De todo modo, apesar da restrição que acomete as artes visuais no Brasil, os livros de artista ainda parecem guardar a promessa de uma democratização das artes. Diversas iniciativas apontam para esse sentido, como é o caso da própria Coleção de Livros de Artista da Escola de Belas Artes da UFMG. Com mais de 400 livros catalogados, a coleção busca colocar o público em contato com as criações. “Como eu sempre fui muito interessado por livros de artista, percebi, nas minhas leituras, que a maior parte dos textos sobre o assunto tratava das mesmas obras, porque o acesso a elas era (e ainda é) bastante difícil e os textos sobre esses livros de artista baseavam-se em textos anteriores que traziam as mesmas referências, sem se debruçarem sobre os livros em si. No entanto, eu estava motivado pelos trabalhos de jovens artistas e achava importante que houvesse um contato direto com as obras”, detalha Amir Brito, que criou a coleção em 2009, em parceria com a professora da UFMG Maria do Carmo Freitas, e hoje realiza atividades de pesquisa no acervo com alunos da Escola de Belas Artes da mesma universidade.
COLEÇÃO ONLINE
Para formar a coleção, Amir concorre à licitação de livros das bibliotecas da UFMG, mas, devido ao fato de que a maior parte das editoras de livros de artista é de pequeno porte, elas não passam no processo licitatório. Quando isso acontece, ele entra em contato diretamente com os artistas para pedir doações. Foi assim que livros de diversos pernambucanos passaram a formar o acervo, como é o caso de Voo cego, de Bruno Vilela, Solta ou prende, de Silvan Kälin, suíço radicado no Recife, e das variadas criações de Paulo Bruscky. Graças aos esforços de um aficionado no assunto, a coleção é hoje o maior acervo de livros de artista do país e pode ser acessada integralmente através do seu blog.
O intento de Amir Brito de democratizar o acesso a esses trabalhos no Brasil também se fez presente na exposição Tendências do livro de artista no Brasil: 30 anos depois, que esteve em cartaz no Centro Cultural São Paulo (CCSP) até o dia 20 de março. A mostra, com curadoria de Amir e Paulo Silveira, reuniu os 200 livros de artista apresentados em uma exposição homônima há 30 anos, sob curadoria de Cacilda Teixeira da Costa e Annateresa Fabris, além de um conjunto de 120 obras publicadas nos últimos anos e adquiridas para o acervo do CCSP com apoio da Funarte (Prêmio Marcantonio Vilaça).
Silvan Kälin. Foto: Divulgação
Naquele ano, escreveram as curadoras: “Se, internacionalmente, os livros de artista constituem uma das áreas mais desconhecidas e ‘fechadas’ das artes plásticas, no Brasil são quase inacessíveis. Embora numerosos, não são vistos regularmente; sua publicação é rara e a apreciação dificilmente ultrapassa um reduzido círculo de iniciados, artistas, poetas e bibliófilos. Assim, nosso objetivo, ao realizar esta exposição, é, sobretudo, introduzir o público nessas obras pouco familiares, proporcionando-lhe a oportunidade de vê-las fora dos ateliês e coleções particulares”. O problema do acesso, então, já se manifestava fortemente naquela época e, para nossa surpresa, a exposição recente veio com a mesma missão daquela realizada há três décadas: tirar os livros de artista de um círculo pequeno, dando um sutil indicativo de mudança nessa questão.
Outra iniciativa que aponta para a democratização do acesso aos livros de artista, atualmente, é a Feira de Arte Impressa Tijuana, uma das maiores da América Latina, dedicada às produções artísticas que passam por processos gráficos. Uma iniciativa da Galeria Vermelho (São Paulo), a feira foi criada em 2007, por Eduardo Brandão, com a intenção de estabelecer um espaço de exibição, divulgação e comercialização para criações artísticas que não se encaixavam no formato expositivo das galerias, caso de fanzines, livros de artista e catálogos. “O nome Tijuana, emprestado da cidade do México que faz fronteira com os Estados Unidos, vem principalmente dessa ideia fronteiriça. O livro de artista, que pode ser um livro, mas é principalmente uma obra do artista, flerta justamente com a ideia de atravessar limites”, detalha Maite Claveau, diretora da feira. Neste ano, já estão programadas quatro Feiras Tijuana. A próxima, que acontece em Lima (Peru) este mês, será sua nona edição. Devido aos contínuos sucessos do evento, a Galeria Vermelho decidiu, em 2010, lançar um selo próprio para publicar obras de arte impressas: o Edições Tijuana. “O primeiro título publicado com o nosso selo foi Vermes, da artista Dora Longo Bahia. Hoje, já temos 40 títulos publicados”, detalha Maite.
