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"Um salto em audiência"

Pesquisadora Raquel Carriço observa como a teledramaturgia brasileira, líder entre telespectadores de Portugal dos anos 1970 aos 1990, é superada pela produção local

TEXTO Fábio Lucas

01 de Abril de 2016

Raquel Carriço

Raquel Carriço

Foto Divulgação

Gênero de inegável popularidade, que incorpora temas e debates da época, dita modas e produz ídolos em série para a cultura do entretenimento, a telenovela também formou uma ponte entre o Brasil e Portugal. Depois de cair no gosto dos brasileiros, a novela daqui foi exportada para o outro lado do Atlântico, onde encontrou repercussão e audiência imediatas. Com o passar dos anos, no entanto, as produções verde-amarelas foram perdendo fãs para as novelas portuguesas. Atraída por esse fenômeno, a publicitária Raquel Carriço – professora-adjunta da Universidade Federal de Sergipe, doutora pela Universidade Nova de Lisboa e mestre pela Universidade Metodista de São Paulo – mergulhou no assunto, em uma pesquisa de doutorado que resultou no livro Telenovelas brasileiras e portuguesas – Padrões de audiência e consumo (Edies, 2015).

Para a autora, a virada se deu quando as produções portuguesas passaram a apresentar o cotidiano do país com a mesma qualidade das novelas brasileiras. “Isso foi de extrema importância para o sucesso do folhetim na TV portuguesa: discutir seus próprios problemas, questionar seu modo de ser, seu modo de enxergar o outro, pautar discussões atuais legitimamente portuguesas”, diz ela nesta entrevista à Continente.

CONTINENTE O que a levou ao tema de pesquisa?
RAQUEL CARRIÇO Eu sou publicitária e trabalhei alguns anos como coordenadora de mídia. Particularmente, nunca gostei das telenovelas, mas percebia nos relatórios de índices de audiência como esses programas faziam sucesso. Sempre me intrigaram os motivos que faziam o gênero ser tão atrativo para uma grande e variada parcela da população. O sucesso das telenovelas brasileiras no exterior também não era novidade para mim, mas, quando observei que estava acontecendo uma mudança sem precedentes em Portugal com relação às telenovelas brasileiras, interessei-me em investigar, como tema da minha tese de doutorado, os motivos que levavam as pessoas a consumirem as novelas, e mais, quais eram as percepções do telespectador sobre o gênero de origem nacional e o de origem brasileira.

CONTINENTE O que você foi capaz de observar na gênese dessa atração crescente pelo gênero, resultando na preferência pelas produções portuguesas?
RAQUEL CARRIÇO As produções brasileiras despertaram o gosto dos portugueses pelas telenovelas. Posso ousar dizer que a televisão portuguesa mais que nasceu com a telenovela brasileira, com ela brigou pelos índices de liderança dos rankings de audiência. Tanto é fato que, na década de 1970, Portugal viu Gabriela cravo e canela, O astro, Escrava Isaura, O casarão e Dancing days, transmitidas pela RTP1 e RTP2. Nos anos da década de 1980, foram transmitidas 32 telenovelas de origem brasileira, saltando para cerca de 120 títulos na década de 1990, isso sem levar em consideração as reexibições dos títulos, que é prática rotineira em Portugal. Importante ressaltar que, na década de 1990, surgiram duas emissoras privadas de sinal aberto em Portugal e, com isso, o acirramento da competitividade com o gênero. Na década de 2000, o número de títulos exibidos diminuiu para 59.

CONTINENTE E as produções portuguesas?
RAQUEL CARRIÇO As telenovelas portuguesas nasceram de forma tímida. Em duas décadas (1980 e 1990), haviam sido produzidas quase 20. A primeira telenovela portuguesa, Vila Faia, vai ao ar cinco anos mais tarde da exibição de Gabriela, em 1982, e, como resultado da primeira experiência da produção portuguesa, ela não conquistou a mesma popularidade das brasileiras. Na década de 2000, entretanto, com 65 títulos transmitidos, as telenovelas portuguesas dão um salto em termos de índices de participação de audiência e passam para trás as brasileiras. Mais precisamente em 2008, é demarcada uma diferença aguda entre os índices de participação de audiência das telenovelas portuguesas com relação às brasileiras.

