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Casquinho: a maestria artesanal de Margarida Nunes

A história de resistência dessa iguaria praieira feita com carne de caranguejo é difundida por uma família do Recife a partir de notícias trazidas do Pará

TEXTO FLORA NOBERTO
FOTOS RAFAEL MEDEIROS

01 de Maio de 2016

Os casquinhos de Margarida estão em bares, restaurantes, clubes de delicatessens do Recife

Os casquinhos de Margarida estão em bares, restaurantes, clubes de delicatessens do Recife

Foto Rafael Medeiros

Quem se delicia com um casquinho (ou casquinha, como preferir) de caranguejo, em bares e restaurantes, muitas vezes não imagina a história e o trabalho por trás dessa iguaria. Para os amantes do crustáceo, é um prazer encontrar a carne do caranguejo temperadinha, sem necessitar quebrar a dura carapaça, apesar deste ritual trabalhoso também ter inúmeros fãs. Prontos para o consumo rápido, os casquinhos são saboreados como entrada em almoços ou como petisco acompanhando uma cerveja ou caipirosca.

No Recife, Margarida Nunes é o nome lembrado pela cadeia gastronômica por cumprir com rigor o preparo dos casquinhos de caranguejo. O seu nome ganhou a força de uma marca nos bastidores de bares e restaurantes. Ela é figura importante de uma história familiar de mais de 100 anos. Sim, esta é uma daquelas belas e saborosas histórias que atravessa gerações. Margarida aprendeu a receita do casquinho de caranguejo com a mãe, Josefa Nunes, que, por sua vez, já tinha aprendido com a respectiva mãe, Sílvia Nunes. Após o falecimento de Margarida, aos 83 anos, em outubro de 2015, o capricho teve continuidade com seus filhos –Miriam Meira Leite, Wilma Meira Tinoco e Cláudio Nunes Amazonas – e uma equipe fiel de funcionários.

O casquinho de Dona Margarida Nunes ganhou fama e até hoje é servido nos principais bares, restaurantes, clubes, delicatessens do Recife e em festas de políticos e empresários da cidade. Produzidos diariamente, também podem ser levados para casa direto da fábrica, instalada num sobrado preservado, na Rua Imperial, Bairro de São José. O proprietário do tradicional restaurante Pra Vocês, localizado no Pina, Severino José Reis, é um dos clientes antigos da família Nunes. “Há mais de 40 anos, eu compro os casquinhos de Dona Margarida. Cheguei a conhecer a mãe dela. Trabalho no Pra Vocês desde a década de 1950, era garçom naquela época. O casquinho dela é o preferido. Se colocássemos casquinho de outra pessoa, ninguém pediria”, conta Severino.


Processo artesanal exige cuidado com a estética e segurança alimentar

O pioneirismo na confecção da iguaria começou com Sílvia Nunes, avó de Margarida, que fornecia casquinhos por encomenda para restaurantes como o Savoy e também os vendia na porta de casa. Sílvia chegou a ser gerente-geral do Grande Hotel. O casquinho de caranguejo surgiu na sua vida através de um membro da família que comentou sobre o petisco que comeu no Pará. A empreendedora culinária gostou da ideia e disse que poderia fazer o casquinho de caranguejo no Recife. Então, desenvolveu sua própria receita. Sua filha e neta, Josefa e Margarida Nunes, seguiram os passos da matriarca na cozinha e chegaram a trabalhar juntas.

O empreendedorismo se perpetuou na família e o casquinho passou a ser protagonista dos negócios. “A base da receita do casquinho é a mesma, passou da minha bisavó para minha avó e dela para minha mãe e, depois, para nós, filhos. Mas as fórmulas da minha bisavó e da minha mãe eram distintas. Nossa bisavó usava um determinado ingrediente e nossa mãe acrescentou outro diferente, que deu um sabor a mais”, relata Cláudio Nunes, sem revelar os insumos. A receita não era divulgada por Dona Margarida e os filhos continuam mantendo o segredo. A média quantitativa de vendas e o faturamento também são mantidos em sigilo.

