CONTINENTEVocê teve uma forte educação política. Seu pai foi cassado e preso pela ditadura militar por ter pensamentos de esquerda. Isso se reflete no seu movimento artístico. No mês passado, você esteve em Brasília para participar de um encontro de artistas e intelectuais a favor da democracia, no Palácio do Planalto e, pouco antes deste nosso encontro, já confirmou presença em outra manifestação na UFRJ. Qual o seu prognóstico do momento político que estamos passando? BETH CARVALHO A gente não esperava que fosse tão violento. Eu conheci Lula, acompanho-o desde o Sindicato dos Metalúrgicos até a sua chegada em Brasília. Espero que o ministro da Casa Civil seja ele, e que em 2018 seja eleito. Estamos na luta pra isso. O governo atual foi eleito pelo povo, não se tem nada contra ela (Dilma), não se prova nada contra ela. O que eles estão querendo?
CONTINENTEVocê acha que os artistas brasileiros deveriam se engajar e se posicionar mais? O que falta para isso acontecer? BETH CARVALHO Quanto mais melhor. Antes de tudo, sou uma cidadã, e me preocupo como tal. Não posso obrigar ninguém a fazer o que acho certo. Sou de esquerda, nunca escondi. Meu trabalho é popular, feito com gente pobre, com gente dos morros. Eu acho importante participar desses movimentos porque penso que eles vão me ouvir. O povo não é burro, mas é importante que alguém comunique da forma certa. É importante existirem outras alternativas de mídia como TVs e rádios universitárias. Nós fazemos a nossa parte. Disseram que a nossa ida a Brasília e o Chico (Buarque) aqui no Rio (o cantor discursou em ato contra o impeachment de Dilma Rousseff no Largo da Carioca, Centro) surtiram efeito.
CONTINENTENa década de 1970, você já representava minorias, quando, por exemplo, fez parte do ABC do Samba, em que, junto a mulheres, como Clara Nunes e Alcione, foi considerada pela crítica como grande representante do samba no país. Como foi fazer parte disso? BETH CARVALHO Foi um momento muito bom, de crescimento do samba. Nós vendíamos muito disco, batíamos recorde, e as gravadoras faziam o que a gente queria. A gente mandava. Essa época era melhor que hoje, porque tínhamos respaldo das gravadoras, existia loja de disco, e tínhamos controle do quanto vendíamos. Hoje não tem mais isso.
CONTINENTEVocê lançou grandes nomes do samba brasileiro: Zeca Pagodinho, Fundo de Quintal, Arlindo cruz, Jorge Aragão. E é considerada madrinha de tantos outros. Da nova geração do samba, qual nome você gostaria de ter sido madrinha? BETH CARVALHO Continuo sendo madrinha de muita gente, recentemente gravei discos de dois jovens muito talentosos: Leandro Fregonesi e Daniel Santos. Eles têm um grande futuro pela frente.
Beth Carvalho com o compositor Cartola. Foto: Reprodução CONTINENTEVocê teve despertada a vocação pelo violão ao escutar pela primeira vez João Gilberto tocando e cantando Chega de saudade e Desafinado. Como se processou essa mudança para o samba de raiz? BETH CARVALHO Sempre gostei de música, desde criança. Escutava a Rádio Nacional tocando Dalva de Oliveira, Emilinha Borba. E, desde sempre, fui apaixonada por samba. Foi a partir da bossa nova que me interessei por tocar violão, a partir da batida do João Gilberto, que era única. Era como se fosse um simplificado do samba, um tamborim. A bossa nova tinha tudo a ver comigo, porque era samba falando sobre a zona sul do Rio e eu sempre morei na zona sul. Era uma música que me comovia, me emocionava. Mas, depois de um tempo, comecei a achar muito fechado, intimista e até elitista. A cultura negra, popular, do samba aberto de raiz era a minha paixão. Eu queria cantar alto, como no morro, e na zona sul isso não existia. O samba não era tão bem-aceito no meu bairro como é hoje. Eu era a única menina que sabia sambar na minha escola. Hoje todas as meninas da zona sul sabem sambar. Que bom, né?!
CONTINENTEChegou a conviver com João Gilberto? BETH CARVALHO Não. Mas uma vez fiquei muito feliz quando o ouvi dizer que eu era a maior cantora do Brasil. Era um exagero, mas fiquei feliz.
CONTINENTEVocê se considera responsável pelo surgimento do pagode carioca por conta do seu disco De pé no chão, de 1978? BETH CARVALHO Eu sou responsável por trazer novos compositores e novos músicos. Cheguei ao Cacique de Ramos (bloco de Carnaval do qual se tornou madrinha) e encontrei os meninos do Fundo de Quintal. Vi aquela maravilha, aquele talento, eles misturavam banjo, tantã, repique de mão, coisa que ninguém fazia. Por um ano, eu ia toda quarta-feira pra lá e eles tocavam todas as minhas músicas. Os compositores ficaram sem lugar. Quando souberam que a Beth estava lá, todos foram. Eu tinha um repertório vastíssimo, e saía distribuindo músicas. Quando gravei o Vou festejar (primeira faixa do disco), todas as gravadoras quiseram copiar. No ano seguinte, lancei o Beth Carvalho no pagode.
CONTINENTEQual o seu conceito de pagode? BETH CARVALHO O pagode é a forma íntima de se chamar o samba e também a reunião dos amigos para tocar.
