Arquivo

A busca pelo aspecto experimental de escrita

Tanto os autores que praticam a chamada “dramaturgia de gabinete” quanto os de “sala de ensaio” têm abandonado as formas tradicionais, realizando obras de caráter fragmentário

TEXTO Pedro Vilela

01 de Setembro de 2016

Espetáculo ‘Vida’, da Cia Brasileira de Teatro (PR), dirigido por Marcio Abreu

Espetáculo ‘Vida’, da Cia Brasileira de Teatro (PR), dirigido por Marcio Abreu

Foto Marco Novack

[conteúdo da ed. 189 | setembro 2016]

Se um estrangeiro chegasse à cidade de São Paulo no ano de 2014, e examinasse o que estava em cartaz, teria a impressão de que o teatro brasileiro acabara de ser inventado. Essa afirmação encontra-se em matéria publicada no jornal Estado de S. Paulo, sob o título Teatro renega dramaturgia brasileira dos séculos 19 e 20, na qual a jornalista Maria Eugênia Bezerra aponta que, com exceção de Nelson Rodrigues e Plínio Marcos, regularmente visitados, o que se via em determinado momento era uma profusão de novos autores em cena. Passados mais de dois anos, o panorama apontado pela jornalista para a capital paulistana não sofreu modificações, até mesmo em diferentes regiões do país.

Digna de múltiplos olhares e vozes, a dramaturgia brasileira apresenta inúmeras possibilidades de temas e procedimentos em sua atualidade, marcada por um terreno extremamente fecundo a partir de uma excelente safra de autores. Se, hoje, fôssemos obrigados a condensar suas principais tendências em apenas uma palavra, esta seria diversidade.

Ao olharmos um pouco para a história da dramaturgia mundial, percebemos claramente ciclos de criações, evidenciados pela forma e conteúdo com os quais foram conduzidos. Encontramos, por exemplo, o melodrama burguês no final do século XIX, que tinha por objetivo evidenciar temas do cotidiano social rompendo com o idealismo romântico, e o Realismo, que teve no russo Anton Tchekhov (1860–1904) seu grande representante, inovando no diálogo dramático e retratando o declínio da burguesia, em obras como A gaivota e O jardim das cerejeiras.

Ainda que recorrêssemos à recente história da dramaturgia brasileira, esses ciclos não seriam encontrados facilmente em nosso país. ¨De todo modo, no campo de representação das relações interpessoais não são poucas as tentativas de encontrar sínteses para aquele imaginário diverso do país que comporta, a um só tempo, uma cultura urbana correlata à das grandes megalópoles mundiais, com as marcas de atomização e individuação radicais da vida; e as manifestações de um ambiente cultural antropologicamente arcaico, com suas regras próprias de convivência, em que prevalecem os laços de uma sociabilidade comunitária. No intervalo entre esses extremos, há um sem-número de autores e experiências que tentam traduzir essa complexa interação entre valores, o que demanda soluções formais por vezes específicas¨, como bem define o crítico Kil Abreu, no artigo intitulado Dramaturgias contemporâneas no Brasil, publicado em francês no livro Théâtres brésiliens – Manifestes, mises en scène, dispositifs, pela Universidade de Provence.

Atualmente, seja pelos que possuem perfil de uma ¨dramaturgia de gabinete¨ – nome comumente dado à produção de um autor que realiza sua escrita de modo solitário, apresentando-a apenas quando julga finalizada –, seja no ¨dramaturgo de sala de ensaio¨, aberto a questionamentos durante seu processo, aponta-se nos dois casos uma característica em comum: a busca pelo aspecto experimental de escrita. O que se vê é o recorrente abandono das formas tradicionais – marcadas pelo respeito ao gênero dramático que privilegiava os diálogos entre os personagens ou pelo gênero épico, no qual o caráter narrativo possuía seu foco. Cada vez mais, as obras que chegam aos nossos palcos possuem uma escrita marcada por fragmentações, abandonando noções como enredo, tempo, espaço, lugar, representação, navegando pelo que o pesquisador alemão Hans-Thies Lehmann define como pós-dramático.