DENTRO DA CARAPAÇA
A qualidade do petisco feito artesanalmente é um orgulho para a família Nunes. O creme de caranguejo é produzido com leite de coco natural. Nada de usar leite industrializado. Além do sabor, um diferencial do casquinho é apresentação atraente para fisgar os comensais. O creme feito com a carne do crustáceo é servido tradicionalmente dentro da carapaça do bicho. Já existem ramequins de porcelana e cerâmica no formato do crustáceo, que facilmente poderiam ser adotadas por serem mais práticos para o manuseio e limpeza. No entanto, o petisco servido no casco original continua reinando no mercado gastronômico praieiro.

Por trás dessa tradição, existe um processo artesanal que exige cuidado com a estética e a segurança alimentar. Os pelos são retirados das carapaças, que são lavadas e higienizadas com hipoclorito de sódio. O processo é delicado, pois o casquinho não pode rachar ou quebrar. Dona Margarida dominou esta técnica com maestria e os seus petiscos passaram a ser reconhecidos pelos clientes fiéis por terem os cascos bem claros. Outra característica dos casquinhos de Margarida é a cor da farofa, bem amarela, que vem em cima da carne.


Filhos são so responsáveis por manter o padrão de qualidade
estabelecido por Margarida Nunes

A casa na qual funciona, até hoje, a fábrica artesanal de casquinhos foi onde Margarida nasceu, casou, criou os seus filhos e desenvolveu seu negócio. A sala é mantida no formato residencial, com móveis antigos de madeira, como mesa de jantar, marquesão e cristaleiras. A rotina da fábrica começa cedinho, às 6h, quando os oito funcionários iniciam os preparativos. Às 9h30, os acepipes já estão chegando fresquinhos às delicatessens da cidade. “Aqui funciona 365 dias por ano. Aqui não fecha, é igual à delegacia e hospital. O casquinho é feito diariamente, minha mãe nunca aceitou guardar casquinho de um dia para o outro”, afirma, com orgulho, Cláudio Nunes, o filho caçula de Dona Margarida, que está à frente da gestão do negócio familiar há 18 anos.

Um dos estabelecimentos onde se pode encontrar os famosos casquinhos é a Casa dos Frios. A proprietária Fernanda Botelho Dias diz que, desde o início do negócio, oferece o item entre seus quitutes. “A Casa dos Frios está com nossa família desde 1957 e sempre compramos os casquinhos de Margarida. Chegaram aqui e nos ofereceram, então, passamos a comprar, porque quando o produto é bom a gente coloca na loja. Os casquinhos dela são bem-vendidos”, diz.

Nos dias de aumento das vendas, como no Natal e na virada do ano, as filhas Miriam e Wilma colocam a ‘mão na massa’, junto com os netos de Margarida, para reforçar a produção. Ainda que exerçam outras profissões – uma é fisioterapeuta e a outra, servidora pública –, as duas são conhecidas pela agilidade e precisão no enchimento dos casquinhos. “O comércio é arraigado nas nossas veias, vem de bisavó. Minha mãe procurou ensinar dentro do comércio toda a dignidade e fidelidade do que a pessoa faz, ensinou a amar aquilo que ela fazia, por isso não foi difícil para a gente colaborar, estar aqui junto com ela”, explica Miriam.

Margarida gostava de trabalhar todos os dias, dizia que o trabalho era o seu hobby. Como cresceu no Bairro de São José, reduto carnavalesco, aprendeu a apreciar a folia. Wilma conta que Margarida fazia questão de ver o desfile do Galo da Madrugada e esperar o trio elétrico com o grupo Som da Terra passar. Ela era fã e amiga dos músicos da banda, que tocou no badalado restaurante Las Vegas, de propriedade de Margarida junto com o marido, Wilson Meira Oliveira. O estabelecimento, localizado na beira-mar de Olinda, foi mantido de 1973 a 1982, em paralelo à fábrica de casquinhos.

