Villa Ritinha: Uma joia insuspetia
Casa de porta e janela integrante de casario histórico da Boa Vista, no Recife, é adquirida por alemão que empreende restauro revelador de valiosos elementos decorativos e arquitetônicos
TEXTO DIANA MOURA
FOTOS HÉLIA SCHEPPA
01 de Abril de 2016
Na década de 1910, a casa passou por reforma que lhe conferiu detalhes art nouveau e ecléticos
Foto Hélia Scheppa
Escondidos pelo empobrecimento do centro da cidade, tesouros do Recife às vezes se revelam de forma admirável, lançando luz em áreas desprezadas da capital. É assim, de maneira surpreendente, que o Bairro da Boa Vista vai ganhar um café-bar, um bistrô, galeria de arte, capela, sala para pequenos concertos e um palco para orquestras e encenações teatrais. Tudo isso no mesmo endereço, na Villa Ritinha, construída em 1840 no número 35 da Rua da Soledade, hoje uma via salpicada de casarões arruinados.
Entre os seus muitos atributos, o espaço tem um pé-direito alto, pinturas decorativas na maior parte das paredes, estuques ornamentais, detalhes art nouveau, azulejos de várias épocas, e uma infinidade de delicadezas para os olhos.
A Villa Ritinha, que há menos de um ano era mais um dos imóveis fechados da Boa Vista, vestiu-se de cores para a festa de sua renovação. A palidez que marcava seu desamparo foi aos poucos perdendo lugar e, de suas sombras, emergem uma fachada exuberante, ambientes bem-decorados e um pedaço pouco conhecido da história da cidade. Essa transformação é conduzida pelo empresário alemão Klaus Meyer, formado em Arte e Design pela Universidade de Belas Artes de Munique, em seu país de origem, e pelo pernambucano Walberto Camará, um professor de inglês apaixonado por arte e pelo patrimônio pernambucano. Meyer já foi dono de uma galeria de arte em Xangai, a Grand Theater Gallery, um espaço bem-situado na metrópole chinesa, projeto que deixou para trás, conta, porque não se adaptou ao Oriente.
Os detalhes da decoração estão sendo cuidadosamente ressaltados
Além de Munique, Xangai e Recife, o empresário já residiu em Lisboa, na Costa do Marfim e na África do Sul. Cosmopolita por natureza, ele gosta de dizer que “mora no mundo”. No Recife, onde está há dois anos, deixou o campo das artes por um tempo e passou a se dedicar a outros negócios, ligados à sustentabilidade. Estava à procura de uma casa para se instalar, quando se deparou com a Villa Ritinha. Foi amor à primeira vista. “Vi o anúncio com uma foto na internet; meia hora depois, estava visitando a casa; mais uma hora, tomei a decisão. Três meses depois, os advogados estavam efetuando a compra”, narra, em tom entusiasmado.
Tomar posse da nova residência, entretanto, foi um pouco mais difícil. Do local, foram retirados seis caminhões de lixo, com toneladas de entulhos de toda sorte. Só depois se revelou a beleza do espaço, e a proposta inicial de residência tornou-se um projeto de negócio, com a parceria de Camará. “Essa vai ser a casa mais bonita de toda a Boa Vista”, aposta Meyer. Hoje, mesmo com as obras inacabadas, o endereço já se transformou num ponto de atração. “À noite, com a fachada iluminada, os carros param na frente para fazer fotos. Durante todo o dia, recebemos visitas de pessoas ligadas à arte, história e arquitetura. Professores universitários trazem alunos. A Villa Ritinha já é um sucesso.”
PATRIMÔNIO DILAPIDADO
Inquietante é tentar entender o fato de um bairro antes tão exuberante, em que se encontra importante acervo arquitetônico, chegar ao estado de dilapidação em que se encontra. “Não apenas a Villa Ritinha, mas vários outros imóveis representativos foram abandonados, não somente no centro, como nos subúrbios das cidades”, comenta o arquiteto da Fundação Joaquim Nabuco Rodrigo Cantarelli, mestre em Museologia e Patrimônio, e doutorando em História.
Para ele, vários fatores contribuem para o esvaziamento dos centros, que vêm perdendo prestígio ao longo das décadas em grandes cidades brasileiras. “O abandono do centro da cidade é um processo mais complexo e não se explica tão facilmente, mas está ligado à mudança da classe média para as zonas sul e norte da capital, e à falta de um planejamento urbano que promova melhores deslocamentos entre as várias partes da cidade, além da falta de incentivo à ocupação dessas áreas”, aponta o arquiteto.
A maioria dos afrescos estava escondida sob camadas de tinta
“Há um valor cultural muito grande no Recife que está sendo desrespeitado. Até os prédios que pertencem ao Estado estão degradados. Um dia, as pessoas vão olhar em volta e não vai ter mais nada. Como em alguns países em que já estive, onde as pessoas comentam sobre seus prédios: ‘Isto era tão bonito na época’. Era. Porque já não existe”, lamenta Meyer. Apesar disso, ele afirma que alguns vizinhos da Villa começaram a restaurar suas casas por conta dos resultados que têm encontrado. “Esse é um efeito muito positivo”, destaca.
