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Chico Nunes: De pandeiros e recordações

Ele é luthier, cantor, compositor, desenhista e ex-policial militar do Carandiru. Em 22 anos, soma quase 1.200 pandeiros feitos por suas mãos

TEXTO LEONARDO VILA NOVA
FOTOS ALCIONE FERREIRA

01 de Junho de 2016

O luthier Chico Nunes

O luthier Chico Nunes

Foto Alcione Ferreira

"A pessoa é para o que nasce", disse Poroca, uma das três Ceguinhas de Campina Grande. A frase virou o título do documentário de 2004 que traz as irmãs como protagonistas, mas serve muito bem para nos dar a dimensão de quem é Chico Nunes. Embalado pelos caminhos e descaminhos da vida, parece ser perseguido por uma predestinação benfazeja: a arte. Dela, nunca quis fugir. Nasceu para isso. Dono de uma mente curiosa e inquieta, este senhor de 78 anos é daquelas pessoas vocacionadas para múltiplos fazeres, embora tenha sido sempre a música quem o pegou de jeito.

Nascido Luiz Francisco Nunes, em Glória do Goitá (PE), Chico é um artista, apesar de não se considerar um. Tarefa impossível é defini-lo com apenas um predicado. Militar aposentado, é também cantor, compositor, desenhista, dentre várias coisas que já se arriscou a fazer. Mas foi como luthier que se notabilizou entre músicos de Pernambuco, e também fora dele. Por suas mãos, pandeiros tomam vida há 22 anos, e ganham o Brasil e o mundo. Seu nome se tornou uma espécie de chancela quando se fala no instrumento, praticamente um “sinônimo de categoria”, como se diz das marcas que substituem o nome que se dá a um objeto, produto.

É da pequena área de serviço do apartamento onde mora, no Recife, que saem os instrumentos que produz, os seus “Chicos Nunes”. Lá, madeiras, peles, peças de metal estão espalhadas por todos os lados. Formas, prensas, marretas, colas e todo o material necessário para confeccionar o instrumento dividem espaço com roupas no varal e despensa. Chico já produziu quase 1.200 pandeiros. É possível encontrá-los em vários estados, como Rio Grande do Norte, Rio de Janeiro, Paraná e Bahia, e em todos os continentes, exceto na África, ele observa. Franceses, israelitas, escoceses, cubanos, ingleses já bateram à sua porta em busca do famoso instrumento.


O luthier faz todo o processo, como hidratar a madeira para que fique circular

O ofício, ele aprendeu sozinho, sem professor ou apostila. “Continuo aprendendo até hoje”, assevera. Tudo começou por necessidade. Boêmio, costumava frequentar as rodas de choro do Quintal do Cosme, na Estrada da Batalha, em Jaboatão dos Guararapes. Num dos intervalos, observou alguns pandeiros encostados e se arriscou a tirar som de um deles. “Achei que tinha jeito pra coisa e fui tocar. Gostei do negócio!” No dia seguinte, estava na Rua da Concórdia, no centro do Recife, procurando um para comprar. Perguntou ao atendente qual o melhor que tinha para samba. Ao experimentar, disse, na lata: “Rapaz, esse pandeiro não presta!”. Apesar de o vendedor exaltar a famosa marca do instrumento, Chico rebateu: “Esse pandeiro até pra jogar no lixo paga imposto”.

Partiu para encontrar um que lhe agradasse. Foi a Fortaleza (CE) e Campina Grande (PB), territórios de outros luthiers, mas se cansou. Determinou-se, então, a criar o próprio pandeiro. Pediu dicas de madeiras, materiais e formas de fazer. Sozinho, foi dando os primeiros passos na luteria. E foi na prática que se empenhou em alcançar a sonoridade desejada, já que o primeiro pandeiro que fez “ficou uma desgraça”, como ele diz. Mesmo assim, conseguiu um comprador, o que o estimulou a continuar a produção. Não parou mais.

