Cachaça: a "branquinha" faz cinco séculos
A bebida alcoólica teria surgido no século XVI, em engenhos de açúcar que se estabeleceram na Ilha de Itamaracá e no Canal de Santa Cruz
TEXTO RENATA DO AMARAL
FOTOS SERGIO LOBO
01 de Abril de 2016
Dos engenhos ao copo, cachaça é popular em todo o país
Foto Sergio Lobo
A mais brasileira das bebidas pode estar comemorando 500 anos em 2016. São duas as versões para o surgimento da cachaça. “Há registros de que, em 1516, já havia significativa plantação de cana nas Sesmarias da Ilha de Itamaracá e do Canal de Santa Cruz, no litoral norte do Recife. A partir dessa época, começaram a se instalar os primeiros engenhos de açúcar no Brasil”, defende o engenheiro e “cachacista” Jairo Martins da Silva, em artigo sobre o tema. A segunda versão defende que a produção teve início com o primeiro engenho na Ilha de São Vicente, em 1532, com cana trazida das ilhas da Madeira e de São Tomé.
No texto Cachaça, de 1977, o sociólogo Gilberto Freyre – ele próprio um apreciador que fabricava licor de pitanga e oferecia garrafas aos amigos estrangeiros – também acredita na primeira versão: “O engenho de açúcar madrugou no Brasil Colônia. Embora o primeiro oficialmente dado como tal tenha surgido em São Vicente, parece que antes dele já se plantava cana e já se fabricava açúcar em Pernambuco. E, com o açúcar, é evidente que alguma aguardente de cana, cujo nome mais generalizado na colônia não tardaria a tornar-se ‘cachaça’”.
Determinar com precisão a data de nascimento da “branquinha” não é tarefa fácil, mas é possível dar um passeio por seu percurso histórico para compreender como ela se tornou a bebida oficial do país. A clássica marchinha de carnaval Cachaça, da década de 1940, coloca-a no topo das necessidades vitais, acima do feijão, do pão e até do amor: “Pode me faltar tudo na vida/ Arroz, feijão e pão/ Pode me faltar manteiga/ E tudo mais não faz falta não/ Pode me faltar o amor/ Isto até acho graça/ Só não quero que me falte/ A danada da cachaça”. Hipérboles à parte, sua importância é inegável.
A cultura da cana foi assentada no trabalho escravo. Imagem: Reprodução
O historiador Luís da Câmara Cascudo dedicou um livro todo à “marvada”, intitulado Prelúdio da cachaça e publicado em 1952. Segundo suas pesquisas, o termo aparece em uma carta do poeta Sá de Miranda (1481–1558) e era usado para descrever, na Espanha, de onde pode ter vindo o nome, uma aguardente feita com resíduos da pisa das uvas (provavelmente a bagaceira) no século XVI. Nos séculos XVII e XVIII, já no Brasil, o nome designava um resíduo da produção de açúcar usado para alimentar animais – apesar de suja e impura, essa primeira espuma era bem doce e atrativa para os bois e as vacas.
De acordo com registros de 1711, a espuma da segunda caldeira resultava em uma garapa que era usada pelos escravos. Quando guardada, até azedar, virava aguardente. À época, negros e indígenas não conheciam bebidas destiladas, mas apenas fermentadas, como cervejas e garapas feitas com frutas e raízes. “A cachaça, indo dos 18° aos 22° (até mais de 25 nas aguardentes europeias), revelou ao paladar negro e ameraba as asperidades inconfundíveis do álcool nessa concentração, por eles ignorada”, escreve Cascudo. Apresentado pelos europeus, o alambique passou a dominar a África negra nos séculos XIX e XX.
DA AGUARDENTE À CACHAÇA
Cascudo informa que o termo era usado popularmente, mas não nos registros escritos dos dois primeiros séculos da bebida, quando era registrada a expressão portuguesa aguardente, genérica para destilados de alto teor alcoólico. Cachaça era a bebida feita de caldo ou mel de cana, fervido e destilado em alambiques de barro ou de cobre. Virou moeda de troca. “O tráfico da escravaria impôs a valorização incessante. Aguardente da terra, a futura cachaça era indispensável para a compra do negro africano e, ao lado do tabaco de rolo, uma verdadeira moeda de extensa circulação.”