CONTINENTE Há semelhança entre os dois modelos?
RAQUEL CARRIÇO Em uma avaliação estrutural e estética da telenovela portuguesa, fica evidente uma cópia do modelo brasileiro de produção. Em ambas, vemos contornos reais e naturais, ou seja, menos teatrais, melodramáticas e lacrimejantes, como as mexicanas e venezuelanas. Também, com um ritmo mais acelerado do seu desenvolvimento (quase à moda hollywoodiana), prevalece um discurso de feição romântica baseado nas representações do cotidiano. Na década de 2000, portanto, as produções portuguesas se especializaram na “pegada brasileira de produção”, ou se apropriaram dela, e deslancharam. Isso porque passaram a exibir, com qualidade produtiva, o cotidiano português. A telenovela portuguesa começou a representar, com as características acima mencionadas, o cotidiano do português médio, retratando as características culturais e sociais do país. Isso foi de extrema importância para o sucesso do folhetim na TV portuguesa: discutir seus próprios problemas, questionar seu modo de ser, seu modo de enxergar o outro, pautar discussões atuais legitimamente portuguesas.

CONTINENTE Na “taxonomia de motivações para a audiência de novelas em Portugal”, que a sua pesquisa descortina, segundo o professor Antonio Carlos Ruótolo, o que pode ser destacado? São motivações que podem ser semelhantes para os espectadores no Brasil?
RAQUEL CARRIÇO O estudo investigou os motivos para a seleção e audiência das telenovelas brasileiras e portuguesas em Portugal. Os eventos influentes na tomada de decisão do receptor para empreender-se em tal atividade também foram tomados em consideração. Genericamente falando, três motivos foram chaves para entender o consumo das telenovelas: 1. Gerenciamento do humor, 2. Aprendizagem e integração social e 3. Companhia/passatempo. As pessoas buscam em produtos como as telenovelas gerenciar seu estado de humor quando, por exemplo, aborrecidos e entediados percebem que os conteúdos à sua frente prometem alterar suas disposições iniciais para um estado mais intenso de excitamento, com sua exposição a conteúdos de ação, aventura, comédia, espionagem, terror e suspense ou qualquer coisa que proporcione ao telespectador fuga do seu estado de humor inicial, que o deixe eletrizado, por exemplo. O oposto também é possível com os conteúdos das telenovelas. Pessoas estressadas acabam por escolher conteúdos cujos estímulos são percebidos como neutralizadores dos seus estados de tensão, como aqueles “água com açúcar”, românticos, musicais, ou qualquer outro que leve à redução do seu nível de perturbação.

CONTINENTE Quais as motivações do segundo e do terceiro tipos?
RAQUEL CARRIÇO Aprendizagem e integração são termos conceitualmente distintos, mas estão no mesmo pacote porque conduzem o telespectador a um comportamento muito similar diante das telenovelas. Aprender um novo comportamento, tomar decisões, resolver problemas pessoais, reforçar posições, estilos e atitudes, integrar-se ao mundo social através dos assuntos das telenovelas são práticas possíveis, se os conteúdos das telenovelas se mostrarem adequados a estes propósitos. Quem busca aconselhar-se ou integrar-se com os assuntos que as telenovelas pautam são no geral mais seletivos, e consomem menos telenovelas que aqueles motivados por gerenciamento do humor. Já quem assiste às telenovelas motivado por companhia/passatempo procede indistintamente por hábito, de forma quase não proposital. É uma atividade repetitiva e rotineira, e cujo processo seletivo das telenovelas se revela indolente. Assim, para estes, ver telenovelas brasileiras ou portuguesas é algo indistinto. Importante é preencher a casa de sons, e ir pescando aqui e ali, o que acontece na programação.