Ele criou um tipo muito particular de pandeiro, que se reconhece, de imediato, ao empunhar. O instrumento, de leveza incomum, ganhou uma almofada estrategicamente instalada na área em que se segura, tornando o manuseio mais confortável para o músico. Apenas o pandeiro de Chico Nunes possui esse acolchoado, que se tornou uma marca registrada, além da qualidade do som, já atestada e aprovada por quem é do ramo. Para chegar ao resultado final, ele lida com madeiras (cedro), peles (bode), latão e demais materiais. Confecciona tudo: aro, platinelas, tarraxas, porcas, com exceção apenas das ruelas. Todo o processo – que inclui hidratar a madeira, conferir a ela o formato circular, aplicar ceras, vernizes, colocar a pele – dura 20 dias. A produção é de, em média, cinco pandeiros por mês. Todos devidamente registrados numa lista, manuscrita, na qual ele coloca, um a um, os nomes dos clientes. Entre alguns eles, estão Isaar, Silvério Pessoa, Walmir Chagas, Maestro Forró, Santana e Benito di Paula.

PRAZERES
Apesar dos 78 anos e da aposentadoria, a vida de Nunes é de dedicação total ao ofício. Não há um dia sequer em que não mexa nos pandeiros, seja saindo à rua para comprar os materiais necessários ou no trabalho de feitura propriamente dito. “Hoje em dia, ele trabalha muito mais do que quando não era aposentado”, diz a esposa, Zita, com quem Chico vive há 55 anos. Ele também dedica noites à dança no Clube das Pás, nutre paixão pelo Carnaval, pelo futebol, por contar histórias. Conversar com Chico é de puxar a cadeira e tomar um bom cafezinho. Do dilúvio bíblico às células-tronco, tudo entra no seu colóquio afiado e sagaz. Tem sempre uma opinião na ponta da língua e adora destilar frases cáusticas, mas bem-humoradas. Consegue passar horas a fio relembrando fatos e momentos muito específicos, com uma riqueza de detalhes que impressiona. Nisso, sua vida torna-se um prato cheio.

Desde a infância pobre, quando morava numa “casa de taipa, coberta de capim, sem luz e sem água”, no Alto Santa Terezinha, passando pela época em que viveu em São Paulo, até os dias de hoje, ele desanda a contar tudo, sem restrições ou empecilhos da memória. Entre álbuns de fotografia, desenhos, recortes de jornal, letras de música, ele se debruça sobre um tanto do que viveu, tendo o samba, o choro e o frevo como trilha sonora afetiva.

A música, sua paixão de primeira instância, soberana, está presente desde muito cedo. A primeira composição foi feita aos 12 anos, despretensiosamente, e lembra a Escola de Samba 4 de Outubro, do Alto Santa Terezinha. À época, o diretor de harmonia da agremiação, Mariano, abandonou a função por conta de um aborrecimento. Preocupado com sua ausência, a poucos meses do próximo Carnaval, Chico compôs, em verso e melodia: “Avisa à turma que tem ensaio/ e nós precisamos de você/ sem diretor de harmonia/ a nossa escola não pode vencer/ tu és a alma desse povo/ tu és a nossa tradição/ pega no apito, Mariano/ e venha animar o povo da nossa região”. A música havia agradado à diretoria da 4 de Outubro, que começou a ensaiá-la. Até que, dois meses antes da folia, Mariano retomou o posto. “Ele voltou com um samba já pronto. Claro que o pessoal ficou com a música dele, não com a minha. Ninguém ia sair com um samba de um menino, né?"

O talento ali apontado só viria cutucá-lo muito tempo depois, longe de casa. Aos 21 anos, Chico passou num concurso para a Polícia Militar do Estado de São Paulo. Depois de oito anos trabalhando como PM nas ruas – “Eu não prendia nem uma mosca!”, lembra –, foi transferido para a Casa de Detenção de São Paulo (o Carandiru), onde seguiu pelos próximos 22, até se aposentar, em 1988. O clima duro, pesado e hostil não o furtaram de se deparar com rodas de choro formadas por detentos de bom comportamento.

O interesse de Chico pela música despertou novamente a vontade de compor e o levou a conhecer a noite paulistana. Passou a frequentar as rodas de samba e choro e foi apresentado a muita gente, a exemplo do cantor Noite Ilustrada, com quem manteve uma amizade de 36 anos. Também conheceu o “ponto dos artistas”: o Bar Cometa, na Avenida São João. Lá era o reduto de músicos, frequentado por cantores e compositores como Francisco Petrônio, Roberto Silva, Jair Rodrigues, Originais do Samba e tantos outros. “Fiquei meio ‘assim’! Nunca tinha visto esses caras na minha frente! Pra ver um artista desse, a gente tinha que ir ao cinema.” Antes um novato, aos poucos, Chico foi se tornando um deles.


