Os diferentes cenários supracitados se assemelham, primeiramente, por se utilizarem da temática de desilusão amorosa – uma devastação sempre íntima e pessoal – como mote para criações artísticas e, portanto, tornadas públicas. O segundo ponto é que, em diferentes recortes temporais, as três obras seguem a tendência de desmistificar a visão abstrata que se tem da arte contemporânea e necessitam da colaboração direta de outros indivíduos e do cotidiano deles, exteriores à cena artística, para realizarem sua empreitada em caráter coletivo. Pode-se observar, ainda, que os artistas vão buscar suas bases na realidade, no que aconteceu de fato – objetos que fizeram parte de uma história de amor, um e-mail que realmente pôs o fim a uma relação, fotografias pessoais cortadas, indicando a destruição amorosa –, para transpor a realidade em criação, confundindo e mesclando o real com a arte.
RECORTADOS
No ensaio fotográfico, Mascaro procurou fazer perdurar uma cartografia do desafeto, ao se dar conta “do eminente desaparecimento de uma técnica e prática sentimental muito peculiar de intervenção na imagem”, afirmou à Continente. Em tempos de digitalização e da queda no número de fotografias impressas, deletam-se fotos inapropriadas à lembrança, para apagá-las. Na contramão desses tempos, o artista fez questão de “grafar um gesto no tempo” e reunir o que chama de “micronarrativas”.
Ao longo da realização da série, Gabriel prezou por encontros aleatórios e teve a preocupação de filtrar as malogradas histórias de amor para manter anônimos os 13 participantes. As marcas de tesoura cega nas fotos, a precariedade dos cortes, a assimetria deles chamaram a atenção do pernambucano, que resolveu também recolher e registrar os objetos cortantes. Mascaro interpretou a tesoura como uma ferramenta poderosa e um elemento de interpretação das imagens, em suas palavras “um instrumento de potência para assentar lembranças e produzir um novo lugar para os personagens do retrato”. O que vemos são tesouras para cortar tecido, unha, papel, todas envelhecidas, lâminas gastas, tomadas por ferrugem e tão arruinadas quanto o amor a que se referem. Elas estão ali para nos fazer compreender o que um dos personagens da escritora italiana Natália Ginzburg certa vez proferiu: “Mas não se amam apenas lembranças felizes. A certa altura da vida, percebe-se que se amam as lembranças”.
Os depoimentos que também fazem parte de Desamar não se assemelham a cartas de amor, pois não se dirigem diretamente ao outro nem aguardam por uma resposta. Todas as falas, no entanto, contêm o indivíduo que se foi e sentimentos que variam da raiva, mágoa, alívio à saudade – “Ele não vai se esquecer de mim nem tão cedo”, “Passado apagado!”, “Não quero falar nada sobre ela”, “É um grande favor que você me faz levar esse retrato embora”, “Hoje, eu acompanho ela só pelo Facebook”. “Eu faço de tudo para lembrar as feições do rosto dele e não consigo” é uma das declarações mais melancólicas do conjunto, porque evidencia justamente as mazelas de lembrar e esquecer, duas instâncias da memória que frequentemente estão em interseção. Se é verdade que a ausência é relativamente bem-suportada e o recorte da fotografia funciona como tentativa de encontrar alívio perante a lembrança, esquecer o outro – De que cor eram seus olhos, seus cabelos? Como sorria para a foto? – mostra-se tão desalentador quanto lembrar-se dele.
Em seu livro Fragmentos do discurso amoroso, o escritor e filósofo francês Roland Barthes observa que “a ausência amorosa só tem um sentido, e só pode ser dita a partir de quem fica – e não de quem parte; eu, sempre presente, só se constitui diante de você, sempre ausente”. Barthes completa: “Na ausência amorosa sou, tristemente, uma imagem descolada, que seca, amarelece, encarquilha”. O projeto fotográfico de Mascaro dialoga sobretudo com a ausência do outro, e sua subtração da foto é uma metáfora do que ocorreu na intimidade. As imagens e palavras de Desamar tentam, a todo custo, na visão do artista, “suprimir um tempo, ausentar um rosto, corpo ou presença”. Porém, ao evidenciar esse ausente, ao evocá-lo, seja no papel cortado, seja no depoimento, “o vestígio faz da ausência uma nova presença”, aponta.
Foto: Gabriel Mascaro/Divulgação
PROJETO
Em 2015, antes de concluir Desamar, Gabriel Mascaro recebeu o convite do fotógrafo Gilvan Barreto para participar do livro-CD Orquestra Pernambucana de Fotografia (OPF). O projeto, inédito, reúne artes visuais e música em uma homenagem à criatividade pernambucana. A OPF, idealizada por Gilvan e produzida por Pupillo e Berna Vieira, reúne nove ensaios fotográficos acompanhados por nove canções, que dialogam entre si livremente. Nomes como Bárbara Wagner, Ana Farache, Beto Figueiroa, além do próprio Gilvan, contribuem com fotografias para a orquestra. Otto, Karina Buhr e Jorge Du Peixe estão entre os músicos envolvidos.
No caso da série de Mascaro, ele conta que enviou seu trabalho diretamente para a curadoria da OPF, sem qualquer interferência e sem saber sequer quem seria sua “dupla” no livro-CD. “Quando descobri que o cantor iria ter contato com meu trabalho e se inspirar na minha série, fiquei muito feliz.” O ex-vocalista da banda Cordel do Fogo Encantado, Lira, compôs uma música homônima, com versos como: “Cortei nosso retrato/ rasguei sua cabeça/ meu amor”.
Desamar, a série, é como um tempo presente insuportável. Flutua entre dois momentos: o de referência a um passado vago, anterior ao das fotografias recortadas, o tempo de amor; e o momento em que estamos diante de um discurso, uma imagem sobre o ausente, diante de fotos destroçadas, pedaços de angústia, desamor. Ao manipular a ausência, Mascaro define seu trabalho como um “microinventário antirromântico” e acredita que expor a intimidade de terceiros é um modo de agenciar encontros e reorganizar experiências. Ao coletar fotografias, tesouras e relatos para criar sua série fotográfica, Gabriel Mascaro, ao mesmo tempo que escancara a dificuldade de exterminar os vestígios do amor, eterniza-o, ainda que pela ausência.
MARINA MOURA, estudante de jornalismo e estagiária da Continente.