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Ensino: Música como vetor de inclusão

Laboratório de Educação Musical Especial e Inclusiva foi criado para que pessoas com deficiências possam receber educação na área

TEXTO AD Luna

01 de Abril de 2016

Ilustração Maria Luisa Falcão

Quem canta ou toca algum instrumento musical tem ideia do considerável prazer proporcionado por essas experiências. Ainda assim, é possível ter notícia de algum familiar, amigo ou conhecido que abandonou as atividades porque “não atingiu o sucesso”. Não vamos entrar aqui na discussão sobre a relatividade do termo sucesso. Mas sugerir que, por questões de saúde física e mental, músicos profissionais ou amadores deveriam continuar praticando. É o que evidenciam numerosas pesquisas, especialmente, no campo da neurociência. Em linhas gerais, os estudos que relacionam música e funcionamento do cérebro abrangem três áreas. Aquela que investiga como nós processamos essa arte em nosso principal órgão, a que avalia como a prática musical pode impactar o desenvolvimento cerebral de crianças e adultos e, num terceiro plano, a que estuda o uso da música no tratamento de pessoas acometidas por danos cerebrais, traumas físicos ou que nasceram com determinadas deficiências sensoriais, físicas ou cognitivas.

É principalmente nesse último aspecto que se baseiam as atividades do Lemei – Laboratório de Educação Musical Especial e Inclusiva, pertencente ao Departamento de Música da Universidade Federal de Pernambuco. Ele surgiu a partir do crescente número de relatos de professores e de outros profissionais ligados ao universo pedagógico a respeito da dificuldade em se estabelecer metodologias e tratamentos adequados na relação com pessoas com deficiências. Tendo isso em vista, o Departamento de Música propôs, num encontro acadêmico de 2013, a discussão do tema Educação musical das pessoas com deficiência. Na ocasião, foram realizadas palestras, discussões e minicursos de musicografia braille e formação de professores em educação musical especial. “Ao final do evento, alunos vieram me procurar sugerindo que criássemos um grupo de estudos”, rememora Maria Aida Barroso, coordenadora do Lemei. Ainda que instigada pela proposta, a também professora se deparou com uma questão, na visão dela, crucial: “Quem, no Departamento de Música da UFPE (e estendo essa pergunta a outras instituições de ensino superior), teria condições de dar algum tipo de formação a nossos alunos dentro desse enfoque?”.

A necessidade de encontrar soluções para o dilema se tornava urgente devido a dois fatos conjugados e problemáticos. De acordo com Maria Aida, apesar de a legislação brasileira incluir o ensino de música nas escolas, grande parte delas não dispõe de organização para pôr em prática esse ensino. “Ao mesmo tempo, temos outra lei – avançadíssima e necessária, mas de implantação difícil – que inclui nas salas de aula as pessoas com deficiência”, expõe. Assim, quando chegam às instituições educacionais professores sem formação adequada para lidar com turmas inclusivas, se deparam com ambientes carentes e sem condições mínimas para os estudos musicais. “É assustador”, lamenta.

Diante de tal situação, a professora considerou que a formação de apenas um grupo de estudos não seria suficiente para sanar os problemas detectados. As ações deveriam ser permanentes, com infraestrutura e didática organizadas. Cartas foram enviadas a inúmeras instituições informando sobre a ideia de criação do laboratório. No início de 2014, o projeto foi aprovado pelo Ministério da Educação, o que possibilitou a compra de livros, instrumentos musicais, equipamentos e móveis. Maria Aida espera que o espaço esteja funcionando adequadamente ainda no primeiro semestre deste ano. Um website deverá entrar no ar em breve e ações isoladas serão realizadas paralelamente à montagem do local. É o caso, no âmbito da graduação, da criação da disciplina eletiva Seminários de Educação Musical Especial e Inclusiva e, na extensão, do curso de Musicografia Braille, com uma turma voltada a deficientes visuais e pessoas sem esse tipo de deficiência. Também serão realizadas, periodicamente, palestras abertas ao público. Criado no século XIX por Louis Braille (1809–1852), o sistema que leva o nome do francês também foi desenvolvido para a leitura de partituras musicais. Louis perdeu a visão aos três anos de idade. Aos 18, tornou-se professor do Instituto de Cegos de Paris, onde antes era aluno. Em 1829, a sua revolucionária criação foi publicada pela primeira vez. O método sofreu modificações e aperfeiçoamentos até os dias atuais.