Para ela, é visível o crescimento de publicações do tipo e de público consumidor. “Existe uma crença de que o livro de artista é caro e destinado a colecionadores de grande poder aquisitivo. No entanto, não é tão restrito assim. Existem colecionadores de zines, colecionadores de livros, colecionadores de arte que eventualmente compram livros de artista”, explica ela. Segundo seu depoimento, então, percebe-se que, apesar do preço relativamente acessível e da possibilidade de essas criações serem adquiridas por consumidores de um poder aquisitivo “médio”, o público consumidor ainda se restringe a um grupo de aficionados.
Fernando Peres. Imagem: Divulgação
FRONTEIRAS
Mesmo que haja uma série de questões problemáticas relativas ao acesso a tais obras de arte, os artistas continuam a se expressar através de processos gráficos que resultam em livros, fanzines e catálogos – muitas vezes de modo fragmentário, disperso e despreocupado com as fronteiras de cada um dos tipos de produtos ou mesmo com sua publicação. De acordo com aqueles que pesquisam o assunto, existem definições específicas para cada um dos três tipos de criações, mas não quer dizer que todas as criações sigam regras conceituais. “O livro de artista é o livro como obra de arte. O que está nele é pensado para ser exibido no próprio, porque dificilmente as imagens são exibidas de outra maneira a não ser no livro. Ele não é para quem não pode comprar a fotografia, como é o caso do catálogo. Já o catálogo é sobre um artista, obra ou exposição que extrapola o próprio catálogo. O fanzine, por último, tem duas características: quando é feito por artista, ele é o editor. Ele edita os trabalhos de outras pessoas. O outro aspecto é que o zine é periódico, existe uma continuidade. Por falta de informação, chamam de ‘zine’ livros e livretos de artistas que não têm característica de continuidade”, detalha Amir Brito.
Com relação ao formato, segundo ele, não é a qualidade do papel ou da impressão que definiria um fanzine ou um livro de artista. Ao contrário do que a maior parte das pessoas pensa, o livro de artista não é necessariamente uma grande edição, com folhas de alta qualidade e impressão sofisticada, tampouco o fanzine precisa ser malfeito. Existem livros de artista feitos com três páginas em xerox, assim como há fanzines com várias páginas, encadernação e impressão de alta qualidade. Para Amir, é fanzine, se for periódico e se os créditos forem dados a um editor, e é livro de artista se não for periódico e os créditos forem dados a um artista.
Regras à parte, o que acontece é que muitas editoras chamam catálogos de livros de artista, se a edição daquele for um pouco mais elaborada, e diversos artistas chamam fanzines de livros de artista. Além disso, há produtos híbridos, que realmente podem ser chamados de catálogos e livros de artista simultaneamente. É o caso de The xerox book, um dos clássicos do tipo, idealizado pelo curador norte-americano Seth Siegelaub em 1968. Na obra, que também pode ser considerada uma exposição, ele convidou sete artistas – Carl Andre, Robert Barry, Douglas Hueber, Joseph Kosuth, Sol Lewitt, Robert Morris e Lawrence Weiner – para criar o que quisessem em 25 páginas, a partir de máquinas copiadoras. O resultado foi um livro de artista que também pode ser considerado um objeto de arte, uma exposição e um catálogo. Na exposição em si, não havia nada nas paredes, apenas os livros.
