Arquivo

Havana: Uma cidade que se reconstrói

Com parte do centro da capital em obras, Cuba vive um processo de mudanças que a aproxima das questões do capitalismo, mas com um peculiar orgulho da Revolução

TEXTO SCHNEIDER CARPEGGIANI E THIAGO SOARES
FOTOS THIAGO SOARES

01 de Abril de 2016

Área em que se insere o Capitólio passa por um processo de gentrificação

Área em que se insere o Capitólio passa por um processo de gentrificação

Foto Thiago Soares

Certa vez perguntaram ao escritor cubano Guillermo Cabrera Infante sobre sua reação diante de um súbito encontro com Fidel Castro, seu confesso e maior inimigo, num golpe do destino típico do realismo mágico. “Eu me aproximaria dele e perguntaria ‘você não acha que já chega?’”, foi a resposta. A imagem pode ser usada como uma espécie de símbolo para aqueles que acreditam na necessidade de uma contrarrevolução, que encerrasse de forma súbita o regime socialista, transformando a ilha num centro capitalista sem passado, mas com fortes luzes de neon. Cuba, no entanto, não é assim tão simples.

O DNA da revolução persiste num orgulho cubano vibrante, que se compreende como um caso sui generis de resistência, ainda que anseie por mais liberdade, informação e acesso a um mundo de consumo para além de gêneros de primeira necessidade. “Cuba seria o melhor lugar do mundo, se tivesse mais dinheiro”, afirma Leandro Ruiz, 25 anos, vocalista da banda punk Stafilococos, conhecida no underground de Havana. Já na página de fãs cubanos da cantora norte-americana Madonna, no Facebook, as postagens sempre acabam comparando-a a algum símbolo local – “Madonna Eterna como Cuba”, “Madonna alegre como Cuba”, são alguns dos dizeres. Cuba pode ser mais pop e rocker hoje, mas ainda é Cuba. Ainda é resistência.


O fenômeno da hiperconexão, comum às cidades contemporâneas, também atinge Havana

A reportagem da Continente esteve em Havana no começo de março, às vésperas do show dos Rolling Stones, de novos horizontes políticos e com grande parte do centro da capital transformada num canteiro de obras. A impressão é de que algo está para acontecer, mas o que mesmo? O país que glorifica seu passado, nos carros Ford modelo 1956, na música do Buena Vista Social Club, na imagem cristalizada do copo de mojito no icônico bar La Bodeguita del Medio (point do escritor Ernest Hemingway), está em crise consigo mesmo. Uma crise impulsionada, sobretudo, por dois motivos: pelo fim do mandato do atual presidente Raúl Castro (e a dúvida sobre quem vai governar a ilha, a partir de então) e a visita do presidente dos Estados Unidos Barack Obama ocorrida mês passado – primeira missão de um chefe de estado norte-americano em 88 anos.

CAPITAL DA DISQUERÍA
A fila do Cine Yara dá voltas na esquina da Calle 23. Acabou de estrear Bailando con Margot, filme dirigido por Arturo Santana, um policial noir que se passa dois anos antes da Revolução Cubana e trata do roubo de um quadro numa mansão em Havana. A última pessoa da fila está ao lado de uma casa com um terraço. A imagem parece familiar para qualquer brasileiro: nas paredes, centenas de CDs e DVDs piratas com os últimos lançamentos do cinema norte-americano e internacional, seriados, álbuns de rock, de divas pop, de bandas coreanas de k-pop. “Aqui, não tem filme cubano, para ver essas películas só indo ao cinema”, explica Yolanda Sanchez, 56 anos, proprietária do estabelecimento junto ao filho, Yadir Sanchez, 24 anos – um enfermeiro que ganha o equivalente a US$ 30 por mês de salário num hospital e complementa sua renda com esta disquería– o nome local dado a estabelecimentos que comercializam ilegalmente produtos culturais estrangeiros. “Não é ilegal, pagamos a ‘seguridad social’ para os funcionários, estamos dentro da lei”, informa Yadir.

O que ele não conta é como adquire todos os mais de 600 títulos expostos nas oito prateleiras – custando cada um o equivalente a US$ 1. Com o acesso limitado à internet – praticamente inexiste acesso à internet doméstica –, a ETECSA (Empresa de Telecomunicaciones de Cuba) libera banda larga apenas para o que considera “áreas estratégicas”: serviços militares, turísticos, de saúde e, naturalmente, de comunicação. À população cabe acessar a internet do trabalho ou através de wi-fi em pontos específicos da cidade, ao custo de 2 CUC (o peso convertido equivalente ao dólar) por uma hora – preço alto para os padrões de Cuba, cujo salário médio equivale a 30 CUC por mês. O fato é que, para baixar tantos filmes, seriados e músicas, seria preciso internet banda larga – que, por meios oficiais, o “disquero” Yadir Sanchez não tem.

