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Pesquisas contemporâneas

Assim como ocorre no contexto nacional, no Estado, a dramaturgia tende aos processos de criação coletivizados e à expressão de subjetividades compartilhadas

TEXTO Márcio Bastos

01 de Setembro de 2016

Coletivo Angu encena 'Ópera', de Newton Moreno

Coletivo Angu encena 'Ópera', de Newton Moreno

Foto divulgação

[conteúdo vinculado ao especial da ed. 189 | setembro 2016]

Berço de grandes dramaturgos nacionais, entre eles o seminal e inescapável Nelson Rodrigues, Pernambuco é uma terra prolífica no campo da criação de histórias pensadas para os palcos. Assim como ocorre no resto do país, há, no estado, uma pujança da dramaturgia autoral, resultado do desejo dos autores – e dos grupos – de explorarem textos que refletem tanto a realidade que os cerca quanto temas de contornos mais abstratos e universais. Essa nova leva de criadores busca em seus processos, também, expandir as possibilidades da cena com métodos contemporâneos e que dialoguem com outras linguagens. Esse cenário, no entanto, ainda é marcado por falta de apoio do poder público e um mercado que incentive e promova esses artistas.

Terra do já citado Nelson, de Osman Lins, Hermilo Borba Filho, Joaquim Cardozo e Ariano Suassuna, que, apesar de paraibano, fez de Pernambuco casa de sua produção, o estado teve, com esses criadores, um período fértil no campo da escrita para o teatro, principalmente entre os anos 1960 e 1970. Constantemente revisitados nas décadas seguintes, até hoje são deglutidos, devorados, homenageados e ressignificados pelas novas gerações.

Em meados dos anos 1990 e com mais força a partir dos 2000, novos talentos começaram a despontar e oxigenaram a cena, ao apresentarem uma produção continuada e autoral, que indicava uma pesquisa aprofundada de linguagem. São trabalhos que partem da ânsia de criadores solo e grupos de traduzir em palavras anseios e pesquisas estéticas com DNA próprio. “Os textos sempre partem de demandas autorais, um ponto de vista do mundo, necessidade de dividir nossa subjetividade. Penso que os textos são respostas, o que devolvemos do que nos afeta no mundo que nos cerca”, afirma Newton Moreno, um dos principais expoentes dessa nova leva.

Radicado em São Paulo, Newton imprime em sua escrita ecos das suas origens e tradições. Com o grupo Os Fofos Encenam, produziu obras impactantes, como Memórias da cana, Assombrações do Recife Velho e Agreste. O seu Ópera foi montado pelo Coletivo Angu, grupo cujo trabalho busca textos não necessariamente dramáticos para encenar, como contos e romances.

Para Samuel Santos, d’O Poste Soluções Luminosas, autor de peças como A receita e O açougueiro, calcadas na pesquisa do Teatro Antropológico, a produção pernambucana, em consonância com a do Nordeste, tem desconstruído paradigmas, expandido suas possibilidades temáticas, ao mesmo tempo em que permeia suas obras de elementos do imaginário coletivo da região.

“O Nordeste é uma região mítica, um campo fértil para a criação dramatúrgica e a literatura em geral. Hoje, há essa tradição rural/sertaneja que se entrecruza com um violento processo de urbanização. Há um diálogo, ao mesmo tempo consciente e inconsciente, na dramaturgia feita em Pernambuco e no Nordeste em geral”, pontua.

PLURALIDADE
Seja na criação individual ou no processo coletivo, de grupo, os artistas pernambucanos têm levado aos palcos espetáculos que dialogam com angústias e pesquisas particulares da contemporaneidade. Um dos grupos de maior destaque no cenário local e nacional é o Magiluth, com dramaturgia e encenação de certa forma iconoclastas, sem preocupação com noções de tempo e espaço, investimento no jogo aberto e em um ritmo quase vertiginoso, permeado por referências pop e filosóficas, como fica explícito em obras como O ano em que sonhamos perigosamente e Aquilo que meu olhar guardou para você.

“Nosso processo de criação passa primeiro por uma pesquisa intensa, de referências mil. Lemos e ouvimos muita coisa, assistimos a outras tantas e, nos momentos finais, tudo isso é colocado na roda. Depois, passamos para jogos e workshops que vão estruturando essas propostas e me dando material para escrita. Perto do fim, recorremos aos ensaios abertos, nos quais vamos tendo um feedback de nossas propostas”, explica Giordano Castro, em geral, junto a Pedro Wagner, responsável por estruturar em dramaturgia as dinâmicas do coletivo.

Esse processo de criação conjunta tem sido cada vez mais difundido, mesmo quando se tem a figura de um dramaturgo para esquematizar as ideias. “Em teatro, nada nunca é totalmente individual, nem totalmente em grupo. O bom, o rico, o desafiador, é o trânsito entre o indivíduo e o coletivo, as negociações implicadas nesse processo, isso é o melhor do teatro”, aponta o pesquisador Luís Reis, autor de peças como A filha do teatro e Puro lixo – O espetáculo mais vibrante da cidade.

Para Alexsandro Souto Maior, do Grupo Engenho de Teatro, atualmente, é a pluralidade que dá a tônica das produções do estado. “Há o dramaturgo na sua torre de marfim, que também não abre mão de sê-lo, há a dramaturgia coletiva, colaborativa, do ator; há o dramaturgo que se torna o dramaturgista e se responsabiliza muitas vezes por sugestões de cena e de costurar a palavra que vai ao palco. Essa pluralidade não tem assassinado o dramaturgo, mas dado a ele outras incumbências que dialoguem com as necessidades do nosso fazer teatral contemporâneo. O dramaturgo nunca esteve tão vivo e plural”, reforça.