As produções artísticas, muito menos ortodoxas do que suas definições, chegam a surpreender pelo fato de transitarem entre gêneros aparentemente inconciliáveis. Os “cadernos de artista” do pernambucano Bruno Vilela, por exemplo, são, simultaneamente, diários pessoais, estudos, relatos de viagem, álbum de memórias e livros de artista. Nem todos eles têm a intenção de ser mostrados. “Como sou muito impulsivo, percebi que precisava de um respiro maior entre um trabalho e outro, e que precisava de algum meio para realizar meus brainstorms. Assim surgiram os cadernos, que reúnem uma série de imagens que me tocam durante o meu dia a dia. É um processo meio obsessivo, admito”, conta Bruno. O caderno mais recente foi iniciado durante uma viagem dele a Londres e reúne desenhos, colagens e plotagens de itens encontrados pelo artista na cidade. Sem perceber, Bruno acumulou imagens relacionadas à pichação e, por ter sido tocado pela expressão estética, resolveu torná-la o cerne do seu novo trabalho, ainda em processo. O único caderno que ele realmente decidiu publicar como livro de artista se assemelha a um álbum de fotografias sobre a história de sua família, mas ele afirma que ainda não sabe quando vai lançá-lo. Além dos cadernos – que ele parece considerar mais como diário que livro de artista –, Bruno Vilela chegou a publicar dois livros como obras de arte em si: Voo cego (2009) e Big bang (2011).
PROCESSOS GRÁFICOS
Assim como Bruno, o artista Silvan Kälin acumula uma série de experiências com processos gráficos, que vão de livros de artistas a fanzines, passando por catálogos e objetos híbridos. Desde que lançou a Editora Aplicação, em 2008, em parceria com a designer gráfica Priscila Gonzaga, Silvan se sensibilizou para a possibilidade de criar a partir de processos gráficos. Daí, surgiram livros como Solta ou prende (2014), que associa desenhos de frutas tropicais com a sabedoria popular de quais alimentos “soltam” ou “prendem” o intestino; e Zoológico, no qual Silvan edita textos e fotografias publicadas pelo artista Fernando Peres no Facebook.
“É curioso, porque o livro Zoológico fez parte da lista de melhores livros de fotografia de 2015 pela revista Zum, do Instituto Moreira Salles, e o que fizemos, na verdade, foi uma espécie de brincadeira”, conta Silvan. Embora a publicação tenha sido considerada um “livro de fotografia” pela Zum, as imagens e os textos foram pensados para serem expostos apenas no impresso e as páginas contam com intervenções artísticas de Silvan, ou seja, não é apenas um livro de fotografia, mas de artista, se formos seguir as definições apontadas pelo professor e pesquisador Amir Brito.
Silvan também foi o autor das ilustrações do livro 2 em 1, projeto idealizado pelo artista pernambucano Jonathas de Andrade. A obra, publicada em 2015 pela editora da galeria de arte contemporânea Alexander and Bonin, de Nova York, é um exemplo de como os livros de artista podem ser edições sofisticadas. Feita através de serigrafia em madeira aglomerada, a obra custa nada menos que U$ 2,5 mil dólares (atualmente, cerca de R$ 10 mil).
Erik van der Weidje. Foto: Divulgação
Apesar das variadas experiências com processos gráficos, Silvan acredita que, no Brasil, é bastante difícil para um artista viver da venda de livros ou fanzines. Uma exceção é o caso do artista holandês, radicado em Natal (RN), Erik van der Weijde. Através do selo 4478ZINE, Erik publica fanzines e livros de artista com os próprios trabalhos. A curiosidade é que, embora ele realize todo o processo criativo e produtivo no Brasil, as vendas se concentram no exterior. “No Brasil, ainda mais no Nordeste, é impossível viver de publicação. Só que, como fui criado lá fora e fiz Academia de Arte em Amsterdã, todos os meus contatos são de lá. Cerca de 95% do meu trabalho é consumido em diferentes países (em cidades como Nova York, Los Angeles, Paris, Londres), porque visito muitas feiras de livros de arte durante o ano, mas tudo é feito no meu estúdio, aqui em Natal”, conta Erik.
O fator pelo qual viver de publicação dá certo para Erik é que os zines e livros produzidos por ele são feitos com papéis descartados e de baixa qualidade, que já deixaram de existir há décadas na Europa e nos Estados Unidos. A impressão, realizada em gráficas simples de Natal, também é de baixa qualidade. “Lá fora, isso vira exótico”, acrescenta. As vendas em euro e em dólar também são fatores positivos em uma equação de produção e venda que dá certo. Na verdade, uma situação realmente exótica em um país cuja produção de livros de artista parece só encontrar eco entre um público de artistas, especialistas, colecionadores e aficionados.
BÁRBARA BURIL, jornalista e mestranda em Filosofia na UFPE.