Ele comercializa os títulos ou através de um outro “disquero”, que baixa os arquivos e revende para ele, ou por conta própria, adquirindo um pacote de internet “banda larga” (nem tão larga assim, naturalmente) de um funcionário de algum dos setores privilegiados do governo que “comercializa” ilegalmente o acesso.

Em Havana, a aduana – nossa alfândega – do Aeroporto José Martí registra cerca de 60% de apreensões de produtos eletrônicos (cabos, roteadores, bases de compartilhamento de dados), vindos de voos sobretudo do México e do Panamá (que fazem conexões para cidades dos Estados Unidos) e que servem de base material para que as “gambiarras” de internet sejam construídas. Essa realidade em camadas (uma oficial e outra oficiosa) faz parte do cotidiano dos cubanos, que driblam as restrições impostas pelo governo criando alternativas comunicacionais – e existenciais. “Durante mais de 50 anos, vivemos isolados, não temos condições de sair. Ao menos, estamos sabendo das coisas agora”, conta Yolanda Sanchez, que viveu a revolução quando niña. Ela reconhece o legado socialista, mas diz estar cansada de esperar por medidas que abram o país. “Queremos o socialismo com alguma abertura, uma coisa que não existe no mundo. Mas talvez aqui em Cuba possa existir”, atesta.

PAZ E DIVERSÃO
Cuba se mostra como o rascunho daquilo que o Estado insiste em mostrar como “legado cultural” da Revolução e o que uma juventude conectada, sexy e cheia de anseios de conhecer “o mundo” almeja. “Não queremos apenas as imagens de Havana das décadas de 1950/1960, queremos projetar culturalmente Havana para o ano de 2050”, diz o produtor cultural Fabien Pisani, filho do músico cubano Pablo Milanés, um dos responsáveis pela ida do grupo de música eletrônica Major Lazer para um concerto na Tribuna Antiimperialista, no último dia 6 de março, quando mais de 450 mil pessoas se apinharam junto ao Malecón (a mureta de pedra que cerca a parte litorânea de Havana) para ver um dos maiores shows pop já realizados na ilha.

A Tribuna Antiimperialista, em si, é, hoje, uma contradição. O palco construído “de frente” para os Estados Unidos e por trás da embaixada norte-americana (reaberta em 2015, na Calle Calzadas, no Bairro de Vedado), feito para que políticos e revolucionários clamassem palavras de ordem contra os americanos, sediou um espetáculo de música eletrônica liderado pelo DJ norte-americano Diplo (líder do Major Lazer), que, entre outras máximas, empunhou a bandeira de Cuba e disse: “Nós viemos trazer paz e diversão”. À boca miúda, comenta-se que o show do Major Lazer é uma eficiente estratégia do próprio governo (na imagem do Instituto Cubano de La Musica – que autoriza a realização de espetáculos musicais abertos e gratuitos na ilha) de se conectar com a massa de jovens – quantitativamente, o grupo “de risco” que mais quer fugir do país.

CONECTADOS
Sem sombra de dúvidas, conectado é o espaço de artes e entretenimento Fabrica de Arte Cubano, parceria público-privada que conta com oito ambientes para exposições, quatro “naves” para shows, além de bares e áreas abertas. Localizada numa antiga fábrica de azeite, a Fabrica tenta Certa vez perguntaram ao escritor cubano Guillermo Cabrera Infante sobre sua reação diante de um súbito encontro com Fidel Castro, seu confesso e maior inimigo, num golpe do destino típico do realismo mágico. “Eu me aproximaria dele e perguntaria ‘você não acha que já chega?’”, foi a resposta. A imagem pode ser usada como uma espécie de símbolo para aqueles que acreditam na necessidade de uma contrarrevolução, que encerrasse de forma súbita o regime socialista, transformando a ilha num centro capitalista sem passado, mas com fortes luzes de neon. Cuba, no entanto, não é assim tão simples.

O DNA da revolução persiste num orgulho cubano vibrante, que se compreende como um caso sui generis de resistência, ainda que anseie por mais liberdade, informação e acesso a um mundo de consumo para além de gêneros de primeira necessidade. “Cuba seria o melhor lugar do mundo, se tivesse mais dinheiro”, afirma Leandro Ruiz, 25 anos, vocalista da banda punk Stafilococos, conhecida no underground de Havana. Já na página de fãs cubanos da cantora norte-americana Madonna, no Facebook, as postagens sempre acabam comparando-a a algum símbolo local – “Madonna Eterna como Cuba”, “Madonna alegre como Cuba”, são alguns dos dizeres. Cuba pode ser mais pop e rocker hoje, mas ainda é Cuba. Ainda é resistência.

