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Ampliando o potencial do som

Tratamento tecnológico aplicado após a gravação de uma música determina como soará um registro fonográfico

TEXTO Marina Suassuna

01 de Julho de 2016

No estúdio Abbey Road, Brian Epstein, empresário dos Beatles, observa George Martin e Geoff Emerick na gravação da banda

No estúdio Abbey Road, Brian Epstein, empresário dos Beatles, observa George Martin e Geoff Emerick na gravação da banda

Foto Reprodução

[conteúdo da ed. 187 | julho de 2016]

Por trás de toda obra musical gravada em estúdio, há uma busca por determinada linguagem, que vai ser lapidada até chegar à sua versão disseminada ao público. Se uma música soa pop, com uma sonoridade mais bem-acabada, ou se traz uma pegada mais suja e crua, não se deve única e exclusivamente ao desempenho dos músicos. Ao escutar uma música no rádio, no celular, no computador ou em qualquer plataforma de reprodução, não estamos ouvindo somente a gravação bruta do artista, mas também o tratamento estético conhecido como mixagem, que é responsável pelo acabamento, pelo contorno definitivo da canção. 

Esse trabalho tem origem no início do século XX, com o desenvolvimento das tecnologias de produção musical, que permitiram a manipulação do som depois de gravado. Nesse contexto, a mixagem foi vista como uma forma de tornar a proposta estética do artista mais clara depois da gravação editada, com mais apelo ao ouvinte e com um alto nível de fidelidade em relação ao som original. Até então, o processo de produção em estúdio se restringia à gravação da performance dos músicos ao vivo, como num show, sem a possibilidade de sofrer interferência depois de pronta, o que comprometia, certamente, a maneira como o ouvinte assimilava a música. 

Tecnicamente falando, a arte de mixar consiste em pegar a gravação bruta e combinar os timbres, estabelecer um equilíbrio entre os volumes da voz e de cada instrumento, o posicionamento e o processamento individual de cada fonte gravada, a variação de dinâmica, a utilização de efeitos. Trata-se de uma verdadeira engenharia manipulada em softwares de computador e somada a uma mesa analógica, conhecida como mixer. Há ainda os profissionais que optam exclusivamente pela mixagem digital. 

E como traduzir o processo de mixagem e sua importância para um leigo? Um dos engenheiros de som e produtores mais atuantes do Recife, Buguinha Dub, sintetiza: “Imagina uma salada de frutas, a mixagem é isso. Tem que ter o dom de juntar as frutas certas pra dar aquele sabor”. Para ele, uma das principais contribuições da mixagem está relacionada à identidade que o artista carrega. “Com o acesso às tecnologias, as bandas hoje conseguem gravar um disco inteiro e fazer uma mixagem sozinhas em casa. Mas a boa mixagem, com um profissional da área num estúdio, é o que vai dar identidade à banda. Caso contrário, o som vira um ótimo arquivo digital. A banda fica com um disco bom, gravado, mas sem uma identidade própria que o público reconheça logo no começo.”

Cabe ao profissional de mixagem realçar os aspectos artísticos da música, aqueles elementos e detalhes que fazem do disco um produto musicalmente atraente. Algo semelhante ao trabalho de um fotógrafo ou editor de vídeo. “Mixar é trabalhar o instrumento que é mais importante para certa parte da música e colocá-lo em primeiro plano. Tem instrumento que é importante na introdução da música e, quando chega na estrofe, o que mais conta é a voz. Então, aquilo que está atrapalhando a voz vai ficar mais escondido, desfocado no background”, explica Leo D, que assina a mixagem de discos importantes da música pernambucana, como Nadadenovo (2004), do Mombojó, Tem arte na barbearia (2006), do Bonsucesso Samba Clube, Novas lendas da etnia Toshi Babaa, (2011), da Mundo Livre S/A, Eu vou fazer uma macumba pra te amarrar, maldito (2015), de Johnny Hooker, e Destemida (2016), da Bande Dessinée.

É comum o técnico de mixagem ser também o produtor do disco. Quando as duas funções são desempenhadas por pessoas diferentes, elas trabalham juntas, pois a função do mixador é traduzir, viabilizar tecnicamente a concepção e as diretrizes musicais estabelecidas pelo produtor para determinada música ou disco.

O profissional de mixagem precisa saber qual ferramenta vai proporcionar a sonoridade que se pretende alcançar. Para isso, é essencial dominar habilidades técnicas como o uso de processadores externos, plugins, equalizadores, compressores de volume e efeitos especiais com reverbs, ecos e delays. Mas, tão importante quanto o conhecimento técnico é a sensibilidade do mixador. Em matéria publicada na Continente de n° 164, de agosto de 2014, sobre o projeto Rozenbac, o produtor e engenheiro de som Bactéria se referiu ao mixador como sendo mais um profissional a somar à música, o que significa que sua assinatura estilística faz a diferença no resultado final do trabalho, acrescentando bastante à obra em termos de linguagem.

AUTOR INVISÍVEL
O que seria, por exemplo, dos Beatles sem George Martin, responsável pelo acabamento de boa parte das músicas do quarteto de Liverpool e, por isso, chamado de “quinto Beatle?” Da mesma forma que o pop rock nacional não seria o mesmo sem o veterano Liminha, um dos mais solicitados produtores e técnicos de som do país. Em seu estúdio no Rio de Janeiro, o Nas Nuvens, foram mixados discos do Rappa, Paralamas do Sucesso, Gilberto Gil, Vanessa da Mata, Titãs, Lulu Santos, Jota Quest, Cidade Negra, entre outros. É de Liminha a mixagem que consolidou o álbum da Lama ao caos (1994), da Nação Zumbi - disco importante da música brasileira -, projetando-o internacionalmente.