Tal experimentalismo encontra amparo principalmente na comunhão com as pesquisas desenvolvidas no cerne de diferentes grupos teatrais. Como bem completa Abreu, “é no teatro de grupo, quando colocado em perspectiva experimental, que as condições ideais para o surgimento de novas dramaturgias têm sido plantadas. É que o grupo tem a seu favor o fato de contar com um núcleo de trabalho que tende a se afinar cada vez mais com o tempo, em projetos artísticos mais ambiciosos e pensados para um tempo de resolução mais lato, em que os propósitos formais, políticos, de linguagem e de pensamento têm espaço maior para evoluir, e em sintonia comum”.

Sem pretensões de definir esse modelo como o único exitoso, essa afirmação pode ser reiterada ao lançarmos um olhar sobre a recente produção teatral de destaque em nosso país, na qual claramente seus exponenciais comungaram de processos criativos em coletivos, como os casos de Gracê Passo junto aos mineiros do Grupo Espanca!, de Alexandre dal Farra com o Tablado de Arruar e de Jô Bilac e o seu Teatro Independente (leia os perfis destes criadores e de Leo Moreira e Rafael Martins ao longo desta matéria).

Torna-se importante destacar que o grau de interseção entre esses dois polos apontados (autor x grupo) varia de acordo com cada procedimento de escrita. O mais recorrente é fruto dos chamados processos colaborativos, nos quais o espetáculo é construído a partir de improvisações na sala de ensaio, sem hierarquia no diálogo entre os participantes, mas com a clareza das responsabilidades individuais, cabendo então ao dramaturgo a “redação” de um texto final.

Como define o ensaísta Joseph Danan, “experimentações cênicas, que o olho do dramaturgo (que difere, nessa atividade, do olho do encenador tão somente porque não dirige o trabalho e permanece, então, mais exterior que o ‘olhar exterior’ daquele) observa, analisa, seleciona, adota, recusa” e retribui em forma de palavras – faladas e escritas. São eles que se arriscam na penetração surda no reino das palavras, tal como Drummond preconizava no poema Procura da poesia.

CONCEITOS MOVEDIÇOS
A definição de Danan, que procura impor limites para as funções de dramaturgos e encenadores, é facilmente posta abaixo quando observamos práticas recentes em nosso país, com um constante número de encenadores acumulando o papel de dramaturgo em suas obras, reiterando a impossibilidade de distanciamento desses ofícios no teatro contemporâneo.

Para além dos já citados, observa-se essa prática na Cia Brasileira de Teatro (PR), com seu diretor/dramaturgo Marcio Abreu em espetáculos como Vida e Projeto Brasil, nos paraibanos do Teatro Alfenim, com Márcio Marciano em Quebra-quilos e Deus da fortuna, e do carioca Diogo Liberano, com o seu Teatro Inominável, nas montagens de Vazio é o que não falta, Miranda e Sinfonia sonho.

Esse último amplia ainda mais a relação entre as funções dos espetáculos, como no celebrado monólogo O narrador, protagonizado pelo artista. Liberano também é uma das referências de uma prática corriqueira na qual dramaturgos investem na adaptação e atualização de textos clássicos, como realizou em A Santa Joana dos Matadouros, de Bertolt Brecht, e Os sonhadores, baseada no romance The dreamers, do escocês Gilbert Adair, mundialmente conhecido pela adaptação cinematográfica dirigida por Bernardo Bertolucci.

Outro autor que, além de trabalhar perante a escrita de textos inéditos, comunga desse mesmo procedimento é o pernambucano Newton Moreno, como em dois sucessos de sua trajetória: a adaptação do livro Assombrações do Recife Velho, de Gilberto Freyre, e a releitura do texto Álbum de família, de Nelson Rodrigues, no espetáculo Memória da cana.

Outra função que confunde a cabeça dos espectadores e merece ser mais bem-definida diz respeito ao que vem sendo denominado como dramaturgista. Em seu Dicionário do Teatro, o francês Patrice Pavis esclarece que o dramaturgo é o “autor de dramas”, profissional responsável por “escrever” o texto a ser encenado. O dramaturgista seria, portanto, uma espécie de “conselheiro literário e teatral agregado a uma companhia, a um encenador ou responsável pela preparação de um espetáculo”, ou seja, alguém capaz de, além de estruturar roteiros ou textos, amparar os estudos teóricos para a montagem, tendo um grau maior de envolvimento no processo de concepção da obra.

