Retratos: encenação feita a partir de cartas e e-mails
Natural de Gravatá, Alexandre Lino cria espetáculo com textos reais de uma jornada que é também a sua, a dos nordestinos que passaram a viver em terras do sudeste brasileiro
TEXTO Rafael Teixeira
01 de Maio de 2016
As aventuras e desventuras dos nordestinos que vivem no Rio de Janeiro perpassam a dramaturgia
Foto Janderson Pires/Divulgação
Os dados do último recenseamento feito no país, em 2010, são eloquentes: das 17,8 milhões de pessoas que vivem em uma região diferente da que nasceram, 9,5 milhões – ou seja, a maioria, 53% – são nordestinos. Desse total, 66% moram no Sudeste. Tão antigo quanto presente no imaginário popular, o fenômeno migratório do Nordeste, notadamente para estados do Sudeste a partir de meados do século XX, é o tema do espetáculo Nordestinos, de 2015. Apresentada continuamente desde a estreia no Rio de Janeiro, a peça cumpriu uma bem-sucedida temporada em São Paulo, teve suas sessões mais recentes no Festival de Curitiba, segue atualmente em turnê e tem apresentações agendadas para a Festa Internacional de Teatro de Angra, em junho, no município de Angra dos Reis, litoral fluminense. Na base desse sucesso, está uma dramaturgia singular, construída a partir de mais de 100 cartas e e-mails enviados por nordestinos residentes em São Paulo e no Rio de Janeiro – onde são calculados mais de 2 milhões na primeira cidade e quase este número na outra.
Trata-se de uma criação do ator, produtor e documentarista Alexandre Lino, ele próprio também um imigrante – natural de Gravatá, cidade com quase 80 mil habitantes no interior de Pernambuco. Ele reside desde 1993 no Rio, com uma curta passagem pela Itália neste ínterim. Para realizar o espetáculo, cercou-se de artistas, como ele, egressos do Nordeste: no elenco, estão Rose Germano, de Riacho do Meio, na Paraíba, Erlene Melo, de Caruaru, em Pernambuco, Paulo Roque e Natália Regia (substituta eventual), ambos de Fortaleza, no Ceará. A direção ficou a cargo de Tuca Andrada, nascido no Recife. A única exceção no núcleo da ficha técnica coube ao dramaturgo Walter Daguerre, que é carioca. “Foi estratégico. A ideia era que o autor fosse alguém capaz de olhar aqueles relatos com um certo distanciamento afetivo. Mas, ao mesmo tempo, Walter conhece essa realidade, já que o pai é uruguaio e a mãe é do Norte. Então, foi uma escolha na medida certa”, explica Lino.
Os relatos foram enviados a convite do próprio Lino, feito no início de 2014 por meio da imprensa, em anúncios e em notas de colunas. A partir daí, ao longo de pouco mais de um ano, foram chegando mensagens de todo tipo. Em comum, naturalmente, o desejo de uma vida melhor em outro lugar, além das dificuldades de afirmar sua própria identidade em uma terra estranha, em um país de tantos matizes culturais. Em muitos relatos, esse obstáculo fica bastante evidente. “Quando comecei a morar no Rio, me incomodava a maneira como as pessoas me pediam pra repetir o meu nome. Sempre com ironia: ‘É diferente’, ‘Como se escreve?’ e ‘Estranho’”, conta uma mulher batizada com uma mistura dos nomes do pai e da mãe – característica, aliás, comum a vários missivistas. Em outra carta, um pernambucano lembra: “Por mais que o Rio tenha me recebido de braços abertos, eu não estava em casa. Não sou carioca e não conhecia nenhum outro nordestino aqui no Rio (…) Não tinha com quem partilhar minha nordestinidade”.
Ator e produtor convidou seus conterrâneos a contarem sua história através de chamados em jornais. Foto: Janderson Pires/Divulgação
Além das questões de identidade, os relatos são perpassados por todo tipo de revés: a gravidez da namorada que ficou na terra natal e obriga um sujeito a voltar; a jornada dupla de trabalho para juntar dinheiro enviado periodicamente para a mãe; a vida morando de favor em um quartinho, graças a uma senhora amiga da família. Em uma ou outra carta, a tristeza é mais dominante, como no caso da mulher que não conseguia manter uma relação amorosa por saudades do Nordeste e quase matou o marido por depressão e vontade de voltar. Mas o tom geral é de superação, nos mais diversos níveis – do prosaico, como relata o sujeito feliz pelo simples fato de hoje viver em uma casa com banheiro dentro, em vez de nos fundos do quintal, até o caso da mulher que se tornou jornalista e cobriu a inauguração de Brasília. É essa, afinal, a tônica do espetáculo. “Nunca quisemos alimentar essa visão já por demais atribuída ao nordestino, de que ele é um coitado, uma vítima, um ignorante. Seria dar um tiro no pé”, diz Lino.
