Arquivo

A vez das crianças

Aplicativos apresentam potencial para estimular a criatividade da meninada, e não apenas ser um veículo de entretenimento no estilo “babá eletrônica”

TEXTO Yellow

01 de Setembro de 2016

"Criação de desenhos, quadrinhos, animação e música são algumas das possibilidades dos programas para criança"

Arte Janio Santos

[conteúdo da ed. 189 | setembro de 2016]

Em restaurantes,
salas de espera, e em todos os lugares onde haja pais e filhos, é comum encontrar crianças em silêncio, atraídas por celulares, hipnotizadas pela resposta imediata das telas sensíveis ao toque. O fenômeno é parecido com o que aconteceu outrora com as chupetas, que traziam a paz aos mais irascíveis e famintos bebês. Os adultos, aliviados, apreciam durante algum tempo os poderes que os aparelhos exercem sobre os pequenos, a capacidade de entretê-los em situações tediosas da vida em sociedade. 

Torna-se regra social, então, que mães e pais mantenham permanentemente instalados em seus smartphones ou tablets alguns aplicativos para uso das crianças, que possam discipliná-los temporariamente em salas de espera, longas viagens de avião ou até em encontros culturais incapazes de manter a atenção dos seus filhos. 

Se o abuso de chupetas já foi acusado de causar problemas respiratórios e desvios na arcada dentária, pediatras, pedagogos e psicólogos têm observado que a introdução precoce de jogos digitais, ou sua utilização desregrada em qualquer idade, também pode causar dificuldades à formação da linguagem das crianças, problemas de atenção, irritabilidade e distúrbios no sono.

“Vejam como o meu filho é inteligente!”, costumam pensar e afirmar os pais quando veem crianças navegando nessas interfaces. No YouTube, abundam vídeos de crianças com menos de dois anos de idade que já são capazes de escolher seus apps favoritos e desvendarem as regras de jogos. Na verdade, não existe nada de inteligente nas interfaces tangíveis. A razão da popularidade dos dispositivos móveis entre os menores se deve, em grande parte, à sua facilidade de uso.

Douglas Engelbart, criador do mouse e da interface gráfica, acreditava que o potencial dos computadores seria melhor explorado aproximando a comunicação homem-máquina da linguagem da máquina. O NLS, computador que desenvolveu para a ARPA e exibiu em 1968, já possuía interface gráfica, trabalho colaborativo em rede e muitas inovações que só seriam introduzidas nos computadores comerciais décadas depois. No entanto, para ser capaz de usar o NLS, o operador (um soldado, já que se tratava de um projeto militar) precisava passar por um treinamento de três meses, desenvolvendo a proficiência em uma nova linguagem. O mercado abordou de maneira diferente os computadores e suas interfaces.

A popularização dos computadores pessoais só veio a acontecer durante as décadas de 1980 e 90, graças à criação de interfaces gráficas fáceis de usar. O desafio dos fabricantes era criar um produto cada vez mais intuitivo, que permitisse às pessoas comprarem um computador como se fosse mais um eletrodoméstico: comprar, levar pra casa, ligar na tomada e usar.

A influência de criadores como Steve Jobs levou ao desenvolvimento de interfaces cada vez mais belas e simples, chegando ao cúmulo do iPhone e do iPad, que, com suas telas sensíveis ao toque, podem ser usados por um primata em poucos minutos. Sim, já existem vários vídeos de macacos e chimpanzés aprendendo a usar tablets e jogando Angry Birds.

O problema da simplicidade e facilidade de uso dessas interfaces é que limitam nossa comunicação a gestos muito simples. O de apontar, por exemplo, é um dos primeiros recursos linguísticos que aprendemos, ainda bebês. Quando limitamos a interação de homens e máquinas a dedos em riste, comunicando “quero isto”, ou pinçamentos indicando “menor” e “maior”, é como se estivéssemos regredindo nossa linguagem a grunhidos. E é difícil enunciar filosofia ou poesia apontando e grunhindo.

Por isso, o uso de aplicativos muito simples por crianças corre o risco de as limitar a entender os computadores como veículos para o consumo de mídia, ou para jogos e brincadeiras de interações muito simples. Os aplicativos mais populares entre as crianças podem, em alguns casos, estimular seu raciocínio lógico ou seus reflexos, mas, em sua maioria, são inúteis brinquedos interativos, como o infame gato de olhos esbugalhados que só tem uma piada: repete o que diz o usuário, com voz de gato.

Devemos lembrar que os smartphones e tablets não são apenas versões portáteis de aparelhos de tevê com telas sensíveis ao toque. São computadores potentes, com capacidades integradas de captura de fotografia, vídeo e áudio, sensores de movimento e GPS. Esses pequenos aparelhos possuem capacidade de processamento de causar inveja a qualquer computador de mesa de 10 anos atrás, e com eles somos capazes de criar música, filmes, animação, editar fotos, publicar blogs e podcasts.

