Desde o Renascimento, o teatro é um negócio. No século XX, após a Segunda Guerra Mundial, reivindicações em favor dos direitos humanos e contra a barbárie se somaram às tendências socialistas de proteção da arte pelo Estado, difundidas pela União Soviética. Na conferência A arte secreta do teatro, proferida em 8 de dezembro de 2012, em São Paulo, o encenador italiano Eugênio Barba, criador do Teatro Antropológico, apontou a transformação dessa arte em algo para além do mercado. “Os jovens fizeram oposição aos governos tiranos. A total ruptura da hierarquia na universidade, a chegada do rock e do feminismo indicavam que muitos não queriam mais fazer teatro para ganhar dinheiro, mas para usá-lo como arma de protesto.”
Hoje, as ações artísticas são prejudicadas pela crise econômica mundial, que assola o Ocidente desde 2008. Ao realizar cortes nas despesas governamentais destinadas à arte, as nações tentam se equilibrar economicamente, ameaçando a existência de seus teatros nacionais e pequenos grupos engajados.
A Alemanha, nação conhecida por incentivar a cultura, hoje lida com o problema, assim como outros países europeus. Os alemães estão em meio a uma polêmica na qual se perguntam: “É responsabilidade do Estado alemão cuidar da cultura?”. Segundo o artigo Patronage and crisis: German theatre and cultural politics (2012), de Jonas L. Tinius, “Relatórios governamentais de 2010 convocaram museus, teatros e festivais (alemães) a ‘estruturar-se como empresas modernas’. Sem isso, cada parte da instituição cultural fechará até 2020. Os pesquisadores, ao compararem estatísticas da Alemanha, Suíça e Áustria, defendem que um patrocínio cultural desorganizado criou ‘muito do mesmo em todos os lugares’. A concepção da solicitação governamental é: ‘(…) pedimos mais espírito empresarial, mais envolvimento com as necessidades da audiência. E o conhecimento de que arte não vai mudar os problemas do mundo’”. Por mais suspeito que pareça, esse é o veredito da maioria dos governantes do mundo.
VERSÃO BRASILEIRA
No final dos anos 1990, o Brasil estava pronto para tornar realidade o sonho de artistas e empresários em construir uma espécie de Broadway brasileira. Para o crítico musical Ubiratan Brasil, o formato das peças americanas se insere facilmente em nosso público, como é o caso de Hair spray ou A gaiola das loucas, dirigidas por Miguel Fallabella. “Desde pequenos, somos habituados a viver com a cultura americana, desenhos da Disney, filmes dramáticos e de aventura. Parte de nosso imaginário é construído a partir de conceitos americanos. Assistir a um musical típico da Broadway não nos é estranho”, constata.
No Rio de Janeiro e em São Paulo, há uma notável fidelização de audiência aos musicais. A produtora Aventura Entretenimento é uma marca importante na indústria músico-teatral brasileira. “Começamos fazendo musicais internacionais, como o Mágico de Oz. Absorvi a técnica, o jeito, modos de escrever. Até que o público e o elenco amadureceram”, afirma Aniela Jordan, uma das donas da empresa, criada em 2008 e que hoje investe em biografias brasileiras, tendo em seu portfólio sucessos de audiência como Elis – A musical, que versa sobre a vida da cantora Elis Regina, e Chacrinha, sobre o rei dos auditórios. As peças dialogam com as estéticas televisiva e cinematográfica.
“A tendência é fugir de padrões. Trazemos parcerias de fora do musical. Quando convidei o (diretor de novelas) Dennis Carvalho para fazer Elis, ele, que nunca tinha dirigido uma peça, apavorou-se. Mas olha o resultado: 250 mil espectadores e um Prêmio Shell de melhor atriz para Laila Garin, uma das atrizes que interpretam Elis. A ideia é trazer um olhar de outro segmento para quebrar a influência de musical americano”, conta a empreendedora.
O ator Léo Bahia, 24 anos, encenou peças elogiadas como a montagem universitária de The book of mórmon, e interagiu com 420 profissionais na megaprodução Chacrinha, interpretando também Lúcia, na versão de João Falcão para a Ópera do malandro. “No musical, apesar de ser um processo compacto, existe pesquisa. O ator tem um lucro maior, por conta do grande interesse do público e patrocínio”, diz Bahia.
Há quem qualifique de engessado o gênero musical. O coordenador do Prêmio Bibi Ferreira, que é específico para musicais paulistas, Marllos Silva, diz que o musical é diferenciado no país. “Há apenas uma produtora no Brasil, a T4F, que produz musicais no formato de franquia baseado na Broadway. As outras adquirem os direitos do texto e das músicas, mas suas encenações são originais. Há liberdade de criação, com menor espaço para improvisos e erros.”
A versão nacional do musical alemão Cabaré – lançado primeiramente nos palcos de Nova York, em 1966, e depois na versão cinematográfica, protagonizada por Liza Minnelli – é um exemplo. A peça brasileira é considerada mais densa que a original da Broadway. Crítico teatral, Miguel Arcanjo Prado diz que o musical é capaz de oferecer mensagens profundas para um público amplo. “A versão com Claudia Raia ressaltou o horror ao nazismo e o lugar da mulher artista. Já o musical Priscilla, a rainha do deserto falou de respeito ao homossexual.”
Contrariando a ideia dos musicais caros, com ingressos que variam entre R$ 20 e R$ 300, o ator Cleto Baccic juntou-se à produtora Atelier de Cultura para disponibilizar gratuitamente ao público de São Paulo musicais de alto padrão de qualidade. A madrinha embriagada e O homem de La Mancha, ambos dirigidos por Miguel Falabella foram apresentados no Teatro Sesi da Avenida Paulista. “O público é o mais variado possível e pode vivenciar um espetáculo antes restrito às classes abastadas. Pessoas são atraídas pelo gênero e começam a procurar no teatro musical uma vertente da cultura”, diz Cleto.
Misturando as linguagens do musical com o protesto, e seguindo exemplo das peças da década de 1960, Rei da vela e Roda-viva, dirigidas por Zé Celso Martinez, o carioca Felipe Vidal e seu grupo de pesquisa Complexo Duplo montou o espetáculo Contra o vento – Um musicaos. “A temática nostálgica fala sobre o Solar da Fossa, uma pensão pela qual vários artistas tropicalistas, como Gilberto Gil e Gal Costa passaram. Trocando nomes de personagens e inserindo composições originais, conseguimos atingir perfil mais ‘dionisíaco’, longe do teatro disciplinado euroamericano e retornando às raízes de um protesto político alegre e brasileiro”, diferencia.
O antropólogo Bernardo Fonseca Machado está escrevendo o estudo Empreededorismo na “Broadway brasileira” (leia artigo dele ao lado). Fonseca observa que é nesse gênero que muitos brasileiros têm seu primeiro contato com o teatro: “O musical atrai mais facilmente. Além do apoio da grande mídia, tem convenções próximas das ensinadas no cinema e na novela. Enquanto uma pesquisa experimental tem um público muito mais demorado de se fazer, o teatro linear chama a família”.