Para além da investigação em torno de formas e procedimentos de criação, torna-se interessante refletir os aspectos individualizantes de cada autor, uma vez que, mesmo funcionando como condensador de desejos de um coletivo, como agentes individuais ou em franco diálogo com obras já escritas, individualizam-se justamente pela definição de uma poética própria. Demonstram, com clareza, o rigor com que se dedicam ao ofício, recorrendo às suas obsessões artísticas e tornando – através das palavras, das construções narrativas e de seus lirismos – a palavra viva em cena.

ANTECEDENTES HISTÓRICOS
O teatrólogo Sábato Magaldi, falecido em julho deste ano, evidencia em seus escritos que, ainda que a dramaturgia em nosso país por um longo tempo estivesse vinculada a modelos europeus, tivesse já nascido brasileira. Para ele, escritores como José de Anchieta, marcado pelo auto vicentino e pela tradição religiosa medieval e Gregório de Matos, com raízes no barroco espanhol e italiano, nunca foram capazes de se confundir com a produção europeia, por características de língua, personagens e cenários profundamente vinculados ao nosso solo.

Entretanto, ao longo dos séculos XIX e XX, observou-se no país uma invasão estrangeira de outra ordem, fruto de um lucrativo comércio de traduções de textos provenientes da Europa e dos Estados Unidos. O autor nacional caiu em desuso, tendo as grandes companhias da época recorrido a escritores como Goldoni, Górki, Pirandello, Tenesse Williams, Arthur Miller, Eugenne O’Neill, entre outros. O abismo criado foi de tal tamanho, que, no início da década de 1950, com o propósito de colaborar para a afirmação do autor nacional, o Executivo sancionou a Lei n° 1.565, que estabeleceu a obrigatoriedade de montagem, pelas companhias, de uma peça brasileira para duas estrangeiras, o que viria a ser conhecida como Lei de 2 x 1.

Torna-se difícil analisar o impacto dessa lei no âmbito da produção cênica nacional, uma vez que ela foi promulgada no mesmo período de profundas modificações no modo de se conceber teatro em nosso país. Pesquisadores apontam que é com a encenação do texto Vestido de noiva, no ano de 1943, que nasce o teatro moderno brasileiro. Se, por um lado, encontramos a maestria de encenação do diretor polonês Zbigniew Ziembinski, que chega ao Brasil fugindo da II Guerra Mundial, por outro, o país se depara com o que viria a ser considerado o maior dramaturgo de nossa história: Nelson Rodrigues.

Influenciado claramente por uma estética expressionista, em que o exagero, a deformação ou a obsessão dos personagens se fazem presentes, Vestido de noiva revoluciona também pela intersecção de três planos para o desenvolvimento de seu conteúdo: o plano da realidade, o plano da alucinação e o plano da memória. Autor de 17 obras para o  teatro, que em sua maioria foram adaptadas para o cinema, Nelson permeia o imaginário do povo brasileiro, por vezes apontado como gênio, em outras, como “devasso moral”. Coube ao escritor Ruy Castro, autor de sua biografia, intitulá-lo da melhor forma: anjo pornográfico.

Outro nome de destaque em nossa recente história é Gianfrancesco Guarniere. Nascido em Milão, filho de músicos antifascistas que decidiram mudar-se para o Brasil em 1936, foi responsável por textos voltados à realidade nacional, discutindo com densidade dramática problemas sociopolíticos. Sua trajetória está diretamente ligada ao Teatro de Arena (SP), marco da resistência cultural e conscientização popular no período militar, em que estreou como dramaturgo em 1956 com Eles não usam black-tie. Em parceria com Augusto Boal, escreveu também os musicais Arena conta Zumbi e Arena conta Tiradentes, de grande impacto na época. De acordo com Décio de Almeida Prado, “Guarnieri escreveu com facilidade e fecundidade tanto na década de 1960 quanto na de 1970, antes e depois de 1964, porque tinha durante esse tempo todo um claro projeto político em vista. Sabia a favor do quê ou contra o quê manifestar-se. (…) Se, na qualidade de escritor engajado, Guarnieri nunca se recusou a tomar partido, na de poeta dramático, equilibrou sempre a sua obra entre dois polos: a sedutora simplicidade das grandes explicações históricas – no caso, o marxismo – e a extrema complexidade do mundo real e dos homens. Daí o paradoxo (comum a toda boa literatura) desse teatro: não é preciso partir de suas premissas ideológicas para admirá-lo enquanto lição humana e realização estética”.