Baterista Rodrigo Cardoso perdeu a visão durante a graduação em Música. Foto: Divulgação

Em novembro de 2015, ocorreu o I Encontro de Educação Musical e Inclusão, com cerca de 150 inscritos nos cursos oferecidos, palestras e atividades artísticas. Além de Maria Aida na coordenação, o Lemei conta com três bolsistas, dois alunos da licenciatura em Música e um de Publicidade, responsável por cuidar das peças gráficas e do site. Há ainda duas mestrandas em Educação, desenvolvendo pesquisa com inclusão e 10 alunos voluntários. O interesse crescente de estudantes de Música da universidade pelo tema da inclusão é motivo de alegria para Aida. Além do apoio do próprio Departamento de Música, são mantidas interações com outros cursos, como o de Letras, no que se refere ao ensino da Linguagem Brasileira de Sinais (Libras) e o suporte do Centro de Estudos Inclusivos do Centro de Educação da UFPE (CEI).

Fora do âmbito da universidade, o Lemei mantém parcerias com a Associação Pernambucana de Cegos (Apec) e com a Associação de Musicoterapia do Nordeste. Maria Aida destaca o suporte pedagógico fornecido pela professora Viviane Louro – que foi aprovada em concurso para trabalhar no Departamento de Música da UFPE, mas aguarda abertura de vaga para ser efetivada. Atualmente, ela reside na cidade de São Paulo e trabalha na Escola Municipal de Música e na Fundação das Artes de São Caetano do Sul, nas quais ministra aulas e coordena projetos de inclusão.

Fruto de experiências e pesquisas, Viviane escreveu Música e inclusão – Múltiplos olhares, seu quinto livro. A obra é marcada pelo diálogo entre várias áreas do conhecimento com a educação musical inclusiva. A intenção é mostrar a complexidade do tema e a necessidade de uma abordagem multidisciplinar. Contribuíram para o projeto, músicos, atores, psicólogos, psicanalistas, pedagogos, terapeutas, pais de pessoas com deficiências, entre outros. “Os benefícios da música são inúmeros para todas as pessoas. Ela molda o cérebro, independentemente de patologia ou não, aciona o sistema de recompensa do órgão, fazendo-nos sentir mais felizes; melhora nossa autoestima e nossas relações interpessoais. Por isso, a música é um ótimo veículo de inclusão social”, expõe.

CORPO DISCENTE
No momento, a maior parte da frequência registrada no Lemei é formada por pessoas com deficiência visual. Maria Aida diz acreditar que, de maneira geral, há mais pesquisas e projetos voltados para esse público. “No entanto, temos a intenção de trabalhar com todos os tipos de deficiências.” Dentre os frequentadores, a professora ressalta o nome de Rodrigo Cardoso. Formado recentemente em Licenciatura em Música, o percussionista de 34 anos ficou cego durante o curso. “Ele é nosso norteador e maior incentivo, tem uma história incrível e acredito que seja o primeiro sucesso do Lemei”, diz Aida.

Foi aos 28 anos que Rodrigo perdeu a visão. Ao acordar, na manhã de uma quinta-feira, em novembro de 2009, o músico percebeu que algo não estava muito bem com seu olho direito. “Estava vendo pontos escuros e cheguei a pensar que era um mosquito. De vez em quando, também surgiam fachos de luz. Como eu tinha o costume de estudar até de madrugada, depois que chegava da aula, achei que fosse vista cansada”, relata. Com essa hipótese em mente, ele esperou até o outro dia, achando que estaria melhor. Nada mudou. No sábado, a situação piorou e, no domingo, ele foi a uma consulta de emergência. A oftalmologista diagnosticou o caso como descolamento de retina e disse que somente com cirurgia haveria esperança de melhora.