CONTINENTEE o estilo musical que a maioria conhece por pagode hoje, o que você acha dele? BETH CARVALHO Esse é um outro tipo de pagode. Eles se utilizam de alguns elementos desse pagode que eu trouxe, mas este não tem a nossa filosofia. É mais vazio de letras e sentimentos. Não aprofunda, é mais para brincar.
CONTINENTEComo foi a experiência de participar pela primeira vez do Festival de Montreux, na Suíça, e como é ser considerada um fenômeno da MPB no Japão, por exemplo? BETH CARVALHO Eu não esperava o sucesso que foi em Montreux. Pensei: um festival de jazz, o que eu vou fazer lá? Na Suíça, todo mundo dorme cedo, o show era às 2h da madrugada. Mas estava lotado. Quando acabou o show, tive que voltar ao palco três vezes. Fiz shows por lá mais duas vezes (1989 e 2005), na última ida, gravei um DVD. Eles adoram a nossa música. No Japão, é ainda mais louco, porque nunca fui lá e é um dos países onde mais vendo discos. Um disco meu chegou a vender 25 mil cópias. É impressionante. Mas sabia que os japoneses tocam e cantam bem o samba? Eles aprenderam a cantar até nossos “breques”, mas não sabem o que estão dizendo (gargalhada).
CONTINENTEReza a lenda que a Seleção Brasileira só vai bem quando há um jogador do Botafogo no time. Você compartilha dessa tese? BETH CARVALHO Eu compartilho totalmente (riso). Sou botafoguense e fiz até uma música para o meu time. Mas agora não estou acompanhando tanto. Mas, posso falar? Adoro o Neymar. Acho ele um gênio! Eu o escalaria para a minha seleção ideal.
CONTINENTEVocê fez o Brasil inteiro cantar junto As rosas não falam, de Cartola. É a intérprete que mais gravou Nelson Cavaquinho. Qual desses dois gênios da música brasileira a encanta mais? BETH CARVALHO Eu amo os dois. Vou te confessar que tenho uma pequena preferência por Nelson, mas eu amo o Cartola. Não sei explicar, mas o Nelson era mais músico… São coisas diferentes, mas ambas geniais.
CONTINENTEEm 1983, no disco Suor no rosto, você gravou um frevo do compositor pernambucano Luiz Bandeira, chamado Sedução. Como sambista, fale sobre essa experiência, e a sua ligação com a música pernambucana. BETH CARVALHO Antes desse frevo, no meu primeiro disco de samba, eu gravei Evocação Nº 1, do Nelson Ferreira. Gravei porque escutava muito no Carnaval, quando era pequena. Meu pai é do Piauí, tenho sangue e alma nordestina. Me sinto muito à vontade com tudo o que diz respeito ao Nordeste. A música pernambucana, em especial, é muito rica: maracatu, ciranda, frevo, forró. Esse frevo que você citou, do Luiz Bandeira, ele me apresentou há muito anos na RCA, e eu resolvi gravar. Tem um outro dele que quero gravar. (Ela se esforça pra lembrar e depois de um tempo canta a letra toda de É de fazer chorar). Tem uma versão do maestro (ela se esforça novamente para lembrar), aquele menino, o Maestro Spok, que é maravilhosa. Eu amo a Spok Frevo Orquestra, acho eles demais. Quem sabe eu não gravo com ele esse frevo
CONTINENTEO que foi para você cantar Andança, música de Danilo Caymmi, Edmundo Souto e Paulinho Tapajós, no Festival Internacional da Canção, o FIC, em 1968. Essa apresentação representou um divisor de águas? BETH CARVALHO Sem dúvida. Eu fiquei conhecida no Brasil inteiro por conta dessa música. É uma toada. Ganhei o terceiro lugar no festival desse ano, mas foi como se tivesse sido o primeiro, tamanha a repercussão. Andança foi o título do meu primeiro LP, que lancei no ano seguinte.
CONTINENTE Andança também é o nome do musical que você ganhou em sua homenagem, ano passado. BETH CARVALHO Sim, foi uma honra ser representada no teatro e ainda viva. Geralmente, quando fazem uma montagem sobre a vida e carreira de alguém, é em homenagem a quem já morreu. Eu ainda tenho tanto a viver e já ganhei uma peça de teatro! É linda! Todos são supertalentosos!
CONTINENTEComo mangueirense da mais alta estirpe, como foi ver a escola do seu coração voltar ao pódio este ano? BETH CARVALHO Fiquei muito feliz e foi muito justo. A Mangueira estava linda. Sou mangueirense desde pequena. Aos sete anos, eu mesma decidi que seria da Estação Primeira de Mangueira. A minha mãe comprava um caixote para eu subir e conseguir assistir aos ensaios. Amo Carnaval. Eu fui o primeiro enredo vivo e a primeira campeã do Sambódromo, em 1984, na ocasião em que o Brizola o inaugurou. Depois disso, fui enredo de várias escolas. A maior emoção do artista é ser enredo da escola de samba.
CONTINENTEDepois de se tornar madrinha de tantos talentos, quem você considera o seu padrinho musical? BETH CARVALHO Foi um camera man, da antiga TV Rio, Raul Alvarenga Porto. Ele me levou para o programa de Flavio Cavalcante, chamado Um instante, maestro. Era o programa de maior audiência e de fato era muito bom. Usei uma roupa emprestada da mãe dele, porque na hora eu não tinha uma boa para me apresentar, e cantei duas músicas no violão. A RCA me assistiu e me convidou para gravar. Ali começava a minha carreira.
DUDA MARTINS, jornalista, diretora e atriz da Dispersos Cia. de Teatro.