OUTROS QUITUTES
A casa da Rua Imperial já chegou a fornecer mais de 20 tipos de doces, salgados e pratos como fritadas de caranguejo, bacalhau e vatapá. Atualmente, além do casquinho, produz coxinha de galinha, bolinho de bacalhau, casadinho de camarão e pastel de festa. Mas o carro-chefe da empresa familiar é mesmo o casquinho. O empresário Cláudio Nunes conta que, quando era criança, via os caranguejos chegarem vivos em sacos. Sua mãe os lavava, cozinhava e extraía a carne para fazer os casquinhos.

“Trabalhar com comida não é fácil, ainda mais crustáceo. Minha mãe só conseguiu fazer esse nome e manter porque nunca abriu mão da qualidade. Às vezes, ela tinha que ‘brigar’ com o fornecedor porque a mercadoria não estava do jeito que ela queria. Como o caranguejo é sazonal e onde o homem chega acaba com tudo, hoje os mangues estão cada vez mais escassos. Por isso, buscamos a mercadoria tão longe, para ter a qualidade que ela sempre exigiu e que a gente não vai de jeito nenhum deixar cair”, explica Cláudio, que, atualmente, compra carne de caranguejo congelada, vinda do Piauí e do Maranhão.


À frente da equipe, os filhos de Margarida: Cláudio Nunes Amazonas, Miriam Meira Leite e Wilma Meira Tinoco

Dona Margarida conquistava todos com os seus casquinhos. Mesmo quando estava internada no hospital, ela pedia para os filhos trazerem a iguaria para distribuir com os médicos e enfermeiros. Para alcançar o sucesso e mantê-lo por tanto tempo, os filhos contam que a mãe sempre foi extremamente dedicada, firme nas suas convicções e também cativante e solidária com funcionários e clientes. Para garantir o seu padrão de qualidade, a quituteira consolidou uma equipe duradoura. Josias Leão foi um funcionário exemplar que esteve na fábrica por mais de 40 anos. Atualmente, o encarregado (como chamam o chefe da equipe) é Luís Carlos da Silva, Carlinhos, há mais de 30 anos na casa.

Apesar do sucesso, a matriarca empreendedora também teve que superar dificuldades e até trapaças na sua trajetória. Certa vez, um restaurante estava comercializando os casquinhos fornecidos por ela junto com outros de fabricação própria. Quando soube, Margarida pediu que o estabelecimento decidisse se ficaria com os dela ou se faria os próprios petiscos, pois não queria que os clientes confundissem os produtos. O restaurante decidiu pela fabricação própria e, depois de 60 dias, desistiu, voltando a encomendar seus casquinhos.

Há ainda relatos de quem use peixe em vez de caranguejo, enganando os consumidores. “Alguns bares usam de má-fé e dizem ser nosso o casquinho, que não é – terminam passando vergonha. Às vezes, o cliente chega aqui e conta que fez um escândalo em tal lugar porque perguntou se o casquinho era de Margarida, o garçom disse que era. Mas, quando o cliente comeu, percebeu que não era, pois, na verdade, o sabor era de peixe”, conta Cláudio.

Os casquinhos da Rua Imperial também resistiram a uma crise provocada por epidemia de cólera na cidade. A filha Miriam relembra que o caso foi superado com a ajuda de uma estratégia ousada do então governador para retomar a confiança dos consumidores: “Tivemos um surto de cólera no início dos anos 1990, e isso abalou muito o comércio dos que trabalhavam com frutos do mar. Nós sofremos com isso. Financeiramente, foi um período péssimo. Então, para reverter a situação, o governador Joaquim Francisco decidiu tomar banho de mar e levar uma comitiva ao restaurante Maxime para comer peixada, e divulgou isso. O dono do restaurante, que era amigo da nossa família, procurou mamãe antes, para saber se ela aceitaria e se responsabilizaria pelos casquinhos. Ela aceitou e disse que ninguém ficaria doente. Os casquinhos foram servidos na entrada do almoço e saíram nas fotos divulgadas nos jornais”.

Com essa história de vida e paixão pelo fazer com as mãos, Dona Margarida, sua família e equipe de trabalho nos mostram que, mesmo em tempos de fast-food e comidas processadas em máquinas, o artesanal vale a pena e mantém seu espaço. O casquinho de caranguejo vem da cozinha do Bairro de São José com o sabor da resistência. 

FLORA NOBERTO, jornalista.

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