A fricção entre uma obra reconhecida mundialmente como um dos maiores feitos arquitetônicos do século XX, a fúria com que foram tratados dezenas dos homens que se devotavam a construí-la e o soterramento dessa memória é uma das chaves de Forma livre, videoinstalação de 2013 de Clara Ianni. Havia um outro trabalho dessa paulistana nascida em 1987 no ousado conjunto amealhado pelo 19º Videobrasil: Linha, também de 2013. Tratava-se de “uma série de gravuras de linhas que marcaram a invenção do território brasileiro, derivadas de tratados históricos ou conflitos; deixo só as linhas, o que elas têm de conteúdo político e como elas desenham e redesenham a sociabilidade e o afeto de humanos com humanos e sociedades com sociedades”, nas palavras da própria artista visual. Forma livre e Linha lhe renderam um dos prêmios de residência internacional do festival.
Graduada em Artes Visuais pela Universidade de São Paulo, com mestrado em Visual and Media Anthropology pela Freie Universität, de Berlim, Clara Ianni promove mergulhos investigativos em suas obras, com foco nos elos que se estabelecem entre arte, política, sociedade contemporânea e ideologia. Da 31ª Bienal de São Paulo, em 2014, por exemplo, participou com o vídeo Apelo, em que dividiu a autoria com Débora Maria da Silva, fundadora do Movimento Mães de Maio – criado por mulheres que perderam seus filhos assassinados pela Polícia Militar de São Paulo em maio de 2006, em resposta aos ataques criminosos perpetrados pelo Primeiro Comando da Capital/PCC. As sequências, filmadas no Cemitério de Perus, na zona norte da capital paulista, evidenciam a naturalização das mortes cometidas “em nome da lei”e, mais uma vez, a repressão da memória – o local foi um dos pontos de desova para cadáveres de presos políticos durante a ditadura militar que vigorou até 1985 no Brasil.
Em Natureza morta ou estudo para ponto de fuga (2011) e Cubo (2010) a violência surge com outras camadas de leitura. Neste último, parte da exposição coletiva Trash Metal/Quem tem medo?/Vão, na galeria paulistana Vermelho, com curadoria da artista Dora Longo Bahia, um objeto montado a partir de chapas de zinco era apresentado com um taco de beisebol ao lado, dando ao visitante a oportunidade de saciar suas pulsões de agressividade, destruindo-o. No primeiro, que integrou uma coleção chamada Untitled na 12ª Bienal de Istambul, nove chapas de alumínio se ladeiam, em perfeita simetria, com dezenas de perfurações de balas disparadas por armas de calibres distintos (38, 22 mm, 12, entre outros). Muitos furos se chocam com a rigidez da igualdade das chapas, idênticas e retangulares, como se os rastros violentos colidissem, ironicamente, com a monótona repetição do cotidiano.
Em sua obra mais recente, a série de fotografias Tratado, a artista desconstrói uma imagem obtida no momento em que o presidente interino do Brasil, Michel Temer, é empossado. Qual o sentido daquela foto e dos detalhes das mãos – todas brancas, todas masculinas – que assinam documentos preparados para legitimar um governo nascido da refutação a uma eleição democrática? Porém, assim como nas esculturas Trabalho concreto (2010) e Totem (2011), não se deve esperar respostas imediatas de Clara Ianni. Uma janela para a reflexão é o convite que ela faz, provocando os espectadores, com pertinência e acuidade, a se relacionar com suas obras a partir de uma indagação premente: qual é o lugar da arte na contemporaneidade saturada de informações, excessos e significados?