A multiplicidade de possibilidades teatrais também tem feito com que a dramaturgia se expanda. Textos não dramáticos, como romances e contos de Marcelino Freire, a exemplo de Rasif – Mar que arrebenta e Ossos, foram levados aos palcos pelo Coletivo Angu, por exemplo. Além disso, espetáculos que flertam com formas alternativas de fazer teatro, como os espetáculos domiciliares, costumam alicerçar suas dramaturgias em contos, colagens e formas narrativas menos convencionais, mais abertas ao contato com o público e a cena, como no trabalho dos autores Cleyton Cabral, Rodrigo Dourado e Junior Aguiar.

Outra vertente que tem revelado uma dramaturgia vigorosa é a voltada para o público infantil. Sem recorrer a estereótipos e lançando mão de recursos criativos na escrita, dramaturgos têm dado novo fôlego ao gênero em Pernambuco, a exemplo de Carla Denise, autora de Algodão doce (também lançado em livro) e Babau, e Luciano Pontes, da Cia Meias Palavras.

“Às vezes é difícil escrever para o nosso tempo, e a poética de cada dramaturgo reflete isso. Ainda vejo a presença de uma infância de outrora, estigmatizada de uma ingenuidade. A criança é um ser social, perversa, sensível e poética. E ela acaba não se identificando muito no que é dito e no que é mostrado em cena. Isso representa um grande hiato de comunicação e na visão de infância”, reflete Luciano.

LONGE DO CENTRO
Para além da efervescência da Região Metropolitana do Recife, grupos do interior têm investido em uma escrita que traduza sua realidade e linguagem. É o caso da Cia. Biruta, de Petrolina. Antônio Veronaldo, responsável pela dramaturgia do grupo, explica que, se na capital há dificuldades de formação de escritores, no interior, ela se intensifica.

“Como no Sertão e, mais precisamente, no Sertão do São Francisco, o dramaturgo é um ser quase não existente, restou se criar a nossa própria dramaturgia. Não ter espaços específicos para formar dramaturgos e mesmo oficinas constantes dificulta o surgimento de novos criadores e até o processo autodidata, pois os espaços para diálogos e conversa sobre o ofício são raros. Falta o investimento a longo prazo para o desenvolvimento de novos autores”, ressalta.

Bianca Lira, da Cia. Experimental de Teatro, de Vitória de Santo Antão, aponta  que, apesar da qualidade artística e técnica dos grupos do interior, esses ainda sofrem para ter acesso aos cursos de formação e divulgar suas obras.“É um trabalho árduo. Tem que amar o que se faz. São anos de segregações, preconceitos, falta de investimento, julgamentos acadêmicos sobre nossa literatura. Isso ainda se reflete hoje. Não na mesma proporção, mas de modo ainda presente. Precisamos de mais espaço, de mais reconhecimento e de mais investimentos”, pontua.

CARA E CORAGEM
Apesar de ser um local em que despontam talentos, é recorrente na fala dos artistas o problema da falta de incentivos em Pernambuco para o desenvolvimento e profissionalização desses autores, que, em sua maioria, contam com a curiosidade e o esforço em um processo quase autodidata. O esforço de artistas como Luiz Felipe Botelho, referência quando o assunto são cursos e ações para discutir o setor, é, em geral, minado pela falta de continuidade das políticas públicas.

“Sinto falta de cursos para dramaturgia em Pernambuco; São Paulo se arma lentamente para preencher essa lacuna. Sonho com uma Grande Escola Nacional de Produção de Textos, administrada pelo Ministério da Cultura e com sede em todas as regiões do país. Poderia ser um grande programa descentralizado para formação de escritores”, afirma Newton Moreno. Com um mercado editorial ainda resistente à publicação de obras teatrais – o que, consequentemente, não contribui na formação de um público leitor –, uma das alternativas encontradas é a busca por editais, que ainda são escassos.

“Pouco se publica de literatura dramática. Há projetos pontuais, alguns mais bem-sucedidos; mas, comparativamente em relação a outros gêneros literários, a publicação de peças teatrais ainda é bem restrita, dentro e fora de Pernambuco. Infelizmente, quase não se leem peças de teatro nas escolas, não se formam leitores para esse extraordinário campo da expressão humana”, lamenta Luís Reis.

Lançado em 2015, o Prêmio Ariano Suassuna de Cultura Popular e Dramaturgia, da Fundarpe, tem sido apontado como um ganho para o fomento para o setor, já que premia textos de dramaturgos locais. “Criar políticas culturais com um olhar para quem escreve para teatro também é um caminho que pode germinar bons frutos. E que o estado revele mais e mais dramaturgos. Tem gente pra escrever. Tem gente pra apreciar”, endossa Cleyton Cabral, vencedor da premiação na categoria teatro adulto com o texto Talvez sim, talvez não.

Para Carla Denise, é preciso ainda que essas ações se concretizem em um mercado consolidado, resistente. “O que vejo é o poder criativo, não vejo mercado. Mercado pressupõe compra e venda, circulação, geração de direitos autorais, em que o valor da obra também é monetizável. Há poucas oportunidades em que os dramaturgos são remunerados decentemente pra fazer o que sabem. Quantos aqui sobrevivem de suas peças?”, indaga. 

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