Pesquisa: memórias de um teatro esquecido
Jornalista e ator Leidson Ferraz relata surgimento da genuína dramaturgia pernambucana com o grupo Gente Nossa e o Teatro de Amadores
TEXTO Ulysses Gadêlha
01 de Abril de 2016
Em 1949, registro da peça 'Nossa Cidade', do TAP
Foto Acervo Projetos Memórias da Cena Pernambucana/Divulgação
Em busca da genealogia do teatro local, o pesquisador Leidson Ferraz retrocedeu à primeira metade do século XX para desvendar o início da genuína dramaturgia pernambucana. Ele aponta que os primeiros decênios foram marcados por resquícios da colonização portuguesa, as comédias amadoras ou peças estrangeiras, com baixo interesse da sociedade. Nesse contexto, a fundação do grupo Gente Nossa, em 1931, pelas mãos do dramaturgo Samuel Campelo, é apontada por Ferraz como o marco da cena teatral local. O jornalista recua um ano antes no retrospecto, para iniciar seu relato Um teatro quase esquecido – Painel das décadas de 1930 e 1940 no Recife, lançado em formato digital (arquivos em PDF) no dia 29 de março, no Teatro de Santa Isabel.
Leidson Ferraz é cuidadoso em manter os detalhes da linguagem da época, como a grafia das palavras, dos nomes próprios e a sintaxe das citações, das críticas de jornais daquele período, entre os quais Diario de Pernambuco e Jornal do Commercio, que ele conferiu na Biblioteca Nacional, no Arquivo Público de Pernambuco – com boa parte do acervo concernente ao tema deteriorado – ou nos registros microfilmados da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj). A pesquisa reúne cerca de 800 imagens raras das representações, dos atores e dramaturgos, dos programas das peças – que tematizam o design da pesquisa –, além de fotos dos teatros que foram levantadas a partir do acervo do projeto Memórias da Cena Pernambucana e da iniciativa Teatro Tem Programa!, levantamento de mais de 600 programas de espetáculos.
A pesquisa foi estruturada em capítulos, ano a ano, partindo de 1930, que abre o panorama com uma rápida retrospectiva da década de 1920. À época, o Recife contava com algumas casas de espetáculo, mas principalmente o Teatro de Santa Isabel (fundado em 1850) e o Teatro do Parque (1915). As peças encenadas por amadores costumavam ser compostas de um ato com números variados – cantos, danças, recitativos e/ou humorismo. O profissionalismo era escasso, aparecendo somente em festivais artísticos. Entre os estrangeiros, aportaram companhias italianas, portuguesas e espanholas, trazendo a figura feminina junto ao ator cômico. Vários dramaturgos, entre eles Samuel Campelo, também apresentavam suas produções locais, sem muito sucesso.
Em 4 de janeiro de 1931, na cidade de Olinda, ocorre a primeira montagem pernambucana, intitulada A jornada de Natal, tendo como palco o Salão Pio 10. Com a peça A honra da tia, de Samuel Campelo, estrelada por Elpídio Câmara, surge o grupo Gente Nossa, que vinha sendo gestado desde 1921, em diversas tentativas de formação. Em longa crítica, o Diario de Pernambuco de 4 de agosto de 1931 tece elogios ao desempenho do espetáculo e do texto, reconhecendo a qualidade dos artistas locais envolvidos na encenação. Ao longo de 1933, por exemplo, o Gente Nossa se apresentaria 208 vezes, sendo celebrado como um dos períodos de sua maior efervescência. Um pouco mais à frente no relato de Leidson, o Gente Nossa decairia em 1938 por falta de teatro para se apresentar e pela difícil concorrência com os espetáculos cariocas que chegavam ao Recife. “Santo de casa não faz milagre”, reclamava o grupo.
A princesa Rosalinda, montagem do grupo Gente Nossa, de 1939.
Foto: Acervo Projeto Memórias da Cena Pernambucana/Divulgação
Foi em 1939, com a morte de Campelo, que se inaugurou uma nova página no teatro pernambucano, quando o teatrólogo Valdemar de Oliveira foi nomeado para dirigir o Teatro de Santa Isabel. Naquele ano, apesar do estopim da Segunda Guerra Mundial e da criação do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) no governo de Getúlio Vargas, houve também a implementação do Serviço Nacional de Teatro (SNT) e o amparo financeiro dado pelos poderes públicos ao grupo Gente Nossa. “No total, a capital pernambucana pôde apreciar 373 representações teatrais, um número recorde”, indica o pesquisador.
Mas, até 1940, segundo Leidson, vivia-se uma dramaturgia de convenção, sem um encenador a reger os elementos cênicos em unidade. Para subverter essa lógica, ainda que avesso ao profissionalismo, foi fundado, em 4 de abril de 1941, o Teatro de Amadores de Pernambuco (TAP) sob o comando de Valdemar de Oliveira, defensor entusiasta da dramaturgia local. Encenadores europeus como Ziembinski e Bollini viriam ao Recife para dirigir o TAP. Posteriormente, em 1946, desponta Hermilo Borba Filho com o Teatro do Estudante, cuja intenção era levar o teatro ao povo, apresentando montagens de textos clássicos e de autores nordestinos.
Quase no fim da década, em 1948, o Teatro de Amadores chegaria a um de seus melhores momentos. Valdemar de Oliveira dirigiu o grupo no espetáculo A casa de Bernarda Alba, de Federico García Lorca, considerada a melhor montagem do grupo até hoje. O encenador Adacto Filho viria do Rio de Janeiro para dirigir o TAP com obras de Guimerà, Molière e Pirandello, além do Teatro Universitário de Pernambuco, com As férias de Apolo, de Jean Berthet. Nesse mesmo ano, com o texto Uma mulher vestida de sol, o então estudante de Direito e poeta Ariano Vilar Suassuna venceria o Concurso de Peças organizado por Hermilo Borba Filho, no TEP. A partir de então, as pesquisas teatrais dão uma guinada de interesse às manifestações populares.
Embora não seja assunto do trabalho aqui comentado, nas décadas seguintes, Pernambuco veria surgir o desbunde do Vivencial, do Teatro Experimental de Olinda, das encenações de Carlos Bartolomeu e de Guilherme Coelho. Veria também a Práxis Dramática, com a Aquário Produções, resgatando o teatro de revista, conforme esclarece Leidson, até chegar aos dias atuais. A atual pesquisa pode ser acessada nos sites do Teatro de Santa Isabel e da Fundarpe. Ele também é organizador do projeto Memórias da Cena Pernambucana (tetralogia lançada em livros entre 2004 e 2009, indexando 40 grupos cênicos no estado desde 1940) e do livro Panorama do teatro para crianças de Pernambuco (2015).
ULYSSES GADÊLHA, estudante de Jornalismo e estagiário da Continente.