A relação entre cinema e escrita, entretanto, parece decorrer de algo mais profundo do que o mero esforço ilustrativo. Um bom exemplo disso é o cinema de Robert Bresson. Sempre interessado em pensar o cinema enquanto escrita, o francês desenvolveu um estilo próprio a partir de narrativas construídas como sintaxe, no qual à palavra era consentido um lugar de precisão e concretude; e muitas vezes de rarefação ou ausência, como no comovente A grande testemunha (1968). Em outras situações, a palavra fazia sentir-se como presença estruturadora dos seus filmes, como em Diário de um padre (1950), que já conferia ao texto a concretude do registro, numa adaptação do livro Diário de um pároco de aldeia, de Georges Bernanos. Mas é sobretudo em O processo de Joana D’Arc (1962) que a palavra assume a corporeidade aqui ressaltada.
Baseado nos autos dos processos de Joana D’Arc, o filme parte da força do texto para compor um retrato realista do julgamento da heroína francesa. Valendo-se de não atores, sob a crença no condicionamento espontâneo dos gestos – advogados e juízes deram corpo e rito ao tribunal –, Bresson recorre à estética de contenção dramática que o imortalizou. Nada fingido, nenhuma sensação forjada seria consentida, apenas o corpo, a fala e a verdade que ressoa neste ato de presença. Eis o seu filme mais textual, construído no embate entre uma Joana D’Arc destemida e confrontadora e os seus inquisidores. Oposição concebida pela alternância de planos médios entre juízes e acusada no duelar dos diálogos. Nesse sentido, é interessante contrapor à Joana D’Arc de Bresson – sempre de pé, em planos frontais, desafiadora e consciente do peso de sua palavra – a personagem do retumbante O martírio de Joana D’Arc (1929), de Carl Th. Dreyer: de joelhos, assustada e humilhada por seus algozes, e cuja expressividade no rosto e olhar se sobrepõe à força da palavra.
Ainda no cinema francês, e dentro de uma prerrogativa bressoniana, é possível apontar outro exemplo inspirador. Baseado no livro de Michel Foucault, também intitulado Eu, Pierre Rivière, que degolei minha mãe, minha irmã e meu irmão… (1976), o filme de René Allio reconstitui o célebre caso de parricídio, cometido por um jovem de 18 anos numa pequena cidade francesa, em 1835. Ao aliar os autos judiciais do processo, os relatórios médicos e as reveladoras memórias manuscritas do próprio condenado, Pierre Rivière… edifica-se sobre o aparato textual dos registros. Isso fica muito evidente na própria estrutura narrativa pensada por Allio, em que, à leitura das sentenças dos juízes, somam-se as memórias em tom confessional do acusado, os depoimentos de lavradores e camponesas da pequena cidade – todos devidamente identificados de acordo com os autos –, e, por fim, os relatórios médicos que davam conta da saúde e da alienação mental do jovem.
Tudo isso possibilitado por uma carpintaria eficaz e diversificada, em que as locuções em off combinam-se às encenações do crime propriamente dito, das situações de litígio familiar que o teriam motivado, e dos testemunhos na corte, filmados como depoimentos de um documentário.
O travelling de apresentação do júri, identificando-os um a um, parece reforçar a sensação e o rigor de um filme baseado nos autos do processo, assim como algumas escolhas estéticas sugestivas da ideia de registro. Seja ele imagético, como o uso de fotografias, ilustrações e gravuras; ou textual, como o acompanhamento da escrita a punho das memórias do protagonista – recurso também utilizado em Diário de um padre.
É também no ano de 1835 que se passa o filme Aferim!, de Radu Jude, vencedor do Urso de Prata de melhor diretor no Festival de Berlim 2015. Passado na província de Valáquia, o filme é uma espécie de faroeste à romena, e reafirma o ótimo cinema praticado no país. Dois homens montados a cavalos cruzam paisagens descampadas, filmadas em planos abertos e em lindo preto e branco, com cordilheiras ao fundo. São eles um velho oficial coxo, Constandin, e seu jovem filho Ionita, espécie de aprendiz. Eles cruzam a província à procura de um cigano fugitivo. Dentro de nossa lógica escravocrata não é difícil traçar paralelos: os ciganos são escravos e os protagonistas, versões oficiais do capitão do mato.
A busca pelo foragido revela a brutalidade de uma época em que ao discurso oficial e religioso era permitida toda horda de violência verbal ou física. Isso fica claro na abordagem dos oficiais aos ciganos, aqui chamados de corvos, ou no discurso do “sábio” padre que destila preconceitos e estereótipos contra judeus, turcos, egípcios, ciganos e absolve os distintos romenos em nome de Deus. Tudo isso construído por um linguajar muito próprio, em que há uma recorrente animalização do trato em expressões como corvo fedorento, rato do demônio, vaca estúpida ou ratazana nojenta.
É a composição da vulgaridade de uma época pelo linguajar e seus modos que confere à palavra e à fala um papel de importância. Sobretudo quando sabemos que situações e diálogos foram retirados da pesquisa de documentos e processos do período representado. Os modos de discurso de uma época (re)definindo o papel da palavra no cinema; e o cinema pensado enquanto escritura.
*Colaborou Caio Zatti