Gerda Wegener: feminino à toda prova
Pouco conhecida por sua obra, artista retratada no filme 'A garota dinamarquesa' não foi apenas a base emocional da trans Lili Elbe, mas uma criadora de vanguarda
TEXTO Bárbara Buril
01 de Maio de 2016
Casal Gerda e Einar Wegener posa em frente à pintura dela
Foto Reprodução
Ela possivelmente se relacionou com homens e mulheres, foi uma mulher à frente do seu tempo no Reino da Dinamarca, questionou as construções de gênero nos seus trabalhos artísticos e produziu ilustrações eróticas para livros também lascivos. Pouco se sabe ainda sobre a artista plástica Gerda Gottlieb (1889-1940), mesmo após o sucesso do filme A garota dinamarquesa, do diretor Tom Hooper, indicado ao Oscar em quatro categorias neste ano. Interpretada pela atriz Alicia Vikander – vencedora do Oscar de melhor atriz coadjuvante –, Gerda surge como Gerda Wegener, a mulher que exibe um amor incondicional às vivências do marido Einar Wegener, tido como o primeiro transgênero a passar por uma cirurgia de mudança de sexo.
Sem dúvidas, o enredo do filme volta-se para a história de Einar, que, de repente, se descobre Lili Elbe e escandaliza as sociedades dinamarquesa e francesa do início do século XX. No entanto, uma inquietação permanece: quem era a mulher que aparece à sombra de Einar? Se chegou a se destacar mais do que o marido no cenário parisiense da época, o que criava artisticamente? São questionamentos que o filme de Tom Hooper não se propõe a responder, mas que, ainda assim, mexem com os espectadores que veem na esposa de Einar “a verdadeira garota dinamarquesa”.
Com linguagem visual e representação social da belle époque, detalhe de O Carnaval, de 1925. Imagem: Reprodução
Gerda Gottlieb, antes de assumir o sobrenome Wegener, nasceu em 1889, no seio de uma família conservadora, cujo patriarca era o pároco de uma igreja católica de uma pequena província dinamarquesa chamada Grenaa. Logo jovem, convenceu os pais a ir estudar na Academia Real de Belas Artes da Dinamarca, uma universidade para mulheres recém-inaugurada em Copenhague. Lá, conheceu Einar, com quem se casou em 1904, aos 19 anos, tornando-se, assim, Gerda Wegener, nome que usaria até o fim da sua vida para assinar as suas criações artísticas.
Na época, as paisagens de Einar conquistavam o público consumidor de arte na Dinamarca, enquanto as obras de Gerda – que exibiam mulheres em posições ativas, com olhares inquisidores e independentes – eram consideradas demasiado controversas para o país. Mesmo assim, Gerda seguiu se dedicando às suas mulheres. Certo dia, quando uma das modelos de Gerda não pode posar para ela, a pintora pediu ao marido que assumisse a função temporariamente. Einar aceitou e foi assim que, aos poucos, ele se descobriu bastante confortável na pele de Lili Elbe, o alter ego que encarnava durante as sessões de pintura. Gradualmente, as pinturas e os desenhos de Gerda começaram a se destacar na Dinamarca, sem deixar de escandalizar a sociedade, quando se soube que as figuras femininas onipresentes nas obras provinham de uma modelo que era nada mais, nada menos do que o pintor Einar Wegener. Em 1912, o casal se muda para Paris e é lá que Lili e Gerda passam a viver como duas mulheres casadas.
A expressão das moças exultantes dos anos 1920, em Carnaval, Lili. Imagem: Reprodução
Embora se saiba mais da vida de Lili, principalmente devido ao diário Man into woman: an authentic record of a change of sex (em inglês, algo como Homem dentro da mulher: um autêntico registro de uma mudança de sexo), escrito por ela durante os anos em que passou pela primeira cirurgia de mudança de sexo da história, é possível encontrar, nos trabalhos de Gerda Wegener, os temas, gestos, posições e elementos estéticos que a inquietavam pessoalmente. Uma amostra disso está na exposição Gerda Wegener, em cartaz no Arken (Museu de Arte Moderna de Copenhague), aberta até o dia 8 de janeiro de 2017. A mostra busca desvendar a vida de uma artista que passou ao largo da história da arte moderna dinamarquesa, a partir de obras que retratam os hábitos da sociedade europeia no início do século XX, em sintonia com o tempo em que Gerda vivia, e as relações afetivas e sexuais entre mulheres, contraculturais para a época.
