No ano passado, a MITsp investiu em grandes encenadores, manipulando clássicos da dramaturgia mundial, com destaque para a potente encenação, com duração de quatro horas, de A gaivota, obra do russo Anton Tchekhov dirigida pelo seu compatriota Yuri Butusov. Outro destaque foi a dupla encenação do texto Senhorita Julia, de August Strindberg, sob os olhares da brasileira Christiane Jatahy, com a carioca Cia. Vértice, e da diretora britânica Kate Mitchell, que friccionaram os limites da representação no teatro, dialogando ainda com a linguagem cinematográfica no palco.
Se nas edições passadas o idealizador e diretor artístico da mostra, Antonio Araújo, apontava para a preocupação do evento em trazer “espetáculos e artistas arrojados, comprometidos com a pesquisa cênica, radicais em suas experimentações e posicionamentos, além de antenados com sua época e lugar”, este ano, vemos na programação o esforço em permanecer com essa premissa. A edição de 2016, de 4 a 13 deste mês, será composta por espetáculos da França, Polônia, Grécia, Bélgica, Congo, Alemanha e Brasil, prometendo um olhar voltado para o teatro e o processo social.
INTERNACIONAIS
Pela primeira vez no Brasil, a companhia polonesa Nowy Teatr apresentará o espetáculo (A)Pollonia, sob a batuta do renomado encenador Krzysztof Warlikowski. Realizando um conciso trabalho de dramaturgia a partir de textos clássicos e contemporâneos, sobretudo fragmentos de Alceste, de Eurípides, Oresteia, de Ésquilo, e Apolonia, de Hanna Krall, o artista polonês busca refletir sobre a ambígua e sombria história do sacrifício e, especialmente, do autossacrifício em nossas sociedades. A crítica de teatro Armelle Héliot, do jornal francês Le Figaro, descreveu (A)Pollonia como um “rio longo correndo que nos leva com materiais diferentes, rosnando ruído e fúria, fabricando conhecimentos e fluxo de emoções fascinantes, derretendo como a saída de um vulcão em erupção violenta e cuspindo pensamentos como sentimentos, fatos estabelecidos com análise rigorosa de como as verdades e fantasias agem na história”.
Francês Joël Pommerat trará dois espetáculos à MITsp, Ça Ira e Cinderela. Foto: Divulgação
Do criador da cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Atenas de 2014, o grego Dimitris Papaioannou, o público brasileiro poderá assistir à sua mais recente criação, Natureza morta (Still life). O bailarino de maior projeção em seu país utiliza-se de uma meditação sobre o mito de Sísifo, personagem castigado pelos deuses e fadado a rolar diariamente uma pedra até o topo da montanha, mas que, com o peso e o cansaço, acaba deixando-a rolar novamente até o chão, levando-o a cumprir essa subida cotidianamente e para todo o sempre. Como faz o escritor Albert Camus em O homem revoltado, ao associar o mito de Sísifo com a vida dos homens, que comumente seguem uma rotina diária, Papaioannou faz um “trabalho sobre o trabalho”, relaciona-o, na atualidade, aos países em desenvolvimento e aos da Europa ocidental.
Mas o grande destaque deste ano na MITsp é, sem dúvidas, a presença do francês Joël Pommerat. O dramaturgo e diretor que ficou conhecido no Brasil em 2013, com a montagem de sua obra Esta criança, pela Cia. Brasileira de Teatro (PR), ao lado da atriz Renata Sorrah, trará ao festival dois trabalhos de sua autoria: Ça ira e Cinderela.
Quebrando o ineditismo da presença de um espetáculo infantojuvenil, Cinderela foi também escolhido para a abertura da mostra. Em parceria com os artistas do Teatro Nacional da Bélgica, o espetáculo apresenta um Pommerat pouco conhecido do público brasileiro, retomando o exercício realizado por ele nos últimos anos, a partir da manipulação de contos clássicos, como Chapeuzinho Vermelho e Pinóquio. Com Cinderela, ele propõe uma experiência intensa e desconcertante, como destacou o jornal Le Monde, ao fazer uma estimulante reflexão sobre a dor e a culpa, e apontar para o fundo trágico da infância: o medo, a solidão, os pesadelos e as esperanças a partir da morte da mãe.
