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Acaçá

TEXTO José Cláudio

01 de Abril de 2016

Desenho a lápis conté sobre papel canson, 32 x 46,5 cm, Bahia, 1955

Desenho a lápis conté sobre papel canson, 32 x 46,5 cm, Bahia, 1955

Imagem José Cláudio

Não me chamo Amélia mas achava bonito não ter o que comer, sem porém nunca ter tido a oportunidade. Deve ter sido por isso, ora direis, e responderei no entanto que achava antes, achei durante e continuo a achar depois, como de fato estou me gabando disso agora, depois de ter passado pela experiência. Mais de uma vez. Até períodos relativamente prolongados. Anos.

Na primeira vez, o sentimento que prevaleceu foi de alívio: não pela fome, claro, mas pela constatação de que estava sem tostão, sem uma única moeda por menor que fosse, depois de procurar em todos os bolsos. Logo, não devia nada, se não tinha nada. Eu acreditava até então que uma insignificância qualquer que desse para pagar um acaçá sempre haveria de restar num dos bolsos. Acho que estou me lembrando disso por ter me lembrado não de fome nem do samba de Mário Lago mas do acaçá. Será que ainda existe acaçá na Bahia, Arthur Carvalho? A última vez que vi a iguaria foi no Benim em 1993. Faz 23 anos. Perguntei: Comment s’appele ça? (como se chama isso?: hoje já é preciso traduzir porque é espantoso como mais ninguém das novas gerações sabe uma palavra de francês). O rapaz, negro, que no Benim o único branco além dos da missão francesa era uma holandesa que me apontaram na rua, respondeu em puro baiano, pausadamente, ciente de prestar uma informação a um estrangeiro: “A-ca-çá”. Outra palavra que era igual no Benim era “inhame”, sendo que pronunciavam nham, com uma única sílaba. Acaçá era uma espécie de pamonhazinha esbranquiçada que se passava com leite no liquidificador, talvez de milho branco.

Agora me lembro. O que me levou mesmo a escrever sobre o assunto foi a evidência de que estou com fome. Almocei tarde, pintei até escurecer, já quase seis da tarde nesta Quarta-feira de Cinzas de muito sol. Só pinto com luz do dia, me sinto mais seguro com as cores. Exausto, me deitei, que agora só leio debaixo do mosqueteiro na cama, com medo do Aedes aegypti. Na minha casa, a sala de jantar e a cozinha, onde fica a geladeira, são embaixo no térreo e os quartos no andar de cima. Quer dizer, atacar a geladeira é uma operação de guerra. Abrir porta, acender luzes, descer escada, além de sair do cortinado com jeito, para não deixar entrar muriçoca: quem diria que algum dia a musiquinha de violino da muriçoca no pé do ouvido nos daria certa tranquilidade, ante a ameaça do Aedes, que não dispõe de aparelho vocal! Mas se tiver uma única muriçoca, com ou sem violino, só vou dormir depois de vê-la incinerada e ouvir o estalo da raquete, cujo descobridor merecia o Nobel da Paz. E sentir o cheiro de torresmo subindo na fumaça. Só então posso ter calma para pegar a Arte de Amar de Ovídio, embora já sem preparo físico para seguir suas lições. Interessante, ele que divaga por deuses e animais, não fala em muriçoca, essa mesma que canta aqui, como tive experiência no primeiro dia, isto é, primeira noite que dormi em Roma (Dia de Finados, 1957). Roma sempre foi conhecida pelos mosquitos, desde a época imperial, tanto que a palavra “impaludismo” vem de palude, “mangue” em italiano, e “malária” de mala, “má” em italiano, e aria (ária, ar, que em italiano é feminino). Sempre gostei de ler os clássicos, mesmo antes do conselho de Italo Calvino, não sei se por pernosticismo ou para não perder as referências, pisar em terra firme.

Como ia dizendo, vim para debaixo do mosquiteiro e esqueci da hora de jantar. Jantar, não; comer qualquer coisa, o mínimo possível, somente para não dormir com fome, desaconselhado pelos ginecologistas, minto, gerontologistas, não, nutricionistas, ainda não, endocrinologistas. E justamente me veio à lembrança a época em que não tinha nada para comer, diferente de hoje, em que há o que comer, é só abrir a geladeira, a despensa, e eu aqui preguiçando, lendo ou dormindo, que a leitura é uma espécie de sono ou de sonho de olhos abertos, um sono que se dorme acordado e talvez ainda por cima alimente desde que não exige do corpo grandes gastos de energias musculares e até faz passar a fome. Além de alimentar o espirito.

Lembro que lia na rua, ia para a rua ler na única luz que existia no casebre do Buraco Doce, Rio Vermelho, Salvador, a luz do poste da rua diante da minha porta. A porta do barraco não era sem trinco mas o chão era de terra, como o da rua, o banheiro eram os matos, a água era de uma cacimba sem tampa cavada no rés do chão e usada por todos.

Esse acaçá, Arthur, que eu mandei botar, e quando já pronto no copo eu desconfiei e procurei dinheiro para pagar e não achei, pedi desculpas e não tomei, que o rapaz que o serviu poderia guardar e servir a outro, assim pensei pelo menos, foi ali num abrigo que existia na praça do Elevador Lacerda, em cima, que embaixo é a Praça Cairu, não sei se você alcançou esse abrigo, 1953, por aí, que vendia sanduíches etc., parecido com o daqui do Parque Amorim no tempo do bonde. Tempo do bonde também lá na Bahia.

De onde me teria vindo essa ideia de que passar fome era bonito? Havia um endeusamento da pobreza. Bem, isso desde os filósofos gregos e indianos e Jesus Cristo mas naquelas eras mais recentes acho que da literatura de esquerda. Tanto que em São Paulo, por mais que me esforçasse para demonstrar alguma escolaridade, que meu pai era dono de loja, logo vi que era contraproducente, todo mundo queria era fazer alguma coisa por um pau-de-arara legítimo, um retirante saído dos quadros de Portinari, um flagelado da seca. Tinha pintor que para vender um desenho vestia-se de cangaceiro, carregava no sotaque. Uma vez eu disse que não conhecia o cacto croa-de-frade e a pessoa disse: “Você sabe. É porque não se lembra”.

P.S. Descobriram que a muriçoca que canta transmite as mesmas doenças do Aedes.

JOSÉ CLÁUDIO, artista plástico.

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