O mixador, portanto, não deve ser visto como um mero apertador de botões ou clicador de mouse. Sua participação é de natureza autoral. De acordo com David Byrne, no livro Como funciona a música, esses técnicos “eram tão responsáveis pelo som dos discos quanto os próprios compositores e músicos. No fundo, a autoria de uma gravação e da música em geral estava sendo distribuída, dispersada. Foi ficando cada vez mais difícil determinar quem era responsável pelo o quê, ou quem tomava as decisões que afetavam a música que chegava a nós.”

Embora o papel do mixador revele muito sobre a natureza de uma obra, sua visibilidade é quase sempre mínima. Menos para aqueles que se dispõem a mergulhar num disco e dissecá-lo de cabo a rabo, incluindo aí o conhecimento da ficha técnica. Seria importante, portanto, que o mixador fosse reconhecido pelo público de música, pois sem este profissional as gravações não chegariam aos nossos ouvidos com o mesmo impacto que as perpetuou. A mixagem é que mantém o valor de uma canção gravada, sobretudo por incorporar efeitos e habilidades que não podem ser conseguidos numa performance ao vivo.

Na opinião do engenheiro de som Fábio Henriques, este é o caso do álbum homônimo do Rage Against the Machine, de 1992, cuja mixagem de Andy Wallace contribuiu para torná-lo um clássico do rock. Autor da série de publicações conhecida como Guia de mixagem e tendo mais de 200 CDs e DVDs na bagagem, Fábio considera o trabalho de Wallace um exemplo claro de mixagem competente, que evidenciou o caráter revolucionário do som e da temática da banda.

ESPECIALISTAS
Na prática, os artistas que gostam do trabalho de determinado engenheiro de mixagem voltam a escolhê-lo, e, com isso, o profissional acaba se especializando em determinado estilo. Buguinha Dub, por exemplo, embora trabalhe com artistas de variados matizes, é mais requisitado para discos ou canções que envolvam reggae e dub. “O reggae tem uma coisa do pulsar do coração que move. Tem uma galera que toca reggae, mas que não é regueira, não sabe timbrar nesse estilo nem tem uma pegada de baixo pulsante característico do gênero. Então eles me procuram na intenção de uma mixagem que atenda a esse formato”, explica.

 Já Léo D criou uma conexão maior com as bandas de rock, pop e eletrônica. “Gravei várias bandas da cena de rock do Recife dos anos 1990, como Dona Margarida Pereira e os Fulanos, Conservados em Formol, Rive Raid. Eles me procuravam porque não conseguiam o som que queriam em outros estúdios. Acabei unindo o útil ao agradável, porque sempre me identifiquei mais com esses gêneros.” 

Certas características que definem a música são próprias do mixador, como o timbre da voz, as texturas de instrumentos, a ambiência e a espacialização que é feita na música. Ao mesmo tempo, esses elementos devem estar a serviço da proposta estética do artista. “Penso que quando me procuram para mixar, é porque querem algo do meu som. Apesar de que gosto que fique a cara da banda. Procuro sempre pesquisar, saber o que o artista quer”, diz Buguinha Dub, que, além das bandas de reggae, traz no currículo trabalhos ao lado de Racionais MC’s, Cordel do Fogo Encantado, Nação Zumbi e Emicida.

Responsável pela sonoridade de bandas do brega local como Kitara, Vício Louco, Musa e Michele Mello, o guitarrista e mixador Tiquinho Lira deixa transparecer seu estilo ao inserir guitarras com pegada de rock, mas sem descaracterizar a essência do brega. “Era uma coisa que a turma da mixagem de brega usava pouco. Então comecei a explorar de maneira sutil. Até porque tenho influência de bandas como Pink Floyd, Led Zeppelin, Rush e não vejo um estilo musical como barreira para explorar outros ritmos. Costumo não ter muitas regras nas gravações”, diz o técnico, cujo maior desafio foi mixar canções para o cantor Latino no ritmo da bachata, um híbrido entre bolero com tango e outras influências, em que precisou ressaltar os violões, os bongôs e a percussão.

É o estilo de música que vai nortear, em primeiro lugar, a forma como o mixador trabalhará. Embora as ferramentas sejam as mesmas para qualquer situação, mixar um reggae, uma música pop, romântica, punk ou eletrônica envolve conceitos e procedimentos diferentes e, para isso, o profissional precisa conhecer as particularidades de cada estilo. 

“Um engenheiro de mixagem é capaz de mixar qualquer estilo que ele conheça, tudo é uma questão de memória musical. Só não faço música eletrônica, pois não tenho afinidade com essa sonoridade e, por isso, não terei um bom resultado”, conta Beto Neves, dono do Mosh Estúdios, em São Paulo, um dos mais antigos do Brasil. Ele ficou conhecido por mixar discos viáveis comercialmente, sobretudo da música baiana, como Ivete Sangalo, Cláudia Leitte, Carlinhos Brown e Harmonia do Samba. Sua discografia também inclui mixagens de rock com Dave Matthews Band, pop com Shakira, sertanejo com Lucas Lucco, jazz com Cesar Camargo Mariano. “Mixar é a arte da repetição, quanto mais você mixa, melhor fica o resultado”, pontua.

Ainda que a mixagem seja fundamental para o resultado final de uma música, trata-se de uma etapa da produção em estúdio que não deve chamar mais atenção que a obra em si. Quando isso acontece, algo está errado. Assim, “antes de tentar identificar qual o reverb usado na caixa”, pondera Fábio Henriques, “tente perceber se a música é boa, se a letra é boa, se o arranjo é bom.” Afinal, uma boa mixagem é aquela que entende, respeita, traduz e amplifica o potencial do artista. 

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