A reportagem da Continente esteve em Havana no começo de março, às vésperas do show dos Rolling Stones, de novos horizontes políticos e com grande parte do centro da capital transformada num canteiro de obras. A impressão é de que algo está para acontecer, mas o que mesmo? O país que glorifica seu passado, nos carros Ford modelo 1956, na música do Buena Vista Social Club, na imagem cristalizada do copo de mojito no icônico bar La Bodeguita del Medio (point do escritor Ernest Hemingway), está em crise consigo mesmo. Uma crise impulsionada, sobretudo, por dois motivos: pelo fim do mandato do atual presidente Raúl Castro (e a dúvida sobre quem vai governar a ilha, a partir de então) e a visita do presidente dos Estados Unidos Barack Obama ocorrida mês passado – primeira missão de um chefe de estado norte-americano em 88 anos.

CAPITAL DA DISQUERÍA
A fila do Cine Yara dá voltas na esquina da Calle 23. Acabou de estrear Bailando con Margot, filme dirigido por Arturo Santana, um policial noir que se passa dois anos antes da Revolução Cubana e trata do roubo de um quadro numa mansão em Havana. A última pessoa da fila está ao lado de uma casa com um terraço. A imagem parece familiar para qualquer brasileiro: nas paredes, centenas de CDs e DVDs piratas com os últimos lançamentos do cinema norte-americano e internacional, seriados, álbuns de rock, de divas pop, de bandas coreanas de k-pop. “Aqui, não tem filme cubano, para ver essas películas só indo ao cinema”, explica Yolanda Sanchez, 56 anos, proprietária do estabelecimento junto ao filho, Yadir Sanchez, 24 anos – um enfermeiro que ganha o equivalente a US$ 30 por mês de salário num hospital e complementa sua renda com esta disquería– o nome local dado a estabelecimentos que comercializam ilegalmente produtos culturais estrangeiros. “Não é ilegal, pagamos a ‘seguridad social’ para os funcionários, estamos dentro da lei”, informa Yadir.

O que ele não conta é como adquire todos os mais de 600 títulos expostos nas oito prateleiras – custando cada um o equivalente a US$ 1. Com o acesso limitado à internet – praticamente inexiste acesso à internet doméstica –, a ETECSA (Empresa de Telecomunicaciones de Cuba) libera banda larga apenas para o que considera “áreas estratégicas”: serviços militares, turísticos, de saúde e, naturalmente, de comunicação. À população cabe acessar a internet do trabalho ou através de wi-fi em pontos específicos da cidade, ao custo de 2 CUC (o peso convertido equivalente ao dólar) por uma hora – preço alto para os padrões de Cuba, cujo salário médio equivale a 30 CUC por mês. O fato é que, para baixar tantos filmes, seriados e músicas, seria preciso internet banda larga – que, por meios oficiais, o “disquero” Yadir Sanchez não tem.


Na cultura jovem urbana, identificam-se processos de aculturação

Ele comercializa os títulos ou através de um outro “disquero”, que baixa os arquivos e revende para ele, ou por conta própria, adquirindo um pacote de internet “banda larga” (nem tão larga assim, naturalmente) de um funcionário de algum dos setores privilegiados do governo que “comercializa” ilegalmente o acesso.

Em Havana, a aduana – nossa alfândega – do Aeroporto José Martí registra cerca de 60% de apreensões de produtos eletrônicos (cabos, roteadores, bases de compartilhamento de dados), vindos de voos sobretudo do México e do Panamá (que fazem conexões para cidades dos Estados Unidos) e que servem de base material para que as “gambiarras” de internet sejam construídas. Essa realidade em camadas (uma oficial e outra oficiosa) faz parte do cotidiano dos cubanos, que driblam as restrições impostas pelo governo criando alternativas comunicacionais – e existenciais. “Durante mais de 50 anos, vivemos isolados, não temos condições de sair. Ao menos, estamos sabendo das coisas agora”, conta Yolanda Sanchez, que viveu a revolução quando niña. Ela reconhece o legado socialista, mas diz estar cansada de esperar por medidas que abram o país. “Queremos o socialismo com alguma abertura, uma coisa que não existe no mundo. Mas talvez aqui em Cuba possa existir”, atesta.

