Seja na criação individual ou no processo coletivo, de grupo, os artistas pernambucanos têm levado aos palcos espetáculos que dialogam com angústias e pesquisas particulares da contemporaneidade. Um dos grupos de maior destaque no cenário local e nacional é o Magiluth, com dramaturgia e encenação de certa forma iconoclastas, sem preocupação com noções de tempo e espaço, investimento no jogo aberto e em um ritmo quase vertiginoso, permeado por referências pop e filosóficas, como fica explícito em obras como O ano em que sonhamos perigosamente e Aquilo que meu olhar guardou para você.
“Nosso processo de criação passa primeiro por uma pesquisa intensa, de referências mil. Lemos e ouvimos muita coisa, assistimos a outras tantas e, nos momentos finais, tudo isso é colocado na roda. Depois, passamos para jogos e workshops que vão estruturando essas propostas e me dando material para escrita. Perto do fim, recorremos aos ensaios abertos, nos quais vamos tendo um feedback de nossas propostas”, explica Giordano Castro, em geral, junto a Pedro Wagner, responsável por estruturar em dramaturgia as dinâmicas do coletivo.
Esse processo de criação conjunta tem sido cada vez mais difundido, mesmo quando se tem a figura de um dramaturgo para esquematizar as ideias. “Em teatro, nada nunca é totalmente individual, nem totalmente em grupo. O bom, o rico, o desafiador, é o trânsito entre o indivíduo e o coletivo, as negociações implicadas nesse processo, isso é o melhor do teatro”, aponta o pesquisador Luís Reis, autor de peças como A filha do teatro e Puro lixo – O espetáculo mais vibrante da cidade.
Para Alexsandro Souto Maior, do Grupo Engenho de Teatro, atualmente, é a pluralidade que dá a tônica das produções do estado. “Há o dramaturgo na sua torre de marfim, que também não abre mão de sê-lo, há a dramaturgia coletiva, colaborativa, do ator; há o dramaturgo que se torna o dramaturgista e se responsabiliza muitas vezes por sugestões de cena e de costurar a palavra que vai ao palco. Essa pluralidade não tem assassinado o dramaturgo, mas dado a ele outras incumbências que dialoguem com as necessidades do nosso fazer teatral contemporâneo. O dramaturgo nunca esteve tão vivo e plural”, reforça.
A multiplicidade de possibilidades teatrais também tem feito com que a dramaturgia se expanda. Textos não dramáticos, como romances e contos de Marcelino Freire, a exemplo de Rasif – Mar que arrebenta e Ossos, foram levados aos palcos pelo Coletivo Angu, por exemplo. Além disso, espetáculos que flertam com formas alternativas de fazer teatro, como os espetáculos domiciliares, costumam alicerçar suas dramaturgias em contos, colagens e formas narrativas menos convencionais, mais abertas ao contato com o público e a cena, como no trabalho dos autores Cleyton Cabral, Rodrigo Dourado e Junior Aguiar.
Outra vertente que tem revelado uma dramaturgia vigorosa é a voltada para o público infantil. Sem recorrer a estereótipos e lançando mão de recursos criativos na escrita, dramaturgos têm dado novo fôlego ao gênero em Pernambuco, a exemplo de Carla Denise, autora de Algodão doce (também lançado em livro) e Babau, e Luciano Pontes, da Cia Meias Palavras.
“Às vezes é difícil escrever para o nosso tempo, e a poética de cada dramaturgo reflete isso. Ainda vejo a presença de uma infância de outrora, estigmatizada de uma ingenuidade. A criança é um ser social, perversa, sensível e poética. E ela acaba não se identificando muito no que é dito e no que é mostrado em cena. Isso representa um grande hiato de comunicação e na visão de infância”, reflete Luciano.
LONGE DO CENTRO
Para além da efervescência da Região Metropolitana do Recife, grupos do interior têm investido em uma escrita que traduza sua realidade e linguagem. É o caso da Cia. Biruta, de Petrolina. Antônio Veronaldo, responsável pela dramaturgia do grupo, explica que, se na capital há dificuldades de formação de escritores, no interior, ela se intensifica.
“Como no Sertão e, mais precisamente, no Sertão do São Francisco, o dramaturgo é um ser quase não existente, restou se criar a nossa própria dramaturgia. Não ter espaços específicos para formar dramaturgos e mesmo oficinas constantes dificulta o surgimento de novos criadores e até o processo autodidata, pois os espaços para diálogos e conversa sobre o ofício são raros. Falta o investimento a longo prazo para o desenvolvimento de novos autores”, ressalta.
Bianca Lira, da Cia. Experimental de Teatro, de Vitória de Santo Antão, aponta que, apesar da qualidade artística e técnica dos grupos do interior, esses ainda sofrem para ter acesso aos cursos de formação e divulgar suas obras.“É um trabalho árduo. Tem que amar o que se faz. São anos de segregações, preconceitos, falta de investimento, julgamentos acadêmicos sobre nossa literatura. Isso ainda se reflete hoje. Não na mesma proporção, mas de modo ainda presente. Precisamos de mais espaço, de mais reconhecimento e de mais investimentos”, pontua.
CARA E CORAGEM
Apesar de ser um local em que despontam talentos, é recorrente na fala dos artistas o problema da falta de incentivos em Pernambuco para o desenvolvimento e profissionalização desses autores, que, em sua maioria, contam com a curiosidade e o esforço em um processo quase autodidata. O esforço de artistas como Luiz Felipe Botelho, referência quando o assunto são cursos e ações para discutir o setor, é, em geral, minado pela falta de continuidade das políticas públicas.
“Sinto falta de cursos para dramaturgia em Pernambuco; São Paulo se arma lentamente para preencher essa lacuna. Sonho com uma Grande Escola Nacional de Produção de Textos, administrada pelo Ministério da Cultura e com sede em todas as regiões do país. Poderia ser um grande programa descentralizado para formação de escritores”, afirma Newton Moreno. Com um mercado editorial ainda resistente à publicação de obras teatrais – o que, consequentemente, não contribui na formação de um público leitor –, uma das alternativas encontradas é a busca por editais, que ainda são escassos.
“Pouco se publica de literatura dramática. Há projetos pontuais, alguns mais bem-sucedidos; mas, comparativamente em relação a outros gêneros literários, a publicação de peças teatrais ainda é bem restrita, dentro e fora de Pernambuco. Infelizmente, quase não se leem peças de teatro nas escolas, não se formam leitores para esse extraordinário campo da expressão humana”, lamenta Luís Reis.
Lançado em 2015, o Prêmio Ariano Suassuna de Cultura Popular e Dramaturgia, da Fundarpe, tem sido apontado como um ganho para o fomento para o setor, já que premia textos de dramaturgos locais. “Criar políticas culturais com um olhar para quem escreve para teatro também é um caminho que pode germinar bons frutos. E que o estado revele mais e mais dramaturgos. Tem gente pra escrever. Tem gente pra apreciar”, endossa Cleyton Cabral, vencedor da premiação na categoria teatro adulto com o texto Talvez sim, talvez não.
Para Carla Denise, é preciso ainda que essas ações se concretizem em um mercado consolidado, resistente. “O que vejo é o poder criativo, não vejo mercado. Mercado pressupõe compra e venda, circulação, geração de direitos autorais, em que o valor da obra também é monetizável. Há poucas oportunidades em que os dramaturgos são remunerados decentemente pra fazer o que sabem. Quantos aqui sobrevivem de suas peças?”, indaga.