Amazônia: quatro dias no Rio Negro
Fotógrafa relata breve viagem pelas águas e pela Floresta Amazônica, em que a natureza grandiosa convida os forasteiros ao respeito e à observação
TEXTO E FOTOS ROBERTA GUIMARÃES
01 de Junho de 2016
Rio Negro
Foto Roberta Guimarães
Algumas leituras, mesmo sem termos a intenção, nos fazem reconhecer um local através dos personagens criados pelo autor. Reconhecimento que não é necessariamente visual (construído por uma imagem real), aliás, por mais das vezes apenas imaginário. Foi assim quando cheguei a Manaus para seguir numa excursão pelo Rio Negro. Algumas crônicas do manauara Milton Hautom, que estão no livro Um solitário à espreita, me fizeram viajar com seus personagens. Sobretudo a narrativa sobre a avó Samara – que, aos 91 anos, jogou os aparelhos auditivos num tanque de enguias porque o zumbido que ouvia lhe lembrava carapanãs, como os amazonenses chamam mosquito –, e o vendedor de frutas da crônica O homem-floresta.
Escreve Hatoum: “(…) um caboclo equilibrando-se na rua de pedras, um pomar suspenso oscilando sobre a cabeça invisível, a voz trinando sons tremidos pelo vento que vinha do Rio Negro. (…) avistava o arbusto humano carregado de frutas e ouvia as palavras tapebá, ingá, sorva, tucumã, graviola, jatobá, cupuaçu, bacaba; palavras (sons) que nunca mais deixei de ouvir por onde andei e morei”.
O homem-floresta de Milton Hautom me fez voltar à infância no Bairro da Madalena, onde ficava a casa da minha avó, à beira do Rio Capibaribe. Víamos e ouvíamos o homem-fruta, com seu balaio cheio de mangas, cajás, jambos e oitis. O conto de Hautom me lembrou do quanto tínhamos mais contato com a natureza, ainda nos idos anos 1960 e 1970. Os quintais eram repletos de árvores frutíferas. Na zona norte do Recife, não era raro encontrar nas casas, como hoje em dia o é, jambo, sapoti, cajá e manga.
Comunidade da etnia Dessana habita região do Baixo Rio Negro
O personagem do conto me lembrou a importância de conhecer a Floresta Amazônica, como forma de conscientização para a necessidade da preservação. A Amazônia representa 42% do território nacional, três milhões e 500 mil quilômetros quadrados é a porção pertencente ao espaço brasileiro. A hileia (mata virgem, inexplorada) amazônica possui uma das maiores biodiversidades do mundo. A sua flora apresenta mais de 30 mil espécies descritas, cerca de 10% das plantas de todo o planeta. E a sua fauna é riquíssima: com cerca de mais de 1.000 espécies de aves, com mais de 1.300 espécies de peixes, além de vários répteis, anfíbios, mamíferos e insetos.
Nossa viagem à Amazônia foi a comemoração dos 80 anos de minha mãe, que escolheu como presente visitar a floresta com todos os seus seis filhos. Ao chegarmos a Manaus, antes de subir o Rio Negro, fomos conhecer o Núcleo Cultural Indígena Cipiá, situado na Praia do Tupé, na região do Baixo Rio Negro, a 45 km da capital. Essa comunidade, com cerca de 35 pessoas de etnia Dessana, da família linguística tukano, faz parte da Central de Turismo Comunitário da Amazônia. Com base nos princípios da economia solidária e do comércio justo, a central cria o elo entre as iniciativas comunitárias e os interessados em visitá-las.
Ao nos aproximarmos da comunidade Cipiá, ouvimos a música que vinha da oca. O grupo tukano se apresentava para visitantes. Conhecemos algumas instalações, e nos dirigimos ao local de onde vinha o som. A cada apresentação, o cacique Domingos explicava qual era a finalidade da dança. O sentido de comunidade era visível ao observarmos a roda. Jovens, idosos, crianças, inclusive uma de colo que tentava mamar enquanto a mãe dançava, participavam da cerimônia. Após algumas danças, o cacique Domingos solicitou que só os homens ficassem para a apresentação do ritual do jurupari. O nome do ritual é referência a uma espécie de trompete, instrumento confeccionado com tronco de paxiúba, palmeira encontrada na floresta. Só os homens podem tocá-lo. As mulheres da aldeia devem apenas escutar seu som, mas não ver o instrumento, nem mesmo participar da cerimônia. Ela é considerada sagrada pelos dessanas.
O índio Piro realiza trabalho de turismo e conscientização com os visitantes
O mundo mágico e mítico do índio está sempre acompanhado pelo respeito à natureza, seja através do uso das plantas que curam, das que ornamentam o corpo para os rituais ou das cerimônias para aquisição e agradecimento do alimento que vem da floresta.
Após esse primeiro contato na comunidade Cipiá, seguimos a viagem pela Floresta Amazônica com o privilégio da companhia do índio Piro, o guia que nos trouxe a sua paixão pela Amazônia e nos apresentou alguns segredos da fauna do Rio Negro. Subimos o rio com destino à região de Jaraqui, para uma inserção na mata.