OLHAR SUBJETIVADO
Tanto nas obras mais conservadoras como nas mais libertárias, Gerda retrata figuras femininas como donas de si. Elas nos olham como se nos encarassem, nos interrogam e se mostram como autoras da própria beleza. Parecem não depender de mais ninguém, além delas próprias. Não são mulheres que se deixam pintar por um olhar masculino, muitas vezes objetificante, como era possível identificar comumente nas pinturas de nu feminino da época. No trabalho intitulado Olympia (1931-1936), por exemplo, Gerda faz uma paródia feminista da obra homônima de Edouard Manet, de 1863.
Na pintura do artista francês, vê-se uma mulher branca nua, deitada em uma cama, com um gato preto aos seus pés e uma mulher negra em segundo plano a apresentar uma imagem de flores para a mulher branca. Apesar do título da obra, que remonta ao Monte Olimpo e às divindades gregas, a mulher que aparece em primeiro plano na tela usa tamancos e acessórios da época, em uma comprovação de que se tratava de uma figura feminina humana, contemporânea ao pintor, e não de uma divindade grega. “Isto torna a sua nudez óbvia desconcertante, uma vez que ela só pode ser uma prostituta. Este trabalho foi, assim, criado apenas para o olhar masculino, já que nenhuma mulher decente se deixaria ver por um olhar como esse. Olympia olha para o espectador firmemente no olho, sem um sorriso, aceitando o próprio destino”, escreve Andrea Rygg Karberg, curadora da exposição Gerda Wegener, no texto crítico Quando uma mulher pinta mulheres, publicado no catálogo da mostra.
Gerda Wegener teve ampla participação em editoriais de revistas
europeias. Imagem: Reprodução
“A versão de Gerda Wegener é totalmente desprovida de indignação social”, compara a especialista. Diferente, então, da de Manet, a Olympia de Gerda desfruta a si mesma e não fita o espectador diretamente nos olhos; é como se estivesse despreocupada com o ambiente que a cerca. “Ela está rendida por uma artista mulher que se regozija no olhar. De forma correspondente, o espectador poderia facilmente ser uma mulher com um senso de beleza da outra mulher”, analisa Andrea Karbeg em seu texto.
Gerda, sem dúvidas, tinha uma perspectiva afinada para a beleza feminina. Suas mulheres exibiam um tipo clássico, mostravam elegância e muita força. Com olhares meio ressacados – fazendo aqui uma divagação referente aos olhos de Capitu poetizados por Machado de Assis em um tempo anterior, mas próximo à artista dinamarquesa –, as mulheres de Gerda flertam com elas mesmas. Flertam também com os homens e as mulheres que povoam as pinturas e com os espectadores, sejam masculinos ou femininos, como se vê na obra Carnaval, Lili (1928). Mulheres idosas, pobres e negras não fazem parte do imaginário urbano, “civilizado” e moderno de Gerda Wegener. É a juventude feminina europeia em ascensão que povoa tanto os trabalhos da artista tidos como os mais “artísticos”, destinados a colecionadores e especialistas de arte, como as suas criações mais comerciais.
A artista, que também produzia ilustrações para revistas de moda da época, como Vogue, La Vie Parisienne e Fantasio, tornou-se uma das expoentes da art déco devido a estes trabalhos que possuíam elementos estéticos mais geométricos e exibiam um estilo de vida urbano, veloz e rico, cultuado massivamente na época por uma indústria da moda da qual Gerda passou a fazer parte. Na ilustração Garota e pug em um automóvel (1927), publicada na revista Vore Damer, por exemplo, vê-se como a artista articula elementos da art déco magistralmente: a geometria das árvores perde a sua organicidade para ser reta e bem-definida, a mulher parece ter o seu corpo estendido no carro, a velocidade do automóvel se contrapõe à lentidão da força animal, representado em segundo plano pelos cavalos, e assim prossegue a construção dos símbolos da civilização moderna.
ENTRE MULHERES
Mesmo tendo, de alguma forma, abraçado os elementos de sua época nas pinturas – a partir de parâmetros estéticos de um modo de vida urbano, com seus veículos motorizados, sua vida boêmia, sua velocidade, suas maquiagens, seus perfumes e suas joias –, Gerda foi também uma artista à frente do seu tempo. Em um momento no qual os relacionamentos entre duas mulheres só faziam parte de conversas de bastidores, de uma vida privada geralmente negada, Gerda levou o seu relacionamento com Lili Elbe para as pinturas.
