e Agente secreto, também de Kleber.

As reuniões vêm ocorrendo de maneira sistemática desde março deste ano. São encontros nos quais cineastas e roteiristas  cambiam suas impressões com as produtoras que se dedicarão a concretizá-los. “É uma atmosfera privilegiada em vários sentidos. Os projetos vão ganhando força por receberem esse outro olhar e vão crescendo também a partir desse intercâmbio, das sugestões, do afeto”, analisa a jornalista e cineasta pernambucana Mariana Lacerda. “Antes, você tinha uma ideia para o roteiro, escrevia em casa, ficava meses, anos até, trabalhando sozinho. Agora, pode trazer para discussão com pessoas que estão interessadas no seu projeto tanto quanto você”, complementa Juliano Dornelles. As duas séries – Histórias de fantasmas… e Os filmes começam… – foram aprovadas no edital mais recente do Funcultura/PE. “Trabalhamos com a perspectiva de filmar Histórias de fantasmas primeiro, mas não temos data ainda. É provável que seja no início de 2017. Seria o primeiro fruto do núcleo, o que é bastante emblemático nos tempos de hoje, quando pessoas ainda pedem a volta da ditadura militar no Brasil”, avalia a produtora Carol Ferreira, referindo-se ao enfoque da série, voltada a explicar a ditadura militar às crianças.

Além da expansão dos horizontes da criação audiovisual no Brasil (o critério de regionalização é elemento-chave nos editais, abrindo espaço, obrigatoriamente, para propostas da Região Norte, Nordeste e Centro-Oeste), o legado dos núcleos criativos é, para todos os profissionais ouvidos pela Continente, o reconhecimento do protagonismo do roteirista – “até porque regionalizar não é chegar com uma produtora em algum lugar fora do eixo, e, sim, expandir o processo de criação e amadurecimento dramatúrgico desses lugares”, observa Hilton Lacerda. A cineasta Renata Pinheiro, que aprovou o núcleo Corpo Estranho no edital mais recente, com cinco longas e duas séries de TV, valoriza a missão de “instigar os criadores” – entre eles, Sérgio Oliveira, Bárbara Wagner e Cecília da Fonte. “Durante muito tempo se criticou o roteiro brasileiro. Uma iniciativa como essa surge para que a escritura venha com pesquisa de linguagem, para que os roteiristas tenham as possibilidades de dedicação exclusiva com todas as condições necessárias. Tenho certeza de que a produção brasileira vai mudar bastante e que os filmes e as séries terão uma maturidade maior, e serão um reflexo mais preciso do Brasil, depois desses núcleos”, arremata. 

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