Documentar a produção cultural no Brasil não é tarefa fácil. Tampouco é grande o número de pessoas dedicadas a essa missão. Segundo a jornalista, pesquisadora e professora do curso de Comunicação e Artes do Corpo da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Christine Greiner, a prática de historiografar a dança ainda é muito recente e pouco trabalhada no meio acadêmico. “Há um crescimento de pesquisas a este respeito, mas as teses nem sempre chegam a ser publicadas e, quando o são, as redes precárias de distribuição não costumam facilitar o acesso”, pontua a pesquisadora, no prefácio de Acordes e traçados.
Essa afirmação de Greiner é determinante para se compreender a importância de um estudo como o realizado por Valéria e Roberta em Acordes e traçados: um reforço à ideia de que nós temos uma ampla e rica produção no campo da dança, mas, salvo exceções, não registramos e cuidamos de nossa memória.
“Eu acredito que essa carência tem a ver com o pouco tempo em que a dança adentrou no meio acadêmico. Produziam-se muitos relatos pelo ponto de vista do coreógrafo, mas, no Brasil, não temos essa cultura do registro entre os artistas da dança”, comenta a coordenadora do projeto Valéria Vicente, lembrando que o primeiro curso superior na área data de 1954, na Universidade Federal da Bahia, que, por muitos anos, foi o único do país.
O livro é um desdobramento do projeto RecorDança, da Associação Reviva (associacaoreviva.org.br/siterecordanca), fundado por Valéria, que desde 2003 realiza uma ação continuada de pesquisa e documentação da história da dança. No site, estão catalogadas e disponíveis para o público mais de 1.400 publicações sobre o tema, entre ensaios, recortes de jornais, entrevistas, documentários, perfis de profissionais e reprodução de cartazes e imagens de divulgação de obras e espetáculos.
PLURIVOCALIDADES
A partir do trabalho de 12 pesquisadores que integram o RecorDança, o Acervo Mariposa e o projeto Temas de dança, além de pesquisas desenvolvidas em trabalhos de conclusão do curso de Dança da Universidade Federal de Pernambuco, o livro traça um registro da memória recente da modalidade cênica no Recife. Para conseguir expressar a complexidade das consonâncias e dissonâncias de cada historiador em suas afinidades, referências e interesses, as autoras “emprestaram” a metáfora do acorde, do historiador José de Assunção Barros: assim como na música, as muitas vozes que, juntas, convergem e se harmonizam.
Além de artigos das coordenadoras do projeto, integram a obra textos de Tainá Veríssimo, Liana Gesteira, Djalma Rabêlo, Alice Moreira, Flávia Meireles, Jefferson Figueiredo, Daniela Santos, Nirvana Marinho, Elis Costa e um artigo-exposição da fotógrafa Ju Brainer. “A gente pensou em dar visibilidade às diferenças reflexivas e de interesses entre os autores. Um de nossos principais cuidados era não trazer uma visão única e oficial, mas propor diferentes enfoques sobre o tema. Essas formas acabam trazendo diferentes nuances e uma maior complexidade na pesquisa”, comenta a pesquisadora.
Acordes e traçados articula relações entre a escrita e a história, através da leitura da memória, abordando a criação, a construção dramatúrgica de vídeodanças e dos processos de transformações dos grupos e coletivos, além de seus papéis pedagógicos de formação e ensino. Em seu artigo, por exemplo, Valéria realiza um experimento de autoentrevista, partindo da experiência de pesquisa iniciada no projeto RecorDança em 2003. Questionamentos sobre como se deu o processo de profissionalização e a luta para conseguir manter a expressão como meio de sobrevivência ajudam a traçar um histórico recente sobre os momentos de efervescência cultural na cidade, resgata os nomes de pessoas, grupos e obras que participaram da promoção e criação em dança a partir dos anos 2000.
Outros trabalhos abordam a contribuição das mulheres na Dança Afro do Recife (Daniela Santos), o olhar pedagógico sobre o frevo (Jefferson Figueiredo) e uma reflexão sobre a vivência artística da dança na cidade, através da observação e análise de seus figurinos (Djalma Rabêlo). Isso só para pincelar um pouco a obra, que vai além nas temáticas e reflexões.
ACERVO
Segundo Valéria Vicente, o processo de construção do acervo que deu origem à pesquisa do livro se dá em dois lugares: um mais duro e técnico, que é o de recolher materiais, classificar e catalogar; e o lugar da reflexão sobre esse conteúdo: “Desde que a gente fundou o RecorDança, percebemos a necessidade de que as pesquisas tivessem outros formatos de publicação, trazendo também uma reflexão sobre essas informações”.
A coordenadora do projeto ainda revela que, quando o acervo surgiu, a pesquisa se deu de uma forma muito física. Literalmente abrindo armários e gavetas, à procura de recortes que pudessem contar um pouco dessa trajetória cênica. “Na época, a internet ainda era novidade, digitalizar os documentos era uma ideia superinovadora e era muito caro fazer as cópias dos vídeos”, explica.
Hoje, com as facilitações da internet, fica mais fácil pensar o passado recente, mas, conta, tem-se muito pouco acesso sobre a história antiga da dança no Brasil. “E o nosso trabalho, enquanto acervo, é muito duro. Não podemos disponibilizar esses conteúdos sem verificar essas informações presentes”, garante.