Na obra No caminho para Anacapri (1922), feita durante uma viagem delas a Capri, na Itália, é possível ver Gerda Wegener em primeiro plano, mais baixa, e Lili, mais alta, por trás. É interessante notar que Lili, embora olhe diretamente para o espectador de uma maneira sensual, coloca o seu braço nos ombros de Gerda de modo protetor, tomando-a para si. Já Gerda segura uma maçã e olha à frente como se estivesse encantada. A paisagem que as cerca, com uma atmosfera de sonho e magia, parece funcionar como um pano de fundo bastante adequado para o relacionamento amoroso de ambas. Embora o filme de Tom Hooper não deixe claro se o casal continuou a manter uma relação afetiva depois de Einar se transformar em Lili, as pinturas e as pesquisas indicam que elas permaneceram juntas, como companheiras e cúmplices, mesmo após a transformação de Einar. Aliás, Lili também chegou a pintar Gerda na mesma viagem, como se vê na obra Gerda em Beaugency (1924), e retratou-as juntas no cenário da ilha, na pintura Capri (1929). Em ambos os trabalhos, Lili assina como Einar Wegener, mesmo quando o que se vê são duas mulheres.
Na segunda metade dos anos 1920, a artista dinamarquesa produziu várias aquarelas para a série As distrações de Eros. Imagem: Reprodução
Outro aspecto interessante do trabalho de Gerda é o fato de que algumas das figuras femininas e masculinas representadas por ela parecem transitar entre gêneros de um modo bastante livre e ousado. Na obra Cupido e Psiquê (criada provavelmente antes de 1927), é possível perceber os aspectos femininos do corpo e o gesto do cupido, representado na mitologia como uma figura masculina. Também na pintura Jovem homem, peito nu (1938), a figura masculina representada tem um rosto bastante afilado, olhos delineados e lábios bem femininos, como se Gerda fosse levada a encontrar um aspecto da mulher onde havia, anteriormente, uma característica do homem. Como se o feminino pudesse ser algo simplesmente achado, brotado, de onde fosse; como se ela tivesse, de fato, ajudado Einar a encontrar Lili.
Gerda chegou ainda a produzir ilustrações eróticas para livros de poesia, como é o caso da série As distrações de Eros (Les délassements d’Eros), criada para ilustrar os Doze sonetos lascivos, de Louis Perceau, ambas as criações publicadas em edições artísticas no ano de 1925. As séries eróticas de Gerda, que também exibem um estilo art déco, resvalam claramente elementos pornográficos, mas também são cheias de humor e charme. “Estas ilustrações são caracterizadas pela frivolidade que permeava o espírito francês, como foi expresso nos salões e na mentalidade das cortes europeias desde o século XVIII”, escreve o crítico de arte francês Frank Claustrat, no artigo Gerda Wegener e a França, também publicado no catálogo da exposição em cartaz no Arken. Uma curiosidade é que, para se prevenir de possíveis perseguições, Gerda assinou todas as ilustrações da série com uma máscara negra de Carnaval – aliás, um tema bastante querido por ela.
Apesar das variadas obras dedicadas à figura feminina, ao estilo de vida moderno e às relações lésbicas, capazes de indicar pistas sobre quem era Gerda além de Einar, a vida privada da artista permanece uma incógnita. Há indicações de que ela tenha tido uma vida afetiva própria, relacionando-se com homens e mulheres além de Einar/Lili. Legalmente, Gerda e Lili tiveram que se separar em 1930, quando Christian X, rei da Dinamarca, tornou nulo o casamento, uma vez que Lili já era uma mulher legalmente e, na Dinamarca, o casamento entre duas mulheres não era permitido.
No mesmo ano, Lili faleceu e, no ano seguinte, Gerda se casou com um diplomata italiano chamado Fernando Porta, passando a se chamar Gerda Wegener Porta, em uma recusa ousada e corajosa a tirar de si o nome de quem foi, certamente, o amor de sua vida. Nos anos 1930, as criações de Gerda já não eram mais tão apreciadas na Europa, uma vez que o mundo da arte passou a se interessar por formas mais puras e simples, em uma espécie de “enxugamento” da art déco. Fora de moda, e com um marido desempregado, Gerda morreu na pobreza em 1940. Apesar de um final não muito feliz para uma história de vida permeada de arte e entrega, é inegável que a arte de Gerda Wegener exigia uma mente aberta diante do amor e da vida.
BÁRBARA BURIL, jornalista e mestranda em Filosofia na UFPE.