Tíope trabalha numa oficina de conserto de automóvel em Olinda nos Bultrins como eletricista. Quanto a esse nome de Tíope, vem de “etíope” e remonta à época do seu ingresso na oficina ainda menino como aprendiz, mandado pelo pai para tirá-lo da rua e ver se o interessava em alguma profissão. Por coincidência alguém viu no jornal foto de umas crianças da Etiópia magérrimas e isso foi o suficiente para o garoto receber a alcunha.
Já agora depois de adulto, casado, pai de família, lhe coube fazer o conserto de um carro, um Opala, exatamente há onze anos completados pelo carnaval, e nada de o proprietário lhe pagar o serviço, no valor de R$ 100 (cem reais). Apesar do temperamento pacífico, Tíope resolveu ir atrás. Mas o tal devedor, por nome Doca, era osso duro de roer. Tíope também não estava muito disposto a deixar por isso mesmo, ainda que não lhe ocorresse de que maneira pudesse sair do prejuízo.
Até que numa dessas excursões de cobrança notou pela primeira vez no arraial do inimigo, numa gaiola velha, um passarinho engurujado. Para não perder de todo, já que o outro se mantinha irredutível, propôs receber a metade do pagamento, R$ 50 (cinquenta reais) e o resto fazer um rolo com o passarinho, havendo a possibilidade de o devedor não pagar mais nada, inclusive salvando o passarinho. Caso contrário, Tíope ficaria com o passarinho e estava resolvida a questão.
Ora, o Santa Cruz dependia de resultado para permanecer na Primeira Divisão. Além de ter de ganhar de outro time, que Tíope a essa altura não lembrava mais qual time seria, ainda precisava de uma derrota do Vitória da Bahia. O dono do passarinho, um galo-de-campina brabo que só, era do Santa Cruz, e foi contando com seus brios tricolores que Tíope, que era do Sport, chamou o adversário para o confronto. Deu certinho. O Santa perdeu e o Vitória da Bahia ganhou, passando o tal galo xucro à legítima propriedade do seu novo dono Tíope. Foi mais uma vitória moral, já que materialmente o passarinho não valia o alpiste que comia: não cantava nada e ainda passaria bom tempo sem cantar.
O episódio teria ficado por aqui, nesse resultado inglório, tocando a Tíope apenas esperar que algum dia o galo-de-campina desencantasse e assumisse a responsabilidade que a natureza lhe confiara de nos brindar com seu improvável canto, não fosse o entusiasmo com que foi imediatamente recebido pela menina Rita de Cássia, Cassinha, então nos seus cinco aninhos, hoje com dezesseis, a filha de Tíope: “Painho, como ele é grande e colorido! Como é o nome dele?”
O que a menina queria saber, como Tíope muito bem entendeu, era que passarinho era aquele, sanhaçu, xexéu, patativa, papa-capim ou sabe Deus de que outros nomes de passarinho Rita de Cássia já ouvira falar, mas aproveitou a deixa e resolveu batizá-lo de Segundão, lembrando a derrota do Santa Cruz, uma das determinantes, ao lado da vitória do Vitória da Bahia, da vinda do passarinho às suas mãos. E Segundão ficou sendo chamado, conforme uma plaquinha com o nome “Segundão” que Tíope desenhou, pendurou na gaiola e foi passear pelo Monte (Olinda), tradicional reduto de tricolores. Acharam até bonito o passarinho mas estranharam a mudez. Perguntavam: “É feme?” “Comeu visgo de jaca e ficou com o bico colado?”
Como tinha de ir para a oficina, recomendou à menina ficar prestando atenção para ver se Segundão expelia algum som, valendo a notícia 50 centavos. Não demorou. “Ele cantou, painho.” Tíope não acreditava. O passarinho era brabo demais, principalmente quando via o dono, ficava esbarrando nas talas. Mas Tíope teve a ideia de ficar escondido debaixo da gaiola. Aí ele cantou. “Opa! Gostei do canto!”
Segundão começou a ficar conhecido. Sempre aparecia algum dono de galo-de-campina querendo fazer aposta. Tíope até evitava: “Ele agora só escreve. Virou compositor”. Chegou um com outro galo, “feminado” como diziam: você bota uma fêmea para dar fogo a ele. Segundão ganhava sempre. “Negão, seu galo canta muito?” “Só um pouquinho.” “Quer apostar como ele não dá nem um round com o meu?” “Cantar mais, eu não sei, mas calado ele não fica não.” O outro começou a açoitar. “Segundão, como é? Tu vai cantar ou não vai? Tu vai deixar o outro gozar c’a minha cara?” Segundão cantou valendo. O outro travou na hora.
Uma vez ele se soltou. A menina telefonou. Os meninos da redondeza com gaiolas e tentando jogar toalha. Segundão lá em cima no fio. Tíope chegou. “Segundão, desce Segundão.” Ele desceu certinho e pousou no dedo de Tíope. São muitas histórias.
A pior de todas foi quando Tíope passou um aperto, precisou de dinheiro. Um colega disse: “Eu dou 300, não quero nem ver ele cantar”. Tíope acertou o negócio. Foi sua Noite Triste. Olhou para Segundão. “Segundão, sou teu amigão mas vou ter que te vender.” De madrugada um saguim depenou o passarinho por fora da gaiola. Botava a mão por um lado, tangia e pegava do outro. “Vi o barulho. Corri. Vi só as penas caídas no terraço.” Ainda chegou a ver o saguim. “Matou o passarinho.” Segundão jazia inerte totalmente depenado no fundo da gaiola. Desistiu da venda. “Vou cuidar dele.”
Atualmente, Segundão vive entre a casa e a oficina, como se Tíope não pudesse mais viver sem estar com os olhos grudados nele o tempo todo, catando xanana, uma florzinha branca de miolo amarelo que dá pelas ruas de Bairro Novo e bota umas bolotas que galo-de-campina adora ou procurando tenebre, uma larva de inseto feito um tapuruzinho, sem saber mais o que fazer para agradá-lo. Quem quiser provocá-lo proponha-lhe algum tipo de aposta envolvendo Segundão ou, pior, pergunte se Segundão está à venda. Prepare-se para ouvir palavrão...