Os escravos consumiam a bebida desde a travessia oceânica, para tentar esquecer sua situação. “Morrendo de saudade, suportando um exílio injusto e associado à judiação dos feitores da maioria dos senhores de engenho, o escravo africano, tranquilamente reconhecido como o construtor dos alicerces econômicos do país nos chamados ciclos do ouro, da cana-de-açúcar, do cacau, do café e do algodão, foi quem primeiro usou a cachaça como cataplasma para seus males, não somente do corpo como também do espírito”, afirma o pesquisador Mário Souto Maior no Dicionário folclórico da cachaça, de 1973.
A predileção popular pelo destilado resultou na queda do vinho do Porto, o que fez Portugal proibir a fabricação de “vinho de mel” na colônia, por meio da Carta Real de 13 de setembro de 1649. A proibição não surtiu efeito, e, sim, produção clandestina, tendo sido revogada em 1661. “Talvez pela importância econômica no cenário açucareiro e agrícola da época, essa proibição tinha duas exceções: não se aplicava a Pernambuco e o uso da bebida ficava restrito à população escrava, não sendo permitida a venda, apenas a produção para consumo próprio”, conta Jairo Martins da Silva no livro Cachaça: o mais brasileiro dos prazeres, de 2008.
Cultivada em grandes extensões de terra, a planta é originária de Papua, Nova Guiné
Apesar da proibição formal, a bebida também era negociada com indígenas. No início da colonização, os jesuítas impediam a entrada da cachaça nas aldeias, mas ela veio com tudo, quando os religiosos voltaram para Portugal. “A cachaça, pelo nordeste brasileiro, foi uma calamidade aniquiladora dos derradeiros tupis, cariris, tarairiús e jês. Tufão em folhas secas…”, lamenta Cascudo. A produção artesanal ganhava espaço. “Paralela à fábrica de aguardente, imperiosa e complexa, alinhava-se a multidão invisível das engenhocas teimosas, pingando cachaça nas gargantas paupérrimas.”
A descoberta do ouro em Minas Gerais e seu escoamento por Paraty, no Rio de Janeiro, levou à produção naqueles lugares. Paraty tinha cerca de 150 alambiques clandestinos na época da proibição. “Onde mói um engenho, destila um alambique”, lembra Cascudo. Não foi por acaso que o nome da cidade fluminense virou sinônimo de cachaça, como se pode observar na canção Camisa listrada, sucesso na voz de Carmem Miranda: “Vestiu uma camisa listrada e saiu por aí/ Em vez de tomar chá com torradas ele bebeu paraty”. Ainda hoje, a cidade se destaca por seus alambiques.
Bebida popular, ela alcançou outros extratos sociais em períodos de nacionalismo mais exacerbado. Na Revolução Pernambucana de 1817, o padre João Ribeiro recusava vinho estrangeiro e preferia brindar com cachaça. Isso não significa que era de bom-tom embebedar-se, mas apenas beber socialmente. “A fama da glutonaria lusitana derramou-se pela Europa e passou ao Brasil, destoando da clássica frugalidade castelhana. Mas a bebedeira não ajudava a ninguém impor-se socialmente”, destaca Cascudo, que lembra que cachaça passou a significar também hábito, mania, predileção.
CACHAÇOLOGIA
Originária da Papua Nova Guiné, a cana se desenvolve melhor em regiões tropicais e semitropicais. “Locais pouco ensolarados resultam em bebidas ácidas, ao passo que o sol forte faz com que a cana concentre mais açúcar e produza bebidas com maior teor alcoólico e com menor acidez”, esclarece Silva em seu livro. Minas Gerais se destaca pela qualidade e diversidade da produção de cachaça, enquanto São Paulo, Pernambuco e Ceará respondem pelo maior volume da versão industrializada. A primeira cachaça nacional industrializada foi a Monjopina, no Engenho Monjope (PE), em 1756.