Conhecido na teledramaturgia brasileira por novelas como Ossos do Barão (1973) e Gaivotas (1975), é no teatro que Jorge Andrade se configura como um clássico da dramaturgia moderna brasileira. Para o crítico Anatol Rosenfeld, Andrade era capaz de “acrescentar à visão épica da saga nordestina a voz mais dramática do mundo bandeirante”, como pode ser visto na compilação Marta, a árvore e o relógio, composta por 10 textos. Objeto de investigação de diferentes pesquisadores, é impossível não perceber a atualidade de suas obras, como a tragédia messiânica Vereda da salvação, transformada em filme por Anselmo Duarte em 1965, que retrata o fanatismo religioso no sertão nordestino.

Tendo como característica o constante diálogo com outras linguagens, outro nome que obteve sucesso na teledramaturgia brasileira foi Dias Gomes. Através de obras como O bem-amado (1973), Saramandaia (1976) e Roque Santeiro (1985), tornou-se conhecido do grande público, mas é com O pagador de promessas (1960) que Gomes entra no rol de maiores dramaturgos brasileiros. A peça, que conta a história de Zé do Burro, um dos mais puros heróis trágicos da dramaturgia brasileira, é uma das mais montadas ainda hoje e contou com adaptação dirigida para o cinema por Anselmo Duarte, ganhando a Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1962.

Nomes como Quorpo Santo e João do Rio apenas nos dias atuais vêm recebendo olhar adequando para suas vastas produções. Os anos 1980 foram marcados pela baixa produção de textos originais, sendo destacada prioritariamente a figura do encenador. A crítica teatral Bárbara Heliodora, em entrevista ao jornal Gazeta do Povo, em 2012, foi categórica ao afirmar: “A ditadura parou a dramaturgia brasileira”.

É, portanto, a partir da década de 1990, que vemos a reafirmação da dramaturgia brasileira, seja através de processos inseridos nos grupos teatrais, seja através de autores independentes, como Fernando Bonassi, Mario Bortolotto, Samir Yazbek, Bosco Brasil e Aimar Labaki. O que nos leva aos nomes que hoje compõem o panorama ativo de nossa escrita.

CONTAR UMA HISTÓRIA
Um dos panoramas que ao longo do tempo não vem crescendo em nosso país diz respeito à formação específica para a área, tornando o caminho para os interessados em se tornar dramaturgo ainda mais difícil.

Diferentemente de diversos países europeus, o Brasil ainda não conta com uma graduação específica em torno da dramaturgia. Na maioria dos casos, os interessados recorrem aos cursos de licenciatura e bacharelado em teatro ou de áreas afins, como Letras, Comunicação e Jornalismo. O dramaturgo paulista Alexandre dal Farra, por exemplo, é um dos que, após obter formação em Música e em Filosofia, abandonou, há cerca de 10 anos, o trabalho de diretor musical para se dedicar à escrita.

No campo dos cursos de curta duração, uma das alternativas mais concorridas é o Núcleo de Dramaturgia SESI–British Council, que iniciou suas atividades na cidade de São Paulo em outubro de 2007. Sob coordenação da jornalista e dramaturga Marici Salomão, o curso hoje chega à sua oitava turma, com os jovens autores sendo submetidos a um programa de formação (aulas, oficinas e workshops) e de intercâmbio com profissionais convidados – referências do grande painel da produção dramatúrgica contemporânea no Brasil e Reino Unido.

A última experiência formativa de longa duração em Pernambuco foi protagonizada pelo projeto Tela Teatro, desenvolvido pelo dramaturgo Luiz Felipe Botelho, que contou com a realização de uma oficina de três meses, na qual os participantes possuíam foco prioritário na criação. Posteriormente, o curso deu vida ao GED – Grupo de Estudos em Dramaturgia, com encontros semanais na Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj). Devido à necessidade de abertura de um novo ciclo de participantes conjuntamente com o processo de reforma a que o prédio da instituição foi submetido, o núcleo chegou ao fim em 2012, após quatro anos de atividades. Botelho lamenta o atual panorama: “Nunca precisamos tanto de processos formativos adequados, não só pelo drama, mas pela quantidade de mídias das mais diferentes, precisando de pessoas que saibam contar uma boa história”.

