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Sobre a importância da ruína

Complexo de Angkor, em Siem Reap, é um convite à reflexão em torno da história e da memória das civilizações orientais

TEXTO Thiago Soares

01 de Setembro de 2016

Templo de Prasat ta Prohm foi construído no meio de densa floresta e é “engolido” pela vegetação

Templo de Prasat ta Prohm foi construído no meio de densa floresta e é “engolido” pela vegetação

Foto Thiago Soares

[conteúdo da ed. 189 | setembro 2016]

Na sequência final do filme Amor à flor da pele (In the mood for love), do diretor Wong Kar-wai, o personagem de Tony Leung, um jornalista que nutre um silencioso afeto por uma mulher casada, parece fazer uma ação inusitada. Vai a uma imensa ruína e, em vez de apenas contemplar aquele bloco de concreto e passado, dirige seu dedo a uma das “crateras” desta ruína. Toca nas paredes desgastadas pelo tempo. Parece acariciar a saudade. Ouvimos uma melodia, conjunto de violinos. O personagem, então, aproxima-se da pedra e, mãos dispostas junto à boca, cochicha algo. Mais melodia ao fundo. A câmera do diretor de fotografia Christopher Doyle passeia por paredes desgastadas pelo tempo, pelo cinza quase ocre de um lugar aparentemente vazio. Este homem é observado por um monge, ao longe, trajando laranja. Não ouvimos o que o personagem diz à ruína. Ou se diz algo. Mas essa cena final de Amor à flor da pele parece ser uma espécie de tributo à memória, carícia no passado, desejo de manter acesa alguma pista de que algo existiu. Uma situação, um encontro, uma possibilidade de amor.

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Chegamos a Siem Reap perto do meio-dia, faz calor, 38 graus, aquela umidade dos trópicos. Estamos numa viagem pelo Sudeste Asiático, que tem como destinos Bangcoc (capital da Tailândia) e Phi Phi (uma das mais famosas ilhas do Oceano Índico, notabilizada mundo afora por causa do filme A praia, com Leonardo di Caprio). Aparentemente, visitar o Camboja tem, como princípio, conhecer o complexo de templos Angkor, observar plantações de arroz e o andar de elefantes. O Camboja é um reino (o país se chama Kingdom of Cambodia), é preciso visto para entrar (que se tira na chegada no aeroporto mesmo, numa caótica fila com agentes de segurança franzindo testas e nos encaminhando para procedimentos inexplicáveis) e, numa certa medida, entramos num daqueles clichês sobre destinos exóticos da Ásia. Suor, ventiladores de teto, panos esvoaçantes, bicicletas, tuk-tuks (biclicletas motorizadas que funcionam como táxis).

Siem Reap é o destino mais turístico do Camboja (embora não seja a capital, que é Phnon Penh). A pequena cidade de 139 mil habitantes, formada por apenas cinco bairros, recebe 1,5 milhão de turistas por ano, 70% deles da própria Ásia, que vão em busca dos vestígios do Império Khmer, a primeira civilização  asiática de que se tem notícia. “Os templos do Camboja aqui em Siem Reap estão para o Oriente assim como Roma está para o Ocidente. É o berço da civilização, a primeira ideia que tivemos de cidade, de organização social e de devoção à religião”, diz Meg Koung, gerente do Borei Angkor Hotel & Resort, em que nos hospedamos – um hotel luxuoso cinco estrelas, cuja diária em apartamento duplo saiu pelo equivalente a R$ 200. O Camboja é também um dos mais baratos destinos da região, que integra a antiga Indochina, colônia francesa que reunia parte de territórios de Laos e Vietnã.

O país, um dos mais pobres do mundo, ficou famoso, recentemente, porque foi onde a atriz Angelina Jolie, depois das filmagens de Tomb Rider, que ocorreram no Angkor Thom, decidiu adotar uma criança cambojana. Parte da pobreza do Camboja e do enorme número de crianças nas ruas, sobretudo nos locais turísticos, deve-se a um episódio histórico: o sangrento – e corrupto – governo chamado Khmer Vermelho, que, entre 1975 e 1979, através de um suposto governo comunista, teria dizimado cerca de 2 milhões de pessoas. Por isso, hoje, através do turismo e de seu legado histórico no Complexo Angkor, o Camboja recupera sua frágil economia e incentiva a natalidade – não à toa, vemos muitas crianças em todos os lugares.