Se falta vontade política aos governantes, sobra em pessoas como Meyer e Camará. Enquanto órgãos públicos e parte dos proprietários negligenciam o patrimônio arquitetônico pernambucano, os dois empresários trabalham diuturnamente para recuperar o sobrado que, por si só, é um retrato dos costumes das classes mais abastadas do Recife durante parte dos séculos XIX e XX. “É um direito do povo brasileiro ter acesso à própria história, à própria cultura. A história só se constrói uma vez e, quando desaparece, as próximas gerações não mais poderão acessá-la. É uma crueldade roubar a identidade das próximas gerações”, opina Meyer.
INSERÇÕES ART NOUVEAU
Para se ter uma ideia do que a Villa Ritinha representa para o patrimônio do Recife, é preciso conhecer um pouco sobre o sobrado. Erguida em 1840, a Villa Ritinha não ganhou esse nome à toa. Villa era a designação dada a casas luxuosas e confortáveis, indicando um tipo peculiar de moradia. Para fazer jus ao título, a propriedade possuía um conjunto de elementos decorativos e arquitetônicos de encher os olhos – a começar pelas portas, todas de madeira da melhor qualidade, pesando cerca de 200 kg cada uma. A principal delas, na entrada, veio de navio da Holanda, assim como a escada de madeira que dá acesso ao primeiro andar. Pinturas murais desenham flores e retratos em várias das paredes da casa, algo que no século 19 só era possível para famílias verdadeiramente ricas. Na maioria das vezes, os artistas que executavam o serviço eram trazidos da Europa, o que deve ter ocorrido também neste caso.
A casa ainda possui ambientes que denotam o estilo de vida de seus moradores. Uma capela, onde eram realizadas celebrações religiosas – que será restaurada e reativada por Klaus e Camará –, um jardim para o cultivo de flores exóticas usadas na decoração; um suntuoso jardim de inverno no primeiro andar, de onde se veem os telhados do bairro e a diversidade do casario histórico. Ainda consta que o local foi um dos primeiros endereços residenciais a contar com energia elétrica e com um elevador – o equipamento, que era do mesmo período do que foi instalado no Palácio do Campo das Princesas, foi roubado. Como se fosse pouco, na década de 1910, a Villa Ritinha passou por uma reforma, ganhou estuques com motivos florais, bandeiras de ferro e vários azulejos art nouveau, que se somaram à azulejaria portuguesa já existente. “A Villa Ritinha, a meu ver, apresenta elementos do ecletismo e do stile floreale, que é como a art nouveau se manifestou na Itália”, explica Cantarelli.
A renovação da casa é conduzida pelo empresário alemão Klaus
Meyer, que comprou o imóvel há menos de um ano
Para apagar esse brilho, uma das últimas moradoras do sobrado, uma inquilina, passou camadas e mais camadas de tinta sobre as pinturas que embelezavam as paredes. “Uma senhora bem idosa que vivia na vizinhança conta que a pessoa que alugava o imóvel mandou cobrir os desenhos de propósito, na segunda metade dos anos 1990. Ela tinha medo de que ele fosse tombado pelo patrimônio público e, depois de protegido, ela tivesse que fechar as portas da pensão que funcionava no local”, lamenta Meyer.
O que a inquilina não sabia é que cometera uma irregularidade, pois a Villa Ritinha estava sob proteção da legislação. “A casa já se encontrava protegida pela prefeitura do Recife desde 1980, quando foi criada a Zona de Preservação do Bairro da Boa Vista. Na letra da lei, ela, por essa atitude, deveria ter sido denunciada por danos ao patrimônio cultural da cidade e ser obrigada a recuperar o edifício. Mas, infelizmente, isso é uma coisa que pouco acontece, uma vez que a própria prefeitura não fiscaliza”, situa Cantarelli. Essa sequência de fatos mostra como é frouxo o processo de preservação do patrimônio no Brasil, seja ele histórico, arquitetônico ou cultural.
Diante do importante trabalho de recuperação que está sendo feito pela dupla de empreendedores, nós nos perguntamos por que foi preciso esperar a intervenção de um estrangeiro – aliado aos esforços de seu sócio pernambucano – para que a Villa Ritinha renascesse. “Assim que conheci a casa, aderi imediatamente ao projeto de Klaus, por causa de sua grande sensibilidade para com o patrimônio pernambucano e do seu desejo de compartilhar esse legado com o povo daqui. Não gostaria de que isso tudo se perdesse”, destaca Camará, que divide o trabalho e os altos custos da reforma. “Restaurar leva muito mais tempo e carece de muito mais dinheiro do que preservar”, resume Meyer. Talvez aí também haja uma das respostas possíveis a essa questão: muitos, como eles, gostariam de recuperar um patrimônio valioso em decadência, mas não contam com aporte financeiro para isto. Quantos dos leitores não teriam este sentimento? A despeito dessa sensibilidade latente, o exemplo da Villa Ritinha tem muito a dizer sobre a indiferença com que parte da sociedade e do poder público trata a história e o patrimônio arquitetônico brasileiro.
DIANA MOURA, jornalista e mestre em Comunicação pela UFPE.