Os amigos de Lorca tinham razão. O poeta encontraria, na Granada antigamente “mágica”, os eflúvios de ódios desatados à direita e à esquerda, no estreito ambiente limitado pelos muros seculares. Sim, ele era conhecido, para bem e para mal, como poeta e jovem boêmio de vida mais ou menos dissipada (e gostariam de dizer, claramente, a palavra derrisória para homossexuais: “vida de maricón”)…
A cidade estava inevitavelmente alterada por medos, rumores e rancores velhos de antes da guerra. Circulavam boatos em torno de prisões já decretadas, e o seu nome teria sido mencionado. Assim, de acordo com recomendações familiares, Federico se transfere da sua casa para, algumas ruas depois, uma mansão de amigos dos Lorca-García: os Rosales, igualmente bem-relacionados e com integrantes da Falange (a sinistra agremiação política identificada com o “nacionalismo” de Franco) dentro de casa, do mesmo modo como também havia um poeta adolescente, Luis Rosales, mais tarde autor da obra-prima La casa encendida. A mudança parecia segura e conveniente para a segurança do belo rapaz das noitadas madrilenas.
Neste momento no qual acompanhamos FGL seguindo para abrigar-se no meio dos Rosales, é preciso notar uma primeira discrepância, talvez, com relação ao futuro matiz da lenda que, após o crime, começará a ser fixada pela última manhã do poeta máximo da moderna literatura espanhola (em termos de repercussão internacional). Dela, dessa aurora nascida para a morte – inesperada –, viria a se compor um retrato sacrificial, isto é, a efígie de Federico Garcia Lorca coberta de sangue, vítima republicana a mais ilustre possível: havia sido fuzilado o bardo do “amor bruxo”, o cantor do romanceiro das estradas de saltimbancos, o vate andaluz, o “herói” em queda pelo lado esquerdo do peito varado pelas balas da Guarda Civil e outras hostes fascistas que levaram o ditador Franco a esmagar a Espanha por quatro décadas de autoritarismo, repressão violenta e controle absoluto de um povo tão difícil de domar quanto um miúra bravo nas plazas de areia e sangue.
Sangue, sim, se derrama por toda a ardente Península Ibérica, mas, ali na Espanha, ele se concentra como coágulos nos cristos deitados nas catedrais escuras, no espetáculo dos touros (e dos toureiros) feridos e nas graves sequelas de um conflito interno que, em agosto de 1936, envolveria o gênio de Andaluzia até arrastá-lo para morrer como um animal de abate, naquele morticínio maldito para todos.
Esse “para todos” introduz a maior parte das dúvidas que vinham se alargando, há anos, sobre quem realmente matou Lorca, ou seja, sobre quais nomes e quais motivos provavelmente se ocultaram num assassinato que ganhou a aura, imediata, de barbaridade máxima nessa confusa quadra da história do país de Cervantes. E, desde já, parece que temos de abandonar uma querida certeza acalentada por décadas: a do Lorca sacrificado em nome da ideologia – pois há que encarar a face, menos exposta, de um poeta lírico que não foi nenhum quixote, ou que não pretendia ser um paladino das esquerdas e, pelo contrário, estava em fuga das bandeiras e das fumaças da frente de combate. Federico era praticamente apolítico – segundo a unânime opinião dos que o conheceram – e até teria nutrido, num certo momento, uma velada simpatia por “governos fortes”, por autoridades que pudessem pôr “ordem” naquela casa, mais do que caótica, da Espanha da primeira metade do século passado.
Isso foi confirmado por Luis Rosales, a respeito de um artista no auge do sucesso, como poeta e dramaturgo, quando a guerra estalou, fratricida. Naquela altura, mais do que nunca, ele era um Lorca vivaz em Madri, um ser risonho e animado na capital onde mantinha outros interesses muito para além da política (que nenhum dos seus colegas da famosa “Residência dos Estudantes” e amigos das letras, do teatro e da boêmia de Madri enxergaram, jamais, no horizonte do rapaz bem-nascido, bonito e dândi de todas as fotografias do mito que veio a se tornar Federico, o Assassinado).
