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Cícero Dias, Vladimir e eu

TEXTO José Cláudio

01 de Julho de 2016

Cícero Dias e Pablo Picasso

Cícero Dias e Pablo Picasso

Foto Reprodução

[conteúdo da ed. 187 | julho de 2016]

É sobre o filme Cícero Dias - o compadre de Picasso de Vladimir Carvalho. Eu vi o mundo... ele começava em Cícero Dias. Confirmei isso depois de assistir a esse belo filme. Isto é, eu já sabia; mas foi no filme, me vendo falar, que me convenci. Vladimir me pôs à vontade, me filmou do jeito que eu estava e como vivo normalmente em casa, nu da cintura para cima, e fui falando como de mim para mim. Ninguém precisou me ensinar arte moderna depois da exposição de Cícero Dias em 1948, eu com 16 anos, em estado bruto. 

Mal tinha saído do internato do Colégio Marista, na atual Avenida Conde da Boa Vista, rua naquela época, não conhecia ninguém e nem sei como soube da exposição. Não me passava pela cabeça seguir pintura. Não sabia o que queria estudar depois do colegial. Fui estudar direito, justamente no lugar da exposição de Cícero Dias três anos antes, Faculdade de Direito do Recife.

Costumo datar meu ingresso no mundo da pintura da ocasião em que encontrei por acaso Ivan Carneiro, ex-colega de colégio, bem em frente da minha casa, isto é, casa dos meus pais, recém-chegados de Ipojuca, na Rua de Santa Cruz. Ivan não se lembrava do meu nome nem eu do dele. Mas ao vê-lo, e ele a mim, sabíamos um do outro o suficiente para ele me perguntar: “Ainda gosta de desenhar?” Foi assim que fui convidado a tomar parte na fundação do Atelier Coletivo, dirigido por Abelardo da Hora. 

A essa altura pois, 1952, eu cursava a Faculdade de Direito mas logo, em vez de ir para a Faculdade, ia direto para o Atelier Coletivo da Sociedade de Arte Moderna do Recife, a partir desse encontro fatal com Ivan Carneiro. 

Conheci Picasso através de Cícero Dias. Para mim, Picasso era confiável em consequência do aval de Cícero Dias. Acho até que os herdeiros de Cícero Dias deviam me ressarcir de ter gasto todo o dinheiro que tinha, anos depois, 1980, para ver a retrospectiva de Picasso no Moma, The Museum of Modern Art, New York, Pablo Picasso: A Retrospective, 22 de maio a 16 de setembro. Ao mesmo tempo me pergunto quem maior herdeiro do que eu, que venho me alimentando deles, de Picasso e de Cícero, durante toda a vida. Hein, Dóris? 

No filme dá para ver melhor do que nunca o quanto Cícero Dias é “solar”, palavra que emprego no meu depoimento no filme, é puro e pagão, como sua vista é limpa de preceitos e preconceitos e como tudo é paisagem de canavial, do banho de rio aos murais da Secretaria da Fazenda, a mesma coisa as aquarelas iniciais e a época abstracionista, visão essa ajudada pelas fusões que o cinema oferece ou provoca, as imagens se fundindo na nossa mente. Foi muita felicidade de Vladimir alcançar o pintor ainda em vida assim como sua mulher e outros que o conheceram mais de perto. Cícero Dias é um desses pintores que quanto mais se sabe sobre ele mais ele cresce, inteiro e único, uma coisa só, sem nunca se ter imposto limites de qualidade nenhuma. Uma vez perguntei a ele um tanto imbecilmente qual era a última moda em Paris, ele respondeu: “É você engajar-se com você mesmo e fazer o que quiser”. Que retrato dele mesmo e de todo grande pintor! Sua combinação de cores não tem igual em toda a história da pintura, a claridade, a cor-de-barro e verde-cana, nele tão natural como se respirasse. Como disse sua mulher Raymonde no filme, ele sempre vivia no Recife. 

Vladimir pinta um belíssimo quadro, não sei se de Cícero ou dele, com aquela mulher nova saindo do banho de rio, rio intimista, rio de dentro as canas, não o que nos acompanha durante o filme que sai de debaixo de um teto, debaixo das pontes, ora o Cabibaribe, ora o Sena. Tocante, aquele cavalo de pobre andando por dentro das ruínas da casa-grande, escombros de nossos sonhos, de nossa própria vida, de um Pernambuco que ficou parado no ar, como o quarto de Manuel Bandeira, nos quadros de Cícero Dias. O autor do filme não se poupou, nos levando a Cícero com o maior amor em cada metro da fita. 

Por acaso estou escrevendo com uma canetinha preta que solta a tinta fácil e leio: “made in Vietnam”. Ai, Vladimir, quanta coisa a gente viu, eu hoje com oitenta e quatro anos, você com oitenta e dois - oitenta e três. Quem jamais teria ouvido naquela época esse nome Vietnam? Quando a guerra, a Segunda Grande Guerra, que a primeira a gente não alcançou, acabou, a gente pensava que tinham se acabado todas as guerras da face da terra, restando os pecados de cada um. Como foi a guerra lá em João Pessoa? Em Ipojuca papai vendeu na loja muito pano preto para tampar as janelas nos exercícios de blecaute. Eu queimei o dedo botando caco de vidro na chama do cuviteiro para empretecer e através do vidro esfumado olhar o eclipse do sol, os urubus pousando nos coqueiros meio-dia em ponto para dormir pensando que era de noite e eu ligava o fenômeno à guerra, “Viva o Brasil morra o eixo”, a faixa atravessando de um lado ao outro da rua, a orquestra de Zé Marinho atrás tocando o Hino Nacional. Foi com essa mentalidade que entrei interno no Colégio Marista para voltar ao mundo pela exposição de Cícero Dias. 

Pena você não ter botado no filme o depoimento enxuto que saiu no catálogo É tudo verdade: “Cedo o nome de Cícero Dias era ouvido em casa por conta do meu pai, que curtia a arte e a literatura. Ele próprio era desenhista e escultor. Quando da polêmica exposição de Cícero, em 1948, no Recife, viajou para ver o que acontecia e de volta teve calorosa discussão com um meu tio, arquiteto e muito reacionário, que considerava um embuste a arte moderna. Esse clima foi de total influência na minha formação, e tornou-me sempre atento ao novo, sem preconceitos. Assim Cícero Dias - o compadre de Picasso aconteceu de forma espontânea, nunca deliberada”. 

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