Em Ça ira, encontramos o artista explicitamente mais politizado. Definida como uma ficção política contemporânea, a obra reflete sobre a luta pela democracia e os mecanismos que regem as ações dos indivíduos, enfatizando a dimensão coletiva da ação política. Para o autor e diretor, importa nesse momento – quando a Europa está abalada pelo retorno do nacionalismo, da extrema direita e do conservadorismo – o mergulho na história da Revolução Francesa.
Companhia polonesa Nowy Teatr também virá ao país, com (A)Pollonia.
Foto: Stefan Okolowicz/Divulgação
NACIONAIS
Esperado com ansiedade pela crítica teatral, o grupo Teatro de Narradores (SP) estreia na MITsp o espetáculo Cidade vodu. O terremoto de 2010 que atingiu o Haiti, matando quase 200 mil habitantes e gerando um fluxo de emigração para o Brasil, impulsionou o grupo a levantar questões como o preconceito racial e cultural, além da liberdade de trânsito pelo mundo. Com atores haitianos e brasileiros, utilizando-se também de falas em crioulo (dialeto do Haiti), o espetáculo joga luz na situação dos imigrantes em São Paulo (SP) e Rio Branco (AC), articulando teatro, cinema e música, sob encenação do diretor José Fernando de Azevedo.
Após experimentar o uso de obras da literatura brasileira contemporânea no seu espetáculo anterior, intitulado Puzzle, o diretor Felipe Hirsch retoma esse procedimento na composição de seu novo trabalho, A tragédia latino-americana. Com direção de arte de sua fiel escudeira Daniela Thomas, o espetáculo é composto por meio de fragmentos, adaptações de obras ou parte de obras da literatura contemporânea da América Latina. O elenco conta com atores brasileiros, argentinos, chilenos e mexicanos, com destaque para a presença do pernambucano Pedro Wagner.
Além da seleção de espetáculos, um dos maiores pontos de diferenciação da mostra paulista, em relação às inúmeras outras realizadas, é o seu forte investimento nas atividades reflexivas e formativas. No que intitula de Olhares Críticos, a mostra desenvolve sete atividades, que vão desde debates realizados logo após as apresentações à publicação de um programa-livro com ensaios desenvolvidos por importantes pensadores do país. Mas o momento de maior vitalidade diz respeito ao Pensamento em Processo, no qual os artistas da mostra são convidados a falar sobre seus processos de criação, arquiteturas de composição e realidades geográficas. Soma-se ainda a atenção especial para a Prática da Crítica, composta por palestras e lançamento de publicações que refletem sobre o papel da crítica nos dias atuais, além da Crítica Performativa, executada pela revista Antro Positivo. Durante oito horas ininterruptas, em tempo real e em frente ao público, a publicação reflete sobre uma das obras apresentadas (este ano será o Ça ira), convidando o leitor a também interferir na composição da escrita.
Nowy Teatr virá sob a direção de Krysztof Warlikowski. Foto: Divulgação
CURITIBA
Após tamanha potência vinda da mostra paulista, o Festival de Teatro de Curitiba passa atualmente por um importante processo de restruturação. Com a redução de recursos de patrocinadores (alguns migraram seus investimentos para a MITsp), o FTC aposta, neste ano, numa nova equipe de curadores, em busca da retomada de sua força. Para isso, deverá repensar questões que se fazem urgentes, como a recorrência, em sua programação, de frágeis produções, amparadas apenas pela presença de atores globais, e os altos valores praticados nas bilheterias, ainda que faça uso de investimentos de recursos públicos através das leis de incentivos. Além disso, a compreensão de que nem sempre quantidade corresponde à qualidade, falando sobre a sua mostra paralela.
Os espetáculos escolhidos para a mostra oficial, que acontece de 23 de março a 3 de abril, possuem claro investimento no trabalho dos mais atuantes grupos teatrais brasileiros, trazendo uma oxigenação à celebração dos seus 25 anos. A presença de coletivos com As Travestidas (CE), com Quem tem medo de travesti?, e o Teatro Kuny (SP), com Orgia ou de como os corpos podem substituir as ideias, pela discussão sobre gênero e sexualidade, apontam para um novo horizonte.
A certeza que temos é de que, com tamanha capacidade de produtores, curadores e artistas em refazerem suas próprias trajetórias e questionarem seus modos de produção, poderemos bradar em São Paulo ou em Curitiba o título do espetáculo do francês Pommerat (Ça ira): “Vai rolar”.
PEDRO VILELA, gestor, diretor artístico e idealizador da Trema! Plataforma de Teatro.