Esse é o primeiro degrau que se tem que firmar, a fim de galgar os patamares mais obscuros da tragédia. Ela surpreende, antes de mais ninguém, o povo de Granada, e a verdade – ou o que parece ser a “verdade”, tantos anos depois – vem se insinuando no território mais íntimo da família do poeta, entre parentes insultados e queixosos de negócios em sociedade com o pai de Lorca, o “patriarca” Federico García Rodriguez.
QUEM MATOU LORCA?
Todos que leram a obra do irlandês Ian Gibson (que serviu mais ou menos de “cânone” para estabelecer a versão do assassinato eminentemente “político”) decerto lembram o nome do pai do poeta como apenas uma referência ao marido de Vicenta Lorca, no registro da filiação do artista caído “sob os disparos pelas costas, feitos pelos fuzis do ódio fascista” etc.
Nada a contestar sobre a periculosidade dos “ódios fascistas” (é claro), porém as pesquisas mais fundas foram, recentemente, bem mais eficazes no levantar das discórdias e invejas no seio dos quatro ramos familiares, no caso de Lorca: os Roldán, os Benavides, os Alba e os García da linhagem paterna do poeta assassinado.
Longe da idealidade firmada – com as melhores intenções – por Gibson, de imediato ouçamos o historiador andaluz Miguel Caballero, dentre outros que foram revolver os quintais domésticos, na retaguarda de Víznar-Alfaca: “Afirmar que mataram Lorca por ser homossexual e ‘vermelho’ é uma simplificação que já não se admite. As verdadeiras razões de seu assassinato devem ser buscadas na sua própria família”.
Outro pesquisador incansável, Manuel Ayllón, arquiteto e autor de Granada, 1936 (Editorial Stella Maris), também é taxativo sobre isso: “Lorca não era um problema político, não ‘militava’ no sentido estrito, e podia ser extravagante, incômodo e meio afrontador nos seus hábitos joviais, mas nunca foi um perigo para absolutamente ninguém; politicamente, não era visado pelos fascistas, uma vez que era inofensivo. Na realidade, contra ele não houve sequer uma ordem de detenção assinada. Federico foi simplesmente levado da casa dos Rosales, que lutaram para libertá-lo no minuto seguinte e não descansaram nos dois dias subsequentes. O poeta Luis Rosales, irmão de dois falangistas, foi visitá-lo, pelos dois dias, na prisão perto de Granada. Ninguém imaginava que ele corresse qualquer risco de vida, ali adentro. Seguiam tentando tirá-lo de lá, quando veio a incrível notícia da sua morte por um pelotão que incluía membros do quarteto de famílias proprietárias da Vega de Granada que, então, estava dando bons lucros a Federico Rodriguez e aos seus Lorca-García”…
Não é, de modo algum, “teoria conspiratória” surgida 80 anos depois. Nem envolve somente as pesquisas de Caballero e Ayllón, mas começou a abalar até as antigas certezas de Gibson, que está, no momento, empenhado em rever suas descrições, desde o “sequestro” no dia 17 até a execução apenas dois dias depois, sem julgamento e causando, mesmo, alguma desagradável surpresa nos círculos mais próximos do quartel-general de Francisco Franco. Claro: um fuzilamento tão brutal não seria, jamais, a melhor propaganda para os fascistas empenhados em tomar o poder na Espanha culta, também. Aliás, consta que as primeiras notícias sobre a morte de Lorca foram veiculadas por eles, os nacionalistas, pretendendo que o poeta houvesse sido vítima da “loucura republicana” (ironia das ironias) e, quando a Guarda Civil emergiu como a assassina de FGL, fez-se um silêncio sepulcral sobre o assunto, por parte dos amigos do futuro ditador.