PAZ E DIVERSÃO
Cuba se mostra como o rascunho daquilo que o Estado insiste em mostrar como “legado cultural” da Revolução e o que uma juventude conectada, sexy e cheia de anseios de conhecer “o mundo” almeja. “Não queremos apenas as imagens de Havana das décadas de 1950/1960, queremos projetar culturalmente Havana para o ano de 2050”, diz o produtor cultural Fabien Pisani, filho do músico cubano Pablo Milanés, um dos responsáveis pela ida do grupo de música eletrônica Major Lazer para um concerto na Tribuna Antiimperialista, no último dia 6 de março, quando mais de 450 mil pessoas se apinharam junto ao Malecón (a mureta de pedra que cerca a parte litorânea de Havana) para ver um dos maiores shows pop já realizados na ilha.

A Tribuna Antiimperialista, em si, é, hoje, uma contradição. O palco construído “de frente” para os Estados Unidos e por trás da embaixada norte-americana (reaberta em 2015, na Calle Calzadas, no Bairro de Vedado), feito para que políticos e revolucionários clamassem palavras de ordem contra os americanos, sediou um espetáculo de música eletrônica liderado pelo DJ norte-americano Diplo (líder do Major Lazer), que, entre outras máximas, empunhou a bandeira de Cuba e disse: “Nós viemos trazer paz e diversão”. À boca miúda, comenta-se que o show do Major Lazer é uma eficiente estratégia do próprio governo (na imagem do Instituto Cubano de La Musica – que autoriza a realização de espetáculos musicais abertos e gratuitos na ilha) de se conectar com a massa de jovens – quantitativamente, o grupo “de risco” que mais quer fugir do país.

CONECTADOS
Sem sombra de dúvidas, conectado é o espaço de artes e entretenimento Fabrica de Arte Cubano, parceria público-privada que conta com oito ambientes para exposições, quatro “naves” para shows, além de bares e áreas abertas. Localizada numa antiga fábrica de azeite, a Fabrica tenta evidenciar uma lógica da produção cultural cubana: por ali, nada de espetáculos de salsa, rumba, dos clichês caribenhos, nada de camisetas com o rosto de Che Guevara, nada de boinas ou charutos.

sets de DJs mesclando a produção de hip-hop que emerge do subúrbio de Havana, como do grupo Golpe Seko, com clássicos do R&B; espetáculos de dança contemporânea, de novos músicos de jazz, mostras de videoclipes e de videoarte, lojas de design e maquetes de projetos de arquitetura. É por ali também que uma parte dos intelectuais cubanos, da juventude hipster e mais abastada de Havana se encontra. Durante fevereiro e março, estava em cartaz, na Fabrica, a série Hotel Habana, da dupla de artistas Liudmila & Nelson, que imagina a capital “invadida” pelas grandes marcas ocidentais, como se Coca-Cola e Google infeccionassem a cidade tal e qual um ataque zumbi.


Yolanda Sanchez mantém com seu filho loja de CDs e DVDs piratas perto do Cine Yara

“Durante anos, vivemos o mito de que seríamos uma sociedade sem classes sociais. Isto não procede. A classe social mais alta que, antes, era quase exclusivamente composta por integrantes do governo, hoje, já conta com uma larga parcela da população que tem parentes vivendo no exterior e recebe altas quantias em dólares e euros”, afirma a socióloga Carmen Izquierdo, uma das coordenadoras do Centro de Investigaciones Psicologicas y Sociologicas (CIPS) da Academia de Ciencias Sociales da Universidade de Havana.

Parte dessa elite cubana é responsável pela circulação de dinheiro na ilha e pela abertura de novos negócios. Para livrar a economia da estagnação e da dependência do turismo (um dos pilares da economia de Cuba), o governo não só liberou que os cubanos improvisem “albergues” em suas casas, alugando quartos para turistas como complemento de renda, como incentiva a abertura de novos negócios – marcadamente ligados ao setor alimentício (o mais afetado pelo embargo norte-americano).

A fratura identitária de Cuba – o olhar enviesado para o passado, as incertezas do futuro via abertura de relações com os Estados Unidos e os impasses de uma “transição” presidencial – parece sintetizada materialmente, hoje, no seu maior ícone: o Capitólio. A futura sede do parlamento cubano está cercada de máquinas, pedras, tapumes: em construção. Nas ruas, à frente do imponente prédio, já é possível ver luminárias de época, arborização, um desenho urbanístico gentrificado. Ao lado, no entanto, uma imensa loja da cadeia de estabelecimentos comerciais Panamericana exibe vitrines vazias. 

SCHNEIDER CARPEGGIANI, repórter especial da revista Continente.
THIAGO SOARES, professor e pesquisador do curso de Comunicação da UFPE.

 

veja também

Cachaça: a "branquinha" faz cinco séculos

Villa Ritinha: Uma joia insuspetia

Deep Web: Anonimato e liberdade na internet