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Há quem diga que a beleza das ruínas está em mantê-las intactas, decrépitas. A ruína é uma política do presente, a reivindicação de uma história. “Neste mundo da velocidade, não há envelhecimento, apenas superação”, diz-nos Nelson Brissac-Peixoto, em seu provocador livro Cenário em ruínas. Para ele, tudo está permanentemente sendo demolido. “As criações fantasiosas preparam a si mesmas para se tornarem meros cenários ao serem construídas como fachadas decoradas ou mesmo para se tornarem meros cenários ou painéis publicitários”, relata. Por isso, chegar ao Complexo Angkor, em Siem Reap, é tão singular. Ali, as ruínas estão intactas. E orgânicas. O mais belo é ver as raízes de árvores seculares se amalgamando com as pedras, as paredes, os restos de janelas.

Um dos mais importantes patrimônios da humanidade, segundo a Unesco, o Complexo de Angkor é uma herança dos séculos IX ao XV, tempos do Império Khmer (não o Khmer Vermelho, que “usou” o passado para construir uma ditadura sanguinária), o primeiro momento civilizatório na Ásia. Como tudo é muito barato no Camboja, fechamos com um taxista, pelo equivalente a US$ 20, que nos pegasse no hotel, num veículo com ar-condicionado e nos esperasse em cada um dos templos. Sim, ar-condicionado não é luxo nesta cidade de 38 graus e sol a pino. Sem falar que o Complexo de Angkor tem cerca de 400 quilômetros quadrados e, entre um templo e outro, as distâncias podem variar de 100 metros a dois quilômetros.

O principal templo é Angkor Wat, tão importante, que está estampado em cédulas monetárias e na própria bandeira do país. Construído no século XVII, teve por objetivo a proteção do lugar e a religiosidade. É erguido sob as premissas do hinduísmo, por isso que vemos tantos indianos circulando no templo. Diante de um espelho de água e projetado para servir de contraluz no nascer do sol, há um fetiche turístico em acordar às cinco da manhã e ir ver o sol nascer no templo. O contorno das edificações pontiagudas no contraluz amarelado é, de fato, de tirar o fôlego. No entanto, nesta época de zika vírus, nós, brasileiros, ficamos paranoicos com o número exorbitante de mosquitos – portanto, repelente é atenuante e fundamental.

Caminhar pelo Angkor Wat é um exercício de beleza e sacrifício. A arquitetura de pedras parece absorver o calor, embora estar naquele espaço, com toda a história que aquilo comporta, é uma experiência que nos afeta. Está no Angkor Wat o que primeiro se chamou de “casa” no Oriente. Também as primeiras ideias de “templo”. Os caminhos são de pedra. Os degraus, íngremes. Parecemos estar numa fortaleza. E talvez até seja. No centro, uma espécie de pátio que hoje tem uma grama verde e convidativa. É ali que muitos visitantes sentam, meditam, parecem ouvir o calor. Converso com uma turista inglesa que tentou fazer o trajeto ao Angkor Wat de bicicleta. Desistiu. Suada, ofegante, ela toma uma água de coco enquanto exalta: “Aqui tudo é lindo e místico”.

No caminho entre um templo e outro, somos abordados por elefantes que outrora serviam de transporte de carga e para a agricultura e hoje fazem a festa dos selfies dos turistas. Mesmo pequena, Siem Reap, às vezes, tem trânsito de cidade grande, que mistura carros, tuk-tuks, motos, bicicletas e elefantes. A paisagem aparentemente caótica parece não combinar com a tranquilidade que é o Angkor Wat. E não combina. Porém, o motorista que nos conduz durante o passeio, explica: “O maior legado dos budistas é conseguir meditar em meio à loucura das grandes cidades, esta é a verdadeira virtude da meditação”. Enquanto o motorista fala, avistamos o Bayon, conjunto de pedras que traz rostos de chefes e divindades esculpidos – lembro-me da Ilha de Páscoa, daqueles rostos estáticos e gigantes. Como conseguiram fazer aquilo? O humano e suas dúvidas.