Sua música Contratempo foi gravada na década de 1970, pelo grupo Samba Seis

Entre composições surgidas na época, finalmente Chico conseguira emplacar uma: Contratempo, gravada em 1970, pelo grupo Samba Seis. Certo dia, ele se depara com a apresentação da música no Almoço com as Estrelas, programa de grande audiência da TV Tupi. “Ainda fiquei encucado: ‘Será que é a minha?’ E era!” Pouco depois, a música já era a quarta mais pedida da programação. Era sinal de que o sucesso batia à sua porta. Entusiasmado, pensou em largar o trabalho e se dedicar a compor. Porém, Noite Ilustrada tratou de trazê-lo de volta à realidade. “Ele disse: ‘Fique quieto aí, vá com calma! Compre, no máximo, um tamborete novo e tá tudo certo’!”. Chico seguiu o conselho e continuou numa vida dividida: montou seu grupo de choro, que se apresentava nas noites paulistanas e continuou cumprindo carga horária no Carandiru.

A dureza que era o seu trabalho na carceragem o marcou profundamente. “Tinha dias que eu tomava três Diasepam antes de sair de casa.” Ainda assim, continuou a enviar músicas para artistas, embora sem a receptividade de Contratempo. “Nunca mais fiz um grande sucesso. Hoje em dia, gravo mais pra preencher meu ego.” Ele acredita que o temperamento forte, não aberto a concessões, o fez perder chances de ter várias de suas músicas gravadas. “Teve um ano em que eu dei 13 fitas pra cantores diferentes, com quatro ou cinco músicas cada. Nada!”, recorda. “Eu não gosto de demagogia! Nunca quis que ninguém gravasse uma música minha só porque era meu amigo”, conta, lembrando que poderia também ter associado seu nome a artistas famosos, o que recusara. “Deixei de gravar uma música minha com Jackson (do Pandeiro), chamada Vivendo e aprendendo, porque me neguei a colocar o nome dele em parceria comigo.” Com a aposentadoria, veio a “libertação”. Dois anos depois, estava de volta ao Recife.

O COMPOSITOR
Nunes tem mais de 40 músicas gravadas, dentre várias compostas. Em geral, sambas e choros, que ganharam as vozes de artistas como Walmir Chagas, Nena Queiroga, Cris Nolasco. Frevos também estão entre suas composições. Já participou, na condição de diretor, de agremiações como Galo da Madrugada e Bloco das Flores. Folião da “velha guarda”, o que o emociona é o “carnaval de antigamente”. “A (Avenida) Nossa Senhora do Carmo é o pé de poeira do Carnaval. Quando vejo aquelas agremiações desfilando, não consigo parar de chorar, porque me lembra a boa vontade e a força daquele povo pobre, mas feliz da vida de fazer seu Carnaval.” Além disso, já desenhou e confeccionou flabelos de 15 desses blocos.

Ele também desenha. “Eu desenhava capas de discos ou fotos de jornal e mandava pelos correios, pros artistas, aos cuidados da gravadora. Junto, uma fita K7, com músicas minhas.” Entre os consagrados – como Martinho da Vila e Alcione –, apenas um lhe respondeu: Chico Buarque. Nunes guarda até hoje a carta que recebeu do xará famoso, em 1979. No entanto, ele não se comprometeu a gravar nada. Parabenizou e disse que encaminharia sua fita à Philips. Ficou a recordação.

Sem dúvida, as recordações são o bem mais precioso de Chico. Apesar de se divertir ao contar suas histórias, para ele, “recordar não é viver”. O tempo de Chico é hoje. Os desenhos, seus pandeiros, suas novas composições, tudo isso vivifica sua alma. Sem vaidade alguma, contempla sua trajetória: “Eu vivo cada segundo. Um minuto, na minha idade, é muito tempo! Eu já vi o Náutico perder um campeonato em um minuto”, arremata, com um bom humor desencanado, porém atento, de quem se arriscou a tudo, exceto a deixar a vida passar em branco. 

LEONARDO VILA NOVA, jornalista e músico.

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