Alguns deles são alternativas “para crianças”, que não subestimam sua inteligência e criatividade, que podem descortinar os processos de produção midiática, para que elas cresçam com um olhar mais crítico sobre a cultura que consomem. Esses apps ensinam que computadores não são apenas objetos, são ferramentas. Eis alguns deles:

DESENHO E PINTURA
Sketchbook é um dos mais completos apps de desenho disponíveis. Possui pincéis diferentes, e apresenta conceitos de imagem digital, como camadas e canal alpha (transparência). A Autodesk, que o desenvolve, é uma das mais importantes empresas de software de imagem, como o AutoCad e 3dStudio. Além de iOS e Android, o programa também tem versões para Mac e Windows; então, desenhos iniciados em um aparelho podem ser facilmente abertos e editados em outro.

QUADRINHOS
Dentre vários apps de criação de quadrinhos para iPad que funcionam mais ou menos da mesma maneira (escolha um leiaute de página, insira fotos de sua biblioteca nos quadrinhos e acrescente balões de diálogo), destaca-se o Comic Life, da Plaq. Enquanto outros aplicativos tentam vender pacotes de gráficos, ele já vem completo, o que compensa o preço maior (U$ 4,99). Ele permite aplicar filtros de cores às fotos, o que abre possibilidades para resultados interessantes e engraçados. Um recurso exclusivo e muito útil é a aba de roteiro, com a qual podemos escrever todo o texto da HQ para apenas posicionar nas páginas depois. Possui versões para Mac e Windows.

FOTOGRAFIA
iMotion, da FingerLab, é um aplicativo de iOS especializado em time-lapses. O usuário escolhe um intervalo de tempo, e deixa o dispositivo parado em um lugar, e o app tira uma sequência de fotos neste intervalo de tempo, criando um vídeo que pode ser salvo na pasta de fotos. Ótimo para usar em longas viagens de carro ou avião, e capturar o movimento da paisagem e das nuvens, em restaurantes, para fazer a comida desaparecer do prato, ou em grandes eventos, nos quais pode ser registrada a chegada do público.

ANIMAÇÃO
Um dos apps mais espetaculares desta lista é o Toontastic. Com ele, crianças podem criar animações como se os personagens fossem brinquedos. Escolha uma cena, alguns personagens e comece a gravar! O iPad ou iPhone registra os movimentos dos personagens enquanto a criança os movimenta em tempo real e grava sua voz, inventando diálogos. O sistema sugere a criação de histórias em um formato narrativo padrão (com cenas de apresentação, conflito, desafio, clímax e desfecho), e permite ao autor escolher trilhas sonoras para cada cena. Depois, a animação pode ser publicada em um site do fabricante, cujo link é público, para ser divulgado entre amigos e família. Embora o aplicativo ofereça pacotes de personagens e cenários, o mais legal é que ele permite gratuitamente a criação de personagens e cenários. Sua fabricante, a californiana Launchpad, foi adquirida em 2015 pela Google, e especula-se que o aplicativo venha a ser incorporado a uma nova versão do YouTube, exclusiva para crianças.

Stop Motion Studio, da Cateater, é um app gratuito para Mac, Windows, iOS e Windows Phone, e permite criar animações a partir de sequências de fotos de objetos. Sua interface simples e sem graça esconde um programa completo, com todos os recursos, como onion skin, edição de frames, adição de som e controle de velocidade, para criar as mais espetaculares animações de Legos, que podem ser publicados no YouTube diretamente do aplicativo. Animation Creator HD, da miSoft; é a escolha mais completa para quem quer fazer animação 2D tradicional no iPad (U$ 3,99), antes de usar as ferramentas profissionais disponíveis apenas para Mac e Windows, como os programas Flash e ToonBoom. Proporciona fazer quase tudo o que animadores de papel e lápis fazem. Trata-se de outro app de interface feia, porém mais poderosa que concorrentes como Animation Desk, da Kdan (U$ 4,99).

MÚSICA
Com seus microfones e alto-falantes integrados, dispositivos móveis são candidatos óbvios para plataformas de criação de música. Aplicativos simples, como Spire, da iZotope, permitem gravar até quatro faixas no iPhone, com o auxílio de metrônomo, e mixá-las antes de compartilhar com amigos ou banda.

Porém nenhum app de produção de música é tão completo e divertido quanto o GarageBand, da Apple. Um software de gravação de áudio destinado a músicos iniciantes, quando nasceu para os computadores Mac. Cresceu muito quando migrou para o iOS, graças à virtualização de instrumentos, como piano, sintetizadores, samples, baixo, guitarras e baterias, que podem ser tocados na tela sensível ao contato. Um investimento irrisório (U$ 4,99) para quem tem filhos com habilidade musical. A compra de acessórios como o iRig permite ainda a ligação de instrumentos de verdade ao iPad, transformando o GarageBand em um concorrente direto de programas profissionais, como Logic, Pro Tools e Ableton Live.

Para aprender música, existe uma infinidade de aplicativos, em todas as plataformas. O melhor deles, no entanto, é o Yousician, disponível para iOS e Android. Com uma interface divertida e gameficação do processo de aprendizado, ele ensina piano, violão, baixo ou ukulele. Dentro do aplicativo, é possível comprar lições mais avançadas, tornando seu uso interessante não apenas para principiantes, como também para músicos experientes.  

 

Publicidade

veja também

“O tempo que meu avô passou no Brasil impactou emocional e intelectualmente sua vida”

O corpo, a geometria e o vento

Sobre a importância da ruína