A fermentação é a parte mais importante na fabricação da bebida. “Dela, depende muito a qualidade do produto final”, diz Silva. A purificação é realizada no destilador, que pode ser descontínuo (alambique de cobre ou aço) ou contínuo (coluna), para produção tradicional e industrial, respectivamente. Em seguida, a bebida descansa por dois a quatro meses em tanques de alvenaria ou aço. “Neste período, a bebida, que acaba de passar pela destilação e filtragem, fixa seu caráter e consolida sua personalidade.” Depois, pode haver envelhecimento em barris de madeira por 12 a 24 meses. Mais do que isso, só para rótulos especiais.
Alambique serve à destilação artesanal da bebida
O mercado em torno da bebida criou profissionais especializados. Quem acompanha todo o processo de produção é o alambiqueiro, mestre cachaceiro ou cachaçólogo; quem indica harmonizações é o cachacista, cachacier ou sommelier de cachaça; e quem aprecia é o cachaçófilo. “Em resumo: o cachaçólogo produz, o cachaçófilo aprecia e o cachacista estabelece a conexão entre os dois, facilitando a compreensão entre os dois mundos, ou seja, o técnico e o prático”, facilita Silva, cachacista que considera que ela pode ser servida como “abrideira”, companheira (de pratos como feijoada ou sarapatel) ou “saideira” na refeição.
Pela lei, toda cachaça tem que ter graduação alcoólica entre 38° GL e 48° GL. Sua temperatura ideal de serviço é de 20°C. Silva diferencia a degustação técnica da hedonista – enquanto a primeira busca fazer uma avaliação profissional, a segunda prima pelo prazer de beber puro e simples. “O ato ou arte de degustar nada mais é do que beber prestando atenção a características sensoriais importantes: aparência, cor, aroma e sabor”, diz. Cachaças envelhecidas, por exemplo, têm coloração amarelada ou dourada. “Uma boa cachaça é aveludada, não transmitindo travo ou amargor, aquela sensação de ‘amarrar a boca’.”
É a segunda bebida mais consumida no país, atrás apenas da cerveja, segundo conta o autor (vale lembrar que a cerveja, geralmente, é bebida em volumes bem maiores). Há situações em que apenas a cachaça dá conta, como canta a banda Eddie na música O amargo: “Me dê uma cachaça/ Eu tou amargo demais/ Pra beber cerveja/ Ora veja”. Durante velórios no interior, ainda se mantém o hábito de “beber o morto” – com cachaça, claro. Ela já foi, inclusive, considerada uma panaceia indicada para curar diversas doenças e até para melhorar a produção de leite em mulheres grávidas, costume agora em desuso.
RARIDADE
Como acontece com qualquer bebida, alguns rótulos de cachaça são mais valorizados que outros. O cachacier Maurício Maia, de São Paulo (SP), explica que, legalmente, nenhuma cachaça pode ser intitulada “artesanal”, pois o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento não permite essa inscrição nos rótulos. “Tecnicamente, seria ‘cachaça de alambique’. Porém, é comum utilizarmos ‘cachaça artesanal’ para aquelas que são produzidas em alambiques de cobre, por batelada, em contraponto às cachaças produzidas por grandes indústrias em colunas de destilação contínua”, distingue.
Na indústria, a bebida passa por colunas de destilação e é armazenada em barris de madeira
Para o especialista em Gestão Sensorial de Bebidas e Alimentos Ensei Neto, de Uberlândia (MG), o adjetivo remete a uma bebida feita com esmero e atenção aos detalhes. “Existe até uma boa discussão sobre as diferenças entre uma cachaça de alambique e de torre de destilação. O ponto é que, com o alambique, a sensibilidade do mestre de alambique é fundamental”, diferencia. Por outro lado, ele destaca que o controle bem-feito também pode ser realizado por grandes destiladoras. Ou seja, pode haver bebidas de boa e de má qualidade feitas segundo os dois métodos.