VINGANÇA LITERÁRIA
Miguel Caballero é quem traz mais uma surpreendente pista: “A chave para abrir o cofre de estranhezas em torno do fuzilamento sumário de Lorca esteve desde sempre ali, representada, escrita de punho e letra pelo poeta: trata-se de um presságio fatídico que, agora, oito décadas depois do crime, assume outra dimensão. A casa de Bernarda Alba foi uma vingança literária – enfatiza o historiador granadino. Caballero vê a famosa peça – que correu mundo – como um dos fios de meada da morte, os quais vêm sendo desenrolados por mais de uma dezena de pesquisadores que investigam a história da família desde a metade do século XIX. Naquela época, a Vega de Granada estava em poder de uma aristocracia residente em Madri, e que viria a cair em ruína financeira no alvorecer do século seguinte. As terras foram, então, adquiridas por um grupo da burguesia ascendente em Andaluzia, no qual figuravam o pai de Lorca e seus parentes, os Roldán e os Alba.
Caballero descreve: “Eles foram comprando as terras de modo coletivo, através de sociedades. E estes campos vão adquirindo muito valor com o plantio açucareiro, enquanto a Granada de 21 engenhos se converte numa das províncias mais ricas da Espanha. O pai de Lorca participa como acionista de vários deles. E a disputa começa com a divisão dos lucros e mais uma tentativa de dividir as terras, porque nem todos tinham a mesma sombra nem a mesma água, sendo daí que surgiram os primeiros desentendimentos entre os Roldán, os Lorca e os Alba. Uma mesma família, na verdade, porque eram endogâmicos: casavam-se entre si, a fim de manter as terras antes de mais nada”…
Ora, para a tragédia rural A casa de Bernarda Alba, Federico García Lorca foi se inspirar em personagens reais, entre as quais avulta Francisca Alba Sierra, uma mulher forte e que se comporta da forma tirânica mostrada nos palcos, para desagrado dos Alba de carne e osso, pouco afeitos às licenças poéticas. Para eles, a peça cheirava mal e tinha insinuações insultuosas.
Os Lorca possuíam uma residência de verão granadina – a Huerta de San Vicente –, que foi assaltada em 9 de agosto de 1936 por alguns primos de Federico, do ramo dos Roldán, tidos como conspiradores contra a República. Além dos Roldán, o historiador Miguel Caballero lembra que outros familiares estiveram implicados nos atos de detenção e execução de Federico, nomeadamente Antonio Benavides, que era sobrinho-neto da primeira mulher do pai do poeta (e que será o homem acusado de disparar, pelas costas, contra a sua cabeça, na manhã desatada de ódios redimidos não só no plano da política de mistura com os preconceitos).
Além desse pano de fundo – nada teatral –, existiu ainda uma ameaça vinda diretamente da poesia de Lorca, para a sua vida prestes a findar tragicamente: consta que, no dia 19, ele foi levado para a morte por um pelotão comandado pelo oficial da Guarda Civil (Nicolás Velasco Simarro), que teria se sentido pessoalmente ofendido pelos versos de Romance de la Guardia Civil Española, em virtude de referências à dura repressão da Guarda contra uma greve em Málaga. Mais: o ressentimento pessoal de Simarro pode ter sido “bem-reforçado” pelo fato de esse oficial haver desempenhado funções – pagas por um Roldán (Alejandro Benavides) – no caso de uma fuga de um grupo de camponeses da Vega, sempre objeto de disputas mesquinhas com o pai de Lorca…
Uma rede de ódios e intrigas familiares começa a assumir a frente do assunto “assassinato do poeta”. Seu cadáver jaz em algum lugar da estrada, na vala comum na qual teria sido abandonado e encoberto de areia e pedras andaluzas? Talvez não. A própria família é, ainda hoje, totalmente contrária (?) a buscas mais profundas por lá. O que é muito estranho. Todos os Lorcas velhos parecem saber que Federico não se encontra mais naquela vala há muito tempo, tendo sido de imediato exumado (ainda naquele agosto aziago, há 80 anos), como certamente não o seria, no caso de um horrível crime político, que a Guarda Civil naturalmente teria todo interesse em camuflar de incertezas, ao longo do tempo. Essa é mais uma nota que soa falsa na orquestração das obscuridades que aproximam o García Lorca póstumo dos piores motivos de discórdia entre familiares, em cenário ainda mais violento do que o de um romance como Os irmãos Karamázov, de Dostoiévski. Mais uma vez, talvez a vida imite a arte, se é que não a supere de muito.