Rodrigo Cardoso foi em busca de recursos para a operação, a qual foi realizada no hospital da Fundação Altino Ventura, por meio do SUS. No decorrer do tratamento do olho direito, o esquerdo começou a apresentar sintomas idênticos. Em dezembro, mesmo com o agravamento da situação, ele mantinha a esperança de ficar bom e poder trabalhar durante o Carnaval, que ocorreria em fevereiro. A preocupação dele aumentava, porém Cardoso nunca chegou a entrar em desespero. “Segui tudo o que o médico indicou: ficar em repouso, realizar as terapias, usar os medicamentos. Conheci mais sobre a doença e soube de outros casos mais graves”, conta.


Maria Aida, coordenadora do Lemei, destaca o crescente interesse pelo tema da inclusão. Foto: Divulgação

Durante os primeiros anos na condição de pessoa com deficiência visual, Rodrigo achou que não poderia mais viver de música. A professora com a qual ele pagou uma cadeira de Psicologia o apresentou a pessoas ligadas ao Centro de Educação da UFPE, que lhe ofereceu suporte e o iniciou no aprendizado do braille. “Fui percebendo que dava para voltar a estudar música.”

A volta ao curso de Música, porém, foi problemática. Como já apontado, Cardoso se deparou com educadores que não haviam sido preparados para lidar com estudantes especiais e não usufruíam de estrutura para tal. “Eu era o primeiro aluno cego do curso. Os professores não tinham o manejo. Como explicar partitura para uma pessoa que não enxerga?” A situação dele motivou o debate dentro do Departamento de Música a respeito do acolhimento a pessoas com deficiência.

Rodrigo Cardoso conta que a prática o tem ajudado a manter a saúde mental e física. “Voltei a estudar instrumentos percussivos de teclado, que são instrumentos muito precisos (xilofone e marimba, por exemplo). É preciso ter muita concentração e noção espacial – algo que me ajuda bastante no dia a dia. Antes, eu tinha muita dificuldade de andar por dentro de casa. Hoje, movimento-me de uma forma que as pessoas podem nem perceber que sou cego.”

BENEFÍCIOS
Sustentando o lema believe in music (acredite na música), a Namm Foundation (Fundação da Associação Norte-Americana da Indústria da Música) é uma das mais importantes no setor. Suas feiras costumam reunir milhares de pessoas, músicos amadores e profissionais, produtores, lojistas e grandes empresas do mercado da música. No Brasil, a instituição é parceira da Anafima (Associação Nacional da Indústria da Música), com a qual vem desenvolvendo campanhas de incentivo à prática musical.

“A mensagem principal é que todos podem tocar um instrumento. Há certo mito sobre a palavra dom e como ela é associada às artes. Muitas pessoas se habituaram a dizer que tocar um instrumento é um dom. Não, não é. Todos podem aprender, como aprenderam a escrever, por exemplo”, explica o paulistano Daniel Neves, presidente da entidade. “Tocar é bom, faz bem, diverte, une as pessoas e a música é a verdadeira conexão, uma tremenda rede social”, complementa.

Em artigo escrito para sua coluna no site da Folha de S.Paulo, intitulado Música na escola, a neurocientista brasileira Suzana Herculano-Houzel afirma que é farto o número de pesquisas que mostram os efeitos da prática musical. Foram detectadas melhoras na percepção de sons e de fala, no aprendizado verbal e na leitura. “Quem teve treinamento musical quando criança consegue processar sons com menos interferência de ruídos ambientes, detectar mais facilmente variações de tom – e, de fato, aprender línguas com mais proficiência”, explicou. Em um mundo como o nosso, onde a dispersão é patente, ter à disposição uma eficiente ferramenta de estímulo à concentração é algo valioso. Assim, Houzel finaliza: “(…) Através da necessidade de atenção focada e da associação do aprendizado ao prazer, aulas de música são uma excelente oportunidade para o cérebro… aprender a aprender”.

Apesar de não ser um pesquisador formal, Daniel Neves procura estar a par dos principais estudos. Até porque eles dão embasamento para as campanhas de divulgação da Namm. Ele informa que, por exemplo, instrumentos de sopro promovem o desenvolvimento pulmonar; bateria e percussão ajudam no tratamento da hiperatividade, dislexia e problemas de coordenação motora. “Tocar um instrumento também colabora para a redução de sintomas de doenças como esquizofrenia, depressão, demência, mal de Alzheimer, psicoses”, expõe. 

AD LUNA, jornalista.

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