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Arte serial: As HQs (também) antes de 1896

Publicação revisita o passado das histórias em quadrinhos, a partir de novos critérios e marcos

TEXTO Germano Rabello

01 de Março de 2016

Ilustração de Baenkelsaenger mostra que criar narrativas com imagens é algo mais antigo do que supomos

Ilustração de Baenkelsaenger mostra que criar narrativas com imagens é algo mais antigo do que supomos

Ilustração Reprodução

Imagens estéticas em sequência, contando histórias, usualmente em tinta sobre papel. A definição de histórias em quadrinhos é bem simples, mas sempre há margem para um bocado de interpretação, e muita discussão sobre qual seria o marco zero dessa arte, o ponto em que tudo teria começado. Toda tentativa de cronologia vai depender de critérios, que podem ficar borrados, confusos. Trazendo mais argumentos a essa saudável confusão, chega às prateleiras Imageria – O nascimento das histórias em quadrinhos (Editora Veneta, 2015), de Rogério de Campos. Com pesquisa meticulosa, texto lúcido, o autor demonstra que tecer narrativas através de imagens é prática mais antiga do que poderíamos supor.

Acima de tudo uma antologia, um livrão de arte com amostras generosas, o