Na caminhada dentro da floresta, fomos apresentados a várias espécies que servem ao extrativismo: a castanheira, árvore da castanha-do-pará, que lá eles chamam de castanha-do-brasil; o breu branco, que serve para sinusite; a seringueira, de onde se extrai o látex para a produção da borracha; o cipó mata-mata, cuja fibra é utilizada para confecção das redes de pesca e de dormir; o cipó-saracura–mirá, que ajuda na redução da malária, da hepatite e do cansaço físico; a árvore da carapanaúba, que significa carapanã (mosquito) e ubá (árvore). Ao mastigarmos as fibras da casca da árvore do mosquito temos atenuadas a febre e as tremedeiras da malária. Neste trajeto, também encontramos fruto da sorva (Couma utilis), de cujo látex se faz a goma de mascar, e o jambu, erva típica da Região Norte que é utilizada na culinária amazonense e deixa a língua dormente.
ÁGUA PRETA
O Rio Negro, de água preta, não apresenta uma fauna tão rica como a do Solimões, de água branca, principalmente na variedade de peixes. Mas, para nós da cidade, essa característica traz uma grande vantagem, porque quase não encontramos mosquitos quando percorremos as suas águas. Por conta do PH ácido, abaixo de 4,0, os insetos não conseguem se reproduzir nesse ambiente. Enquanto os mosquitos são raros no percurso ribeirinho, as formigas são abundantes em terra. A cada hectare de floresta tropical, podem ser encontrados 8 milhões de formigas. Elas usam os troncos das árvores mirmecófitas (plantas que vivem associadas a uma colônia de formigas) como abrigo.
O nosso guia, o índio Piro, fez uma demonstração de como os nativos utilizam o fluído da formiga-tapiba como repelente. Ele retirou as formigas que estavam alojadas por trás do caule da árvore e começou a esfregá-las nos braços. Como me aproximei demais para fotografar, as formigas que caíram dos braços do guia subiram pelas minhas botas e pernas. Uma dica para quem for entrar na floresta: mesmo com calça comprida, não esqueça de enfiar a boca da calça dentro das botas, assim não dá espaço para invasores. Fui mordida por uma dezena de formigas, com reações que ficaram na pele por mais de duas semanas. Por conta desse contato tão próximo, entendi a expressão de Euclides da Cunha, quando chamou a Amazônia de “inferno verde”. Excessiva umidade, um calor infernal e a inabilidade do homem urbano com os extremos da floresta, mesmo através de uma pequena experiência com algumas poucas tapibas.
À noite, de volta à embarcação, experimentamos o tambaqui. Além de ser uma delícia, é um peixe que se alimenta apenas de frutas e sementes da floresta, inclusive de sementes da seringueira. O tambaqui engorda por seis meses, aproveitando-se da produção farta no período das cheias, e assim mantém uma reserva para o período de seca.
Percurso ao longo do rio é feito de forma confortável
No terceiro dia na Amazônia, fomos conhecer duas comunidades ribeirinhas, uma indígena, chamada Três Unidos, que fica no Rio Cuieiras, afluente do Rio Negro, e a outra na região do Ariaú. Na comunidade de Três Unidos, fomos visitar o Núcleo de Conservação e Sustentabilidade, que é coordenado pela FAS (Fundação Amazonas Sustentável), e abriga uma escola que atende os alunos da etnia Kambeba, moradores do local, e outros de mais de 15 comunidades da região. No núcleo, os alunos aprendem técnicas de conservação e manejo da floresta.
De Três Unidos, seguimos para o Ariaú, para conhecer a casa de Dona Neide e sua tapioca maravilhosa. Quase do tamanho de uma pizza média, a iguaria era dividida em tamanhos menores, após retirada do fogo. É impressionante o tamanho do forno à lenha por ela utilizado. E a estética das tapiocas sobre a grande base de ferro, sendo giradas por Dona Neide, dava beleza à cena.
Em busca de ver mais de perto um pouco da fauna amazônica, no último dia da nossa viagem, fomos para a região de Três Bocas, no Arquipélago das Anavilhanas. No trajeto, avistamos araras e tucanos e uma ave conhecida como cigana (Opisthocomus hoazin), uma espécie quase dinossáurica. O seu sistema digestivo assemelha-se ao das vacas. Ela tem duplo esôfago, que lhe permite fermentar grandes quantidades de folhas. Vimos também a jaçanã (galinha d’água), cuja curiosidade é que ela põe os ovos, mas quem cuida dos filhotes é o macho. Dessa vez, não tivemos a sorte de ver, ou melhor, de ouvir o uirapuru (Cyphorhinus aradus), também conhecido como capitão-do-mato. Seu canto se propaga pela floresta. Ele se reproduz a cada cinco anos, talvez por isso seja tão raro vê-lo. Nosso guia, com mais de 10 anos de atividade, disse que só ouviu seu canto três vezes.
Mas a grande expectativa, no final da viagem, era poder encontrar e nadar com o boto-cor-de-rosa. Na região do Ariaú, é onde acontece o encontro com os botos. Após a liberação para o banho, a maioria das mulheres estava temerosa. Diz a lenda que os botos têm o dom de engravidar aquelas que por eles se encantam.
É essa grandiosidade da floresta, com uma natureza tão enigmática, que faz o ser humano se apequenar. Não seria ruim esse sentimento, se fosse transformado em respeito e preservação. A Região Amazônica tem um gigantesco potencial, mas é necessário utilizar seus recursos de forma renovável. Como disse o guia Piro para o grupo dos visitantes: “A mãe natureza é uma farmácia ao ar livre, mas tens que conhecê-la. Não a desprezes. Não sei por que viestes de tão longe, o que te atraiu, como tu veio, se foi obrigado… não sei. Aqui está pleno de vida, de energia… Simplesmente, respeite e preserve.”
ROBERTA GUIMARÃES, fotógrafa profissional, sócia-proprietária da Imago Fotografia, com vários livros publicados.