O belo
TEXTO José Cláudio
01 de Junho de 2016
Danúbio Villamil Gonçalves, da série 'Xarqueadas', 1952, xilogravura de topo
Imagem Reprodução
Disse Jairo Lima, amante dos pré-socráticos, que na Grécia a ideia do belo estava ligada à ideia da virtude, beleza e virtude sendo quase sinônimos, acrescento eu no meu pouco discernimento na matéria, já que o que é virtuoso é belo e o que é belo é virtuoso. Tinha muita vontade de ler O belo e o conveniente, o primeiro ensaio juvenil de Santo Agostinho.
Infelizmente se perdeu. Basta algo ter se perdido para aumentar nossa curiosidade, assim como, ainda sobre Santo Agostinho, o livro Hortêncio, de Cícero, de tanta importância na sua formação. O que queria dizer Santo Agostinho com esse título? Será que, para ele, como no caso dos gregos com a virtude, a noção da beleza estaria ligada à da conveniência ou, pelo contrário, o título sugere oposição entre os dois termos? Ou nem uma coisa nem outra? No livro Confissões o autor, já convertido, fala sem mágoa dessa perda, como se dissesse que tudo o que pensava naquela primeira época fosse puro equívoco, não valendo a pena lembrar. Mas dá algumas pistas: “Por esse tempo ignorava estas verdades e amava as belezas terrenas. Caminhava para o abismo e dizia a meus amigos: ‘Amamos nós alguma coisa que não seja o belo? Que é o belo, por conseguinte? Que é a beleza? Que é que nos atrai e afeiçoa aos objetos que amamos? Se não houvesse neles certo ornato e formosura, não nos atrairiam’ ”. E: “Eu notara e via que nos mesmos corpos se devia distinguir a beleza proveniente da união das suas partes — o todo — e a resultante da sua apta acomodação a alguma coisa, como, por exemplo, a parte de um corpo ao seu todo, ou o calçado ao pé, e outras semelhantes. Essas considerações borbulhavam no meu espírito desde o fundo do coração. Escrevi, por isso, os tratados De Pulchro et Apto, creio que em dois ou três livros. Vós o sabeis, meu Deus. Eu já me esqueci. Já os não possuo. Desapareceram-me, não sei como” (Confissões, cap. 13, O que é o belo). Ainda: “Definia o belo ‘o que agrada por si mesmo’; e o conveniente ‘o que agrada por sua acomodação a alguma coisa’. Distinguia-os e comprovava-os com exemplos hauridos dos corpos” (cap. 15, O problema do belo e do mal). O grande interesse que O belo e o conveniente podia oferecer é de ter sido escrito quando o autor ainda não tinha, por assim dizer, subido aos céus com tripa e tudo, vivendo, como nós, vida terrena, antes de tomado pelos gozos celestiais.
Vamos trazer o belo mais para perto. Já dizia o futurista Marinetti (1876-1944), com o que hoje toda a população do mundo concordaria: um automóvel em movimento é mais belo que a Vitória de Samotrácia. Sou mais esta, diga-se de passagem, em primeiro lugar porque nunca entendi de automóvel — o que não quer dizer entenda tanto de qualquer outra coisa — e, segundo, porque algum dia o automóvel será substituído por outro artefato bélico.
Estava pensando no que teria sido ou é o belo para mim e por acaso botei a mão no livro de Carlos Scarinci A gravura no Rio Grande do Sul/1900-1980 e daí para frente só conseguia pensar na minha própria conversão e no novo mundo em que entrei ao largar tudo e me dedicar à pintura, não me deixando de passar pela cabeça, deparando-me com o livro de Scarinci, o episódio do “Toma e lê” de Santo Agostinho, embora a comparação seja totalmente ridícula. Mas já que toquei no assunto, não posso deixar o leitor sem a referência, caso não possua (cap. 12, A conversão): “Assim falava e chorava, oprimido pela mais amarga dor do coração. Eis que, de súbito, ouço uma voz vinda da casa próxima. Não sei se era de menino, se de menina. Cantava e repetia frequentes vezes: ‘Toma e lê; toma e lê’. (...) Abalado, voltei aonde Alípio estava sentado, pois eu tinha aí colocado o livro das Epístolas do Apóstolo [São Paulo], quando de lá me levantei. Agarrei-o, abri-o e li em silêncio o primeiro capítulo em que pus os olhos: ‘Não caminheis em glutonarias e embriaguez, nem em desonestidades e dissoluções, nem em contendas e rixas; mas revesti-vos do Senhor Jesus Cristo e não procureis a satisfação da carne com seus apetites’”.
Há dias me perguntava sobre esse livro de Carlos Scarinci. Na verdade há tempos, não que me preocupe extremamente, mas sentia falta da consciência existente entre os pintores e gravadores da época em que comecei, 1952, e sua total ausência hoje, bem expressa no título de outro livro, de Aracy Amaral, Arte para quê?/a preocupação social na arte brasileira 1930-1970. Me encanta, me maravilha, a arte engajada, participante ou que outro nome se lhe dê e que, usando uma expressão de Paulo Vanzolini, “se interessa pelo Brasil”.
Conheci Carlos Scarinci quando, em São Paulo, éramos alunos de gravura de Lívio Abramo, com quem também estudou Gilvan Samico depois de nós, digo vaidosamente, como, antes disso, ainda sem nunca ter saído daqui, pude conhecer Danúbio Gonçalves, levando-o a Ipojuca para mostrar canavial. Muitos anos depois, conheci Mário Gruber, tendo alugado para ele uma casa ao lado da minha. Também estive com Renina Katz mais de uma ocasião. Nunca deixei de ter por eles grande admiração, juntamente com o grupo de Porto Alegre: além de Danúbio, Carlos Scliar, Vasco Prado, Edgar Koetz, Glauco Rodrigues, Glênio Bianchetti, Francisco Stockinger, Trindade Leal, com quem convivi quando trabalhamos e moramos no Centro Carneiro Ribeiro, com quem me correspondi durante muitos anos, seu último endereço na última cidade do Brasil, Santa Vitória do Palmar, à beira do Arroio Chuí, fronteira com o Uruguai, gente que faz parte integrante de mim, mesmo os que não conheci pessoalmente, mas através de sua arte, nutriram-me e até hoje nutrem.
JOSÉ CLÁUDIO, artista plástico.