TEXTO FINAL
Com tantas narrativas em mãos, foi difícil selecionar o material que seria incorporado à dramaturgia. “Algumas cartas dariam, sozinhas, uma peça”, diz Daguerre. O diretor conta que foi especialmente desafiador procurar o conteúdo das missivas que fosse não apenas interessante, mas passível de teatralização. “De algumas, só utilizamos pedaços, e assim fomos costurando várias tramas”, lembra Andrada. Das mais de uma centena de histórias recebidas, três foram escolhidas como pilares do texto (embora haja pinceladas de outras): a de Idalenajara (Rose Germano), paraibana que, durante a viagem de 15 dias para o Rio a bordo de um ônibus velho, se apaixonou por um sujeito que só reencontraria anos depois e com quem se casaria; a de Telson (Paulo Roque), também natural da Paraíba, porteiro há mais de 30 anos na zona sul carioca, trabalho por meio do qual conseguiu comprar sua casa própria e ainda ajudar os parentes; e a de Neguinha (Erlene Melo), pernambucana que se permitiu viver um grande amor e pegou a estrada rumo a São Paulo.
A esses três pilares, somou-se um quarto, representado pela figura de Josivânio, pernambucano de Gravatá que partiu para o Rio de Janeiro em busca do sonho de virar ator, trabalhou na McDonald’s e chegou a passar fome. Se a narrativa, à primeira vista, parece muito com a história de Alexandre Lino, é porque ele e Josivânio são, de fato, a mesma pessoa. Explica-se: durante o processo de criação da dramaturgia, os próprios atores foram instigados pela direção a colocarem no papel as suas lembranças de imigrantes. Todos esses relatos foram incorporados ao texto final, com o elenco se dirigindo à plateia em primeira pessoa em vários momentos. Mas a história de Lino chamou especialmente a atenção do autor. No fim, enquanto Rose, Erlene e Roque “interpretam” a si mesmos e também Idalenajara, Neguinha e Telson (além de uma série de personagens secundários), Lino é o único que encarna um duplo que é ele próprio. Meio a sério, meio de brincadeira, o ator diz que foi um processo terapêutico: “Josivânio é o meu nome de verdade, e eu demorei uma vida inteira para lidar com ele de maneira tranquila. Foi só fazendo essa peça que me permiti brincar com isso”.
Como os atores encarnam conterrâneos com histórias de vida de alguma maneira semelhantes às deles (isso quando não “interpretam” a si próprios), o espetáculo transmite uma genuinidade que jamais poderia ser alcançada, caso o elenco viesse de outra região do país. “Eles tinham passado por essa experiência de deixar sua terra para viver em outro lugar. Então, não havia espaço para caricaturarem as suas próprias vidas”, explica o diretor. O próprio vocabulário de expressões idiomáticas flui melhor nas vozes de atores nordestinos. “A gente fala ‘gota serena’ ou ‘moléstia dos cachorro’ e o sotaque já vem, automaticamente, mesmo naqueles que já o perderam”, diz Lino. Existiu, é claro, um intenso trabalho de corpo, importante para diferenciar os muitos personagens que cada um interpreta. Mas a meta foi ir além da forma. “Houve uma preocupação em evidenciar o tom de nós, nordestinos. Tudo que trouxe veio de figuras que conheci e com quem convivi. Muito mais do que um trejeito, a busca foi de sentir aqueles personagens em seus relatos”, diz Roque.
ESTÉTICA DA MONTAGEM
Tal essência nordestina dos personagens se reflete diretamente na estética da montagem. O cenário e os figurinos de Karlla De Luca evocam a aridez do Sertão, tanto na paleta de cores quanto na aparente simplicidade do seu aspecto rústico. A encenação incorpora elementos lúdicos, notadamente no uso de mamulengos. “Além de ser uma manifestação típica do Nordeste, os bonecos me ajudavam a contar as diversas histórias nas quais apareciam em um grande número de personagens interpretados por apenas quatro atores”, diz Tuca Andrada. Acrescente-se a isso o uso de técnicas de teatro de sombras e um tom circense que perpassa todo o espetáculo. Segundo Lino, “essa liberdade está em comunhão com o universo, ainda reinante, dos quintais, das feiras, dos jogos de rua, das festas folclóricas e dos brinquedos artesanais típicos do nordeste brasileiro”.
Somados todos esses fatores, é natural que o público nordestino seja especialmente tocado pelo espetáculo. A confirmação disso se dá em todas as sessões, na reação da plateia durante a peça e também após a apresentação, quando os espectadores ficam aguardando o elenco do lado de fora da sala para trocar ideias e tirar fotos. “Eles se reconhecem nos sentimentos dos personagens. Muitas vezes, ao final do espetáculo, ouvimos histórias que poderiam estar no palco. É tão bonito! O tom é sempre confessional, uma preciosidade”, conta a atriz Erlene Melo.
O alcance do espetáculo é maior , aliás, considerando que Nordestinos é um projeto transmídia: além da peça, se desdobra em um livro – já publicado, reunindo algumas das histórias enviadas para a produção – e em um documentário, a ser lançado ainda neste ano, com direção de Lino e de Cavi Borges. Mas, apesar da forte identificação com um público específico, o projeto não se limita a esse recorte. Nesse sentido, Lino evoca o escritor Leon Tolstoi: “Fale sobre as questões da sua aldeia e você falará sobre o mundo”.
RAFAEL TEIXEIRA, jornalista, crítico de teatro e autor do blog Espectador Privilegiado.