Audiência das produções da teledramaturgia lusitana já supera a das novelas brasileiras. Foto: Divulgação

CONTINENTE O que você detectou a partir do estudo?
RAQUEL CARRIÇO Como resultado da pesquisa, aqueles motivados por companhia/passatempo, assistiam às telenovelas brasileiras e portuguesas indistintamente. Aqueles motivados por aprendizagem e integração social, claro, preferiam os conteúdos portugueses, porque estes não só apresentavam os dilemas da cultura portuguesa, mas também porque, estando no “top da parada da TV portuguesa”, os telespectadores se integravam com o que o país estava a discutir. Por sua vez, aqueles motivados por gerenciamento do humor demonstraram possuir alguma preferência pelas produções brasileiras. A relação? De alguma forma, ainda persiste o estigma da boa produção brasileira, que seria mais envolvente e, por consequência, deteria maior capacidade de gerenciamento do estado de humor ou excitação do telespectador.

CONTINENTE As motivações seriam as mesmas no Brasil?
RAQUEL CARRIÇO Creio que sim, os resultados são generalizáveis para qualquer população (independentemente do conteúdo em questão). Se pensarmos nos nossos motivos pessoais para escolhermos o que consumimos, culturalmente falando, verificaremos que, em dado momento, só queremos não nos sentir sozinhos em casa (companhia/passatempo), ou queremos gerenciar nosso estado de humor com um bom filme de ficção (excitamento) ou um documentário sobre o modo reprodutivo dos golfinhos (relaxamento, pois assim esqueço por algum período que o chefe está prestes a me mandar embora). Quem nunca escolheu assistir a um conteúdo romântico para tentar entender seus sentimentos amorosos ou tentar manejar um conflito? Nossas motivações para consumir determinados conteúdos estão condicionados a situações circunstanciais, sociais e culturais, que são relativamente semelhantes.

CONTINENTE A preferência não significa, por certo, exclusão… ou existe algum tipo de preconceito, agora, com as novelas brasileiras, num efeito rebote ao gosto inicial?
RAQUEL CARRIÇO Não, preconceito algum, apenas as telenovelas portuguesas servem melhor aos propósitos pessoais, sociais, culturais dos portugueses. Aliás, os portugueses, por causa das telenovelas, sabem mais sobre nós do que nós sobre eles. Eles reconhecem nossas gírias, os sotaques, os trejeitos, as artimanhas do povo brasileiro. Eu mesma levei uma semana para começar a entender o que falavam… E, mesmo depois de quatro anos vivendo lá, não saberia distinguir o sotaque do norte comparado ao do sul do país. Talvez porque eu não tenha assistido às telenovelas portuguesas enquanto morava lá para fazer o doutorado… As telenovelas brasileiras ainda hoje são transmitidas e recepcionadas em Portugal, mas agora em outro patamar de importância. E, se ainda o são, é porque, comercialmente falando, elas ainda possuem algum poder de atração sobre a população, capaz de mantê-las na grade da programação televisiva.

CONTINENTE Como você enxerga o cenário de exibição de telenovelas diante da convergência de mídias, especialmente da tendência de TV transmitida pela internet, como no caso das séries do Netflix? Será que as telenovelas seguirão o mesmo caminho, com vários episódios disponíveis de uma só vez para o público assistir quando quiser? Qual o futuro das telenovelas, na sua opinião?
RAQUEL CARRIÇO Essa é a pergunta de um milhão de libras esterlinas (porque está difícil entender onde o dólar ou o euro vão parar). Mas, se observarmos que o surgimento das novas plataformas não exterminaram as anteriores – estão aí o jornal, o rádio, a revista, o livro, o cinema e tantas outras plataformas para contar história –, podemos prever que o modelo atual pode se perpetuar e conviver com novos modelos, como o indicado, com os episódios disponíveis para serem assistidos numa única tarde nostálgica de domingo. O que deve mudar, talvez mais radicalmente, é a segmentação das telenovelas para públicos mais específicos com temas e estruturas mais especializados. Acredito que a médio prazo tenhamos outra estrutura populacional, com mais acesso à educação, bem como outra estrutura de acesso a bens de consumo como a internet (via tablets, smartphones, smart TVs), o que demandará das operadoras produções de boa qualidade, relativamente baratas, e que atendam a um quantitativo variado de perfis psicográficos. 

Fabio Lucas, jornalista e mestre em Filosofia.

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