As dificuldades não se resumem à carência formativa. Se as décadas anteriores foram marcadas por um reduzido número de editoras que se interessavam em publicar textos dramáticos – como, por exemplo, a Hadam, em torno de autores como Bosco Brasil, Juca de Oliveira e Pedro Brício, e a Perspectiva, que reunia diferentes obras em um único volume, como o importante registro em torno de Consuelo de Castro e Jorge de Andrade –, o que vemos hoje é um pequeno crescimento do mercado editorial para a área.

Com tiragens médias que variam entre 1.500 e 2.000 exemplares, novas editoras vêm se arriscando no mercado. São os casos da Giostri, fundada em 2005 e que possui em seu catálogo cerca de 30% dos títulos voltados para o teatro, e a Cobogó, com cerca de 18 títulos, envolvendo a publicação de nomes como Grace Passô, Márcio Abreu, Felipe Rocha e Daniela Pereira de Carvalho.

Se percebemos a séria crise de público brasileiro para a leitura, não seria diferente a situação no âmbito da dramaturgia. O desafio apontado por diferentes editores é a quebra da barreira do leitor especializado, o que possibilitaria o aumento de nomes publicados e das tiragens de exemplares, tal como acontece no Canadá, onde textos teatrais são utilizados em sala de aula como textos didáticos.

MIRADA
Diferentemente da década de 1950, quando a dramaturgia estrangeira configurava-se como uma espécie de obstáculo para o desenvolvimento nacional, atualmente vemos uma profunda retroalimentação de nossos autores com os de outras localidades. Muito se deve ao constante intercâmbio protagonizado pelos diferentes eventos que ocorrem no país, como é o caso da quarta edição do MIRADA} Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos, que ocorre de 8 a 16 de setembro na cidade que o nomeia e em mais quatro cidades do litoral paulista.

O festival é composto por 43 espetáculos originários de 10 países da América Latina, Portugal e Espanha, sendo este último o homenageado desta edição, com oito montagens na grade de programação. De acordo com a curadoria do evento, o que se ambiciona é realizar “um panorama que potencializa a capacidade de o teatro e a dança reagirem diante das singularidades histórica, social, política e econômica, evidenciando a força da arte politicamente engajada sem perder de vista a ambição poética e a pluralidade estética”.

Os dois destaques da mostra são os criadores espanhóis Angélica Lindell e Rodrigo Garcia. A primeira mostrará ao público brasileiro ¿Que haré yo com esta espada?, trabalho estreado em julho deste ano no Festival d´Avignon (França), e o segundo com o espetáculo 4, obra crítica sobre o triunfo do consumismo.

Angélica Lindell é uma renomada escritora, encenadora e atriz espanhola, ganhadora do Leão de Prata da Bienal de Teatro de Veneza em 2013. Seus textos são comumente escritos em primeira pessoa, sob sua própria atuação. Recorrendo comumente a mitos antigos e modernos, construiu sua temática sob os aspectos obscuros da realidade, como o sexo e a morte, a violência e o poder, a loucura. O escritor Javier Vallejo declarou que “Angélica Liddel se autorretrata sem pudor, como Frida Kahlo (…) especialmente defendendo ferozmente seus textos no palco: sua palavra é uma baioneta. Frágil, pequena, mas em cena parece São Jorge e o dragão escondidos em um só corpo”.

O texto que apresentará no Brasil parte de dois crimes transcorridos em Paris, em diferentes épocas: o canibalismo do universitário japonês Issei Sagawa, que esquartejou a namorada e declarou tê-lo feito por amor, em 1981, e o terrorismo dos ataques em série que deixaram 130 mortos na noite de 15 de novembro de 2015. No programa do espetáculo, cita Nietzsche: “Como transformar a violência real em poética para nos colocar em contato com a verdadeira natureza, mediante atos contra a natureza?”.

Rodrigo García nasceu na Argentina, e radicou-se em Madri, onde fundou o grupo La Carnicería Teatro (1986). Seus atores são apelidados de les enfant terribles, algo como “as crianças travessas”, pela predisposição de experimentação com temas e formas controversas para os parâmetros do teatro tradicional. Seus textos buscam reconstruir imagens associadas aos signos do consumo (Mcdonalds, Ikea) e da tecnologia, aos quais são acrescentados elementos da escatologia. Seu último trabalho apresentado no Brasil, Golgota picnic, dispôs 25 mil pães da hambúrgueres no palco, pisados pelos atores, ao se deslocarem.