Outro impressionante templo do Complexo de Angkor chama-se Prasat Ta Prohm: construído em meio a uma densa floresta tropical, árvores retorcidas cresceram sobre e entre ruínas, criando uma atmosfera intrigante e macabra. O lugar serviu de cenário para o filme Tomb Rider e também para a relação contraditória da atriz Angelina Jolie com o Camboja. Contraditória porque, ao midiatizar a adoção de uma criança cambojana, a atriz chamou a atenção para um problema: o tráfico de seres humanos, neste caso, de crianças asiáticas, para ricas nações europeias e americanas. Parece estranho (e de fato é) que, depois da “adoção pop” de Jolie, aumentou em 20% o número de adoção de crianças para pais estrangeiros no país – segundo dados da organização Parenting Maternal and Child. O dado seria para se comemorar, não fosse uma questão: famílias pobres cambojanas estavam tendo crianças especialmente para adoção.

A reação a Angelina Jolie no país fez com que a atriz tentasse contribuir para pautar outras questões do Camboja na cultura midiática – e não apenas como “maternidade de adoção”. Em março deste ano, a atriz terminou as filmagens do documentário First they killed my father: A daughter of Cambodia remembers, baseado no livro de memórias da ativista Loung Ung, que narra os horrores que sofreu durante o Khmer Vermelho. Trata-se de uma espécie de biografia que conta em detalhes afetivos sobre as famílias cambojanas desfeitas em função do genocídio de cerca de 2 milhões de pessoas mortas em quatro anos durante o regime ditatorial cambojano.

Como lidar com a efemeridade do mundo? Na falta de referência com um objeto primeiro, na ausência do contato físico com os objetos e outros elementos presentes nesta temporalidade, perdemos o referencial. Passamos a ver o mundo como uma falsificação, um simulacro, uma aparência. “O indivíduo contemporâneo está à procura de uma identidade e de um lugar. No entanto, a mudança constante das imagens urbanas torna-o perdido em seu próprio tempo. Lugares perdem as suas referências”, reflete Nelson Brissac-Peixoto.

Ao estar presente no Angkor Wat, estamos, talvez, diante do nosso próprio passado. A ideia da personagem de Sônia Braga no filme Aquarius, que luta contra uma grande empreiteira para manter seu apartamento (sua memorabilia, sua história), parece ser metáfora do apagamento que algumas ideias de modernidade trazem. Por isso, é tão sui generis cruzar o mundo, passar mais de 20 horas dentro de aviões, entre conexões e aeroportos para, finalmente, estar dentro de uma ruína. A enorme ruína de Angkor Wat.

“O que seria a necessidade de retornar ao passado para buscar os referenciais que faltam ao homem no presente?”, questiona Nelson Brissac-Peixoto. “Casas que vão ser demolidas, lugares aos quais não podemos mais voltar. Por que manter a ruína?”. Ruínas seriam idealizações para um futuro nos lembrando do nosso passado. Na sua efêmera permanência no presente, a ruína nos leva em direção a uma ideia de memória comum e coletiva. “O perfil arquitetônico das cidades tornou-se fugidio; os edifícios agora não passam de estruturas frontais provisórias, de rápida obsolência, obedecendo a ciclos estilísticos cada vez mais curtos”, diz Brissac-Peixoto.

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Quando já estou deixando o Complexo de Angkor, lembro a cena final de Amor à flor da pele, um dos meus filmes favoritos. Templos, câmeras lentas, o personagem contando um segredo para a ruína. Vou ao Google e, sim, a sua sequência final foi gravada ali mesmo, no Complexo de Angkor, em Siem Reap, no Camboja. Duas observações: a visita àquele lugar nos transporta para a história da civilização oriental (como me contam inúmeros guias turísticos no local) e também para a história de algum sujeito que ali viveu, que construiu tudo aquilo para alguém, por algum motivo. Numa certa medida, a História e a Arte parecem se completar, enquanto as ruínas do Angkor Wat vão ficando para trás. 

 

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