Há até mesmo alguns rótulos que chegam a virar verdadeiras lendas. É o caso da cachaça Havana, produzida em Salinas (MG) desde 1943 e envelhecida por até uma década. A fábrica sofreu uma ação judicial em 2001 por parte do rum Havana Club, que a acusou de usar o nome indevidamente. A bebida, que já tinha edição bastante limitada, passou a se chamar Anísio Santiago, nome do produtor, hoje falecido. Depois de 10 anos, a empresa pôde voltar a usar o nome Havana, em 2011. Hoje, fabrica os dois rótulos, mas a Havana custa o dobro da Anísio Santiago – cada garrafa não sai por menos de R$ 350.
“Muitas vezes, uma boa história por detrás de rótulos cria uma mística especial, valorizando o produto”, explica Neto. “Em outros casos, a raridade, como uma edição limitada, por exemplo, torna a cachaça cobiçada.” Outros fatores, como design da embalagem, marketing e qualidade sensorial, também interferem no preço. “É um conjunto de fatores que leva à consolidação, fama e consequente valorização do produto”, afirma Maia. “São inúmeras histórias que ajudam a criar uma ‘aura’, que por sua vez ajuda a criar a fama, o que gera demanda. Como a cachaça é excelente e a produção é pequena, valoriza o produto.”
DIFERENTE DO RUM
Parte do mercado externo, no entanto, ainda confunde a cachaça com o rum, também feito de cana-de-açúcar (mas do melaço e não do caldo). “Essa é uma questão delicada. Até há pouco tempo, a cachaça era simplesmente denominada como Brazilian rum. É fundamental o mercado compreender o que é a cachaça”, defende Neto. “Há pouco incentivo e investimento governamental em marketing da cachaça. O que se vê são ações de grupos ou produtores que procuram desenvolver comunicação para que o mercado absorva o nome cachaça ao colocar junto ao brazilian rum nos rótulos das garrafas.”
A aguardente passa por envelhecimentos que lhe alteram cor e sabor
Para Maia, a confusão com o rum nos Estados Unidos se dava porque a classificação lá é feita pela matéria-prima, ou seja, pela cana. No entanto, ele avisa que foi firmado um acordo entre os dois países para que os EUA reconheçam a cachaça como destilado exclusivamente brasileiro e, em troca, o Brasil considere o bourbon como o uísque produzido apenas naquele país. “O mercado externo está começando a conhecer os produtos diferenciados, a cachaça de alambique. Até hoje, as poucas cachaças que chegam de maneira significativa no exterior são as grandes marcas comerciais.”
Pernambuco conta com um rótulo que tem se diferenciado não só pelo lado ecológico – é uma cachaça orgânica certificada feita em alambique movido à energia solar –, mas também pela qualidade. Dois dos três rótulos da Sanhaçu, produzida em Chã Grande (PE), estão entre os 50 melhores do Brasil, de acordo com o Ranking Cúpula da Cachaça, que ocorreu em 23 e 24 de janeiro em Analândia (SP), e do qual Maia foi um dos avaliadores. Todos são envelhecidos em madeiras brasileiras (freijó, carvalho e umburana), ao contrário de boa parte dos outros exemplares do ranking, que descansam em carvalho.
A Sanhaçu Umburana (R$ 115, a garrafa de 700 ml), quarto lugar na lista, recebeu do júri a seguinte descrição: “Untuosa, perfumada, aromas frutados que se estendem para o paladar. Encorpada. É marcante da amburana, mas pode ser enjoativa para iniciantes”. Já Sanhaçu Freijó (R$ 78,50, a garrafa de 600 ml) ficou em 45º lugar e foi considerada encorpada e com “álcool equilibrado, sem ser agressivo”. Há espaço, hoje, tanto para garrafas premiadas quanto para as cotidianas, como já rimava Ascenso Ferreira em 1939: “Suco de cana-caiana/ Passado nos alambique/ Pode sê qui prejudique/ Mas bebo toda semana”.
RENATA DO AMARAL, jornalista, professora, doutora em Comunicação e autora de Gastronomia: Prato do dia do jornalismo cultural.