Com características plurais em suas narrativas, García aponta que nunca desenvolve apenas um assunto em seus trabalhos, não possuindo a capacidade e nem tampouco o interesse em contar apenas uma história. Na obra intitulada 4, a ser apresentada no festival, o artifício das artes cênicas é munição poética para o manifesto contra a fabricação da imagem, as ditaduras publicitárias e industriais de beleza. A violência sobre a mulher, o homem, o velho e, como mais perversão, o adolescente e a criança.

JANELA DE DRAMATURGIA
Se os festivais carregam em si a possibilidade de intercâmbio dos brasileiros com a produção internacional, cabe aos próprios artistas a construção de vias de compartilhamento no âmbito nacional. Realizado na cidade de Belo Horizonte, o projeto Janela de Dramaturgia celebrou sua quinta edição no mês passado, tornando-se um dos mais emblemáticos casos de fomento à dramaturgia nacional e servindo como mola propulsora para o reconhecimento de novos autores espalhados pelo país.

Idealizado em 2012, pelos dramaturgos Sara Pinheiro e Vinícius Souza, o projeto possui como dinâmica a leitura mensal de textos inéditos, oficinas de dramaturgia, bate-papo com os autores e mesas-redondas. Para este ano, o Janela recebeu quase 700 textos vindos de 24 estados do Brasil, tendo a diversidade geográfica, estética e temática pautado a escolha dos textos e autores. O público mineiro pôde conhecer as escritas inéditas dos autores Guilherme Dearo (de São Paulo), Isac Tufi (de Salvador), Fabiano Barros (Porto Velho), Francisco Mallmann (Curitiba) e Fernando Carvalho (Brasília), que dividiram espaço com os mineiros Anderson Feliciano, Luciana Romagnolli, Luciano Luppi, Ivana Andrés, Rita Clemente.

Ainda nesta edição, o projeto realizou o lançamento da coleção Janela de dramaturgia – publicação em três volumes que contém 28 textos de autores mineiros apresentados nas três primeiras edições do evento, projeto este contemplado pelo Programa Rumos Itaú Cultural e lançado pela Editora Perspectiva, sob organização de Vinícius Souza, que, além do Janela, coordena os Ateliês de Dramaturgia de Belo Horizonte e o Núcleo de Pesquisa em Dramaturgia do Galpão Cine Horto.

Outros dois importantes projetos de perfis distintos são desenvolvidos pelo Departamento Nacional do Sesc. O P.E.R.i.F.É.R.i.C.o, parte do mapeamento de textos latino-americanos, conjuntamente com uma residência artística entre grupos e um ciclo de leituras dos textos publicados, proporcionando, assim, o encontro de artistas do Brasil e da América Latina. O segundo e mais potente intitula-se Concursos Jovens Dramaturgos, que objetiva descobrir jovens que cursam o Ensino Médio e se interessam pela arte da escrita, proporcionando aos escolhidos a participação em oficinas e o diálogo com autores experientes, o que permite o aprimoramento dos seus trabalhos. O projeto chegou à sua quinta edição em 2015 e realizou a publicação de 25 textos com autores de diferentes estados do Brasil.

Para Sidnei Cruz, um dos responsáveis pela idealização do projeto, a ideia surge da constatação de que “no Ensino Médio, o jovem é solicitado a escrever redações, dissertar sobre temas atuais, porém, aplicando a lógica racional e nada de imaginação. Acreditamos que a dramaturgia possibilita o desenvolvimento do imaginário sobre o real e o irreal. Imaginar mundos sob novas dimensões. A dramaturgia pode ser uma poderosa ferramenta nas mãos do adolescente. Com o incentivo, o jovem dramaturgo poderá continuar e contribuir para novos horizontes teatrais”.

O dramaturgo mineiro Vinicius Souza define bem o momento atual da dramaturgia brasileira. “Filosoficamente, gosto de pensar que o nosso tempo é a-histórico, podemos conviver com (o grego) Ésquilo (25 a.C.– 456 a.C.) e o francês Michel Vinaver (88 anos), e os dois, tão distintos, terão suas importâncias, singularidades e urgências; que dramaturgia é, na verdade, só um conceito que pode ser reinventado a cada momento, tal qual as ideias e experiências criativas que vivem seus autores” e emenda também com o velho conterrâneo Drummond: “O mundo é grande”. 

veja também

“O tempo que meu avô passou no Brasil impactou emocional e intelectualmente sua vida”

O corpo, a geometria e o vento

Sobre a importância da ruína