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Senhor completo, senhor total

Pai Euclides, babalorixá da Casa Fanti Ashanti, de São Luís, recebeu sinais de seus dons espirituais ainda menino de seis anos, os quais honrou até sua morte, em agosto de 2015

TEXTO Guilherme Novelli

01 de Julho de 2016

O babalorixá Pai Euclides

O babalorixá Pai Euclides

Foto Renata Amaral

[conteúdo da ed. 187 | julho de 2016]

Ele já sabia que partiria. Foi à funerária, escolheu o próprio caixão, deixou tudo arrumadinho para não dar trabalho a ninguém. Escolheu até as roupas que vestiria. O medo dele era “dar trabalho”. Dizia que não tinha medo da morte, tinha medo era de ficar dando trabalho para as pessoas. Na hora da partida, estava preparado, já tinha cumprido sua missão aqui na Terra. 

Um mês antes de seu falecimento, há um ano, no período das festas, disse para sua irmã Maria das Graças: “Gracinha, eu estou como uma vela que o pavio está para apagar”. E ela retrucou, emocionada: “Não fala isso, porque quem vai primeiro sou eu”. Ele, então, completou: “Um de nós vai ter de ir primeiro e estou achando que sou eu quem está com o pavio apagando”. E manifestou seu cuidado e preocupação com todas as irmãs e parentes, pois pressentia que em breve não estaria mais lá para conduzir a espiritualidade deles.

No período que precedeu seu falecimento, encontrou o sobrinho Henrique de Menezes, recém-chegado de São Paulo, num fim de tarde em São Luís, Maranhão. Sentado na cadeira, disse a ele: “Essa casa não pode parar, viu? Tem que continuar. Você está longe, mas nunca deixe de estar perto, porque você foi o primeiro que aprendeu o toque do tambor para ensinar aos outros”. Não era apenas sobre o tocar que ele disse isso, mas sobre o estar junto na Casa Fanti Ashanti, para fazer parte do alicerce espiritual, da egrégora do terreiro. “Isso aqui não pode parar, tem muito tempo de história e vocês não vão deixar essa casa se acabar. Se fizerem isso, vou perseguir vocês nos seus sonhos. Procurem dar continuidade nas coisas, não pensem que eu vou deixar as coisas se acabarem”, acrescentou, com aquele jeito meio arredio e despachado de falar. 

Pai Euclides Talabyan, um dos babalorixás mais importantes do Brasil, respeitado também por líderes espirituais africanos, faleceu no dia 17 de agosto de 2015 na capital maranhense. E então deixou seu terreiro ao encargo dos seus seguidores, da sua família. A Casa Fanti Ashanti, centro de tradições afro-brasileiras sagradas e profanas – como o Tambor de Mina, o Candomblé, a Cura, o Baião de Princesas, o Canjerê, o Tambor de Taboca, o Divino Espírito Santo e o Samba de Angola –, fundada em 1958, ainda está de luto, permanece fechada até setembro para completar o ciclo de um ano da morte de seu Pai. 

No dia do seu falecimento, foi respeitado luto oficial num templo de Ouidah no Benim, país africano que Euclides conheceu e com o qual compartilhou dons espirituais. Anos atrás, em sua viagem à mesma Benim, Euclides tinha se impressionado com as semelhanças entre os cultos africanos e os de seu terreiro, dizendo que nos dois clãs, apesar da distância geográfica, são cultuadas as mesmas divindades. 

PRIMEIROS BAQUES
Foi aos seis anos de idade, em 1944, que Euclides entrou em transe pela primeira vez. Começou a levar esses baques em casa, na escola, na rua, em qualquer lugar e a qualquer hora. Achavam que era algum problema de saúde, uma alucinação. Ele trepava em árvores, andava pela rua, dançava, invadia matagais, e os moleques iam atrás, dizendo: “Euclides tá doido! Euclides tá doido!”.

Sua mãe não aceitava, levou-o para o médico, depois para o hospital psiquiátrico. Fizeram exames, mas não constataram nenhuma doença. Sua tia Isaura dançava Tambor de Mina e já sabia do que se tratava. Levou-o às escondidas ao terreiro do Egito, onde Euclides dançou pela primeira vez incorporado, aos 11 anos de idade. No transe, sentia como se estivesse dormindo ou anestesiado, não entendia aquilo tudo, mas já tinha sido escolhido por Olodumaré, senhor do Destino, para a empreitada espiritual que marcaria sua vida. E nada de dona Romana Anunciação Ferreira, sua mãe, conceber que o filho pudesse ser um líder espiritual. Achava que terreiro era lugar de cachaceiro, sem-vergonha, pederasta, que o dom do filho era coisa do demônio, uma doença. 

Euclides incorporava várias entidades, entre elas, o mestre de cura Adamor Serra de Andrade. Aos domingos, as pessoas se amontoavam em volta de sua casa para se benzer, pegar conselhos, remédios. Além do inconveniente com a mãe, outro problema era que ele não tinha nenhum controle sobre as entidades, não sabia como evocá-las. Aquilo tudo, de certa forma, o amedrontava. 

Brinquedo de Cura ou Pajelança é uma tradição maranhense ligada às tribos de índios locais que se difundiu, justamente, com a miscigenação dos povos, do índio, do negro e do branco. Euclides começou a procurar vários curandeiros, várias entidades para fazer sua iniciação na Pajelança, recebendo um não atrás do outro, até que um dia, já no início da década de 1950, procurou um curador famoso, José Reis, que concordou em iniciá-lo. 

Euclides levou os materiais para seu encruzo no Sítio do Jambeiro, Bairro do Anjo da Guarda, São Luís, lugar do brinquedo, que naquela época era mato fechado. Já de madrugada, José Reis incorporou Antônio Luís Corre Beirada, que disse para Euclides, cantando versos improvisados: “Nem Zé Reis nem ninguém tem condições de te encruzar, te iniciar. Quem fizer isso morrerá ou então você morrerá”. Outra entidade, Rei Sebastião, disse que ele não precisaria ser encruzado, tinha um dom de nascença, e que, se ele fizesse uns rituais por conta própria, seria bem-sucedido. E pediu que voltasse no dia seguinte, que ele ensinaria algumas coisas. 

Foi com uma discípula bem cedo, no dia seguinte, para o Rio do Batatã, de água doce. Caminharam muitas horas, entrando mata adentro para chegar ao local. Estavam assustados, em todo canto havia cobras cinzentas, marrons, verdes, pelo chão, pelos galhos de árvore. Na margem do rio, tentavam acender vela e vinha cobra nadando por cima d’água. Era pássaro para todo lado também cantando, bicho de tudo quanto é jeito. De repente, Corre Beirada se manifestou em Euclides, começou a cantar, e outras entidades começaram a se manifestar nele, também, completando o processo de chamar a linhagem dos espíritos.

Ele acordou já em casa, às duas da tarde, e se deu conta de que o Corre Beirada tinha se manifestado em sua matéria e ido embora, terminando a sua iniciação. Já adulto, costumava dizer que a ancestralidade, as incorporações não eram fruto do acaso e, sim, um chamado, uma vocação, entidades superiores  conduzindo-o para alguma tarefa, algum ritual.

TEMPO, RITMO
O babalorixá foi um músico exímio, intuitivo, com sabedoria nata. Cantava afinado, sabia fazer abertura de vozes em terças, quintas, nonas, além de ser um ritmista muito preciso, técnico. Qualquer batida que estivesse fora do ritmo, corrigia, redirecionava. Tocava vários instrumentos de percussão: pandeiro, tambor, caixa, tambor de mina, tambor de crioula, tambor de taboca… 

Levava esse senso de tempo e ritmo para a sua rotina. A pontualidade era uma de suas marcas registradas. O tempo sempre regeu a vida dele. Se o ensaio da percussão fosse marcado para as 15h, não tinha cinco minutos de tolerância, não. Se ninguém chegasse na hora, ele começava sozinho, e pronto. Dormia depois do almoço, dava uma cochilada, descansava, tomava banho, café e, às 15h, chegava para treinar seu sobrinho Henrique, responsável por ensaiar os outros tocadores da casa. Tomava banho impreterivelmente às 17h. Quando dava seis da tarde, se retirava e ia descansar, não atendia mais ninguém. Se trancava, se isolava dentro de casa. Dormia cedo e acordava cedo. Era vizinho de parede de Dindinha, sua irmã mais velha. Combinava com ela que quem acordasse primeiro chamaria o outro.

Euclides era metódico e rígido no cumprimento dos rituais religiosos que conduzia. Tinha que ser executado tudo do seu jeito, não tinha acordo. “Tem que ser do meu jeito, vocês não sabem o tanto que eu tenho medo de fazer alguma coisa errada, então eu me preparo para isso.” Nunca prescindia da companhia de sua irmã mais velha, a Dindinha. “Dindinha, eu preciso de ti mais do que nunca.” Os dois não se desgrudavam, eram muito apegados. “Meu Pai, quando o senhor vai fazer essas coisas aqui, tanto do lado de lá como do lado de cá, eu também me preparo para, quando o senhor precisar de mim, eu não errar”, dizia para ele a irmã. À tarde, os dois iam para a porta da rua e ficavam conversando. Quando dava a hora do jantar, ele entrava. Não fazia nada com pressa, estabanado. Impunha sempre o tempo dele, onde quer que fosse, até em presença de autoridades. 

LEGADO
Era uma característica bem particular de Pai Euclides congregar, não fazer distinção, trazer várias manifestações afro-brasileiras para a Casa Fanti Ashanti. Devido ao seu incomum dom espiritual, que abriu caminho em várias direções das tradições sagradas e profanas, é considerado um símbolo de resistência e ativismo da cultura afro-brasileira. 

Euclides era curioso, pesquisador, lia muito sobre tradição. Manteve vivo um calendário cultural religioso e profano na Fanti Ashanti de dar inveja a qualquer outro terreiro, pela diversidade e a grandiosidade de suas festas, tornando-se um personagem importante de difusão dessa cultura. É autor de livros e CDs que falam de temas do Baião de Princesas, Tambor de Mina, Cura, publicações escritas sobre os fundamentos religiosos e a importância da religiosidade africana no Maranhão e no Brasil. Seu legado também se espalha imaterialmente, na imensidão de filhos de santo que têm terreiros espalhados pelo país e pelo mundo, baseados na metodologia dele, e ainda antigos seguidores ou admiradores.

Como a ancestralidade chegou para ele de forma bastante natural, quase sem influência de nenhum mestre, quando foi para a África viu que tudo o que aprendeu era autêntico e igual ao que tinha lá. Eram as mesmas doutrinas, praticamente. As mesmas entidades, inclusive, pois quando chegou a um terreiro do Benim, sentiu que uma pessoa estava dançando incorporada com o mesmo sinhô que ele incorporava.

E assim ele foi deixando muita saudade, história, arte incrustada nos corações de quem ficou e presenciou sua alegria, sua vitalidade, sua dança, seu amor: “Envolto no branco do branco, dorme no branco do branco, de dentro do branco rebrilha, ilumina o rumo do rumo, senhor completo, senhor total, pai” (Poema tirado do livro Oriki de orixá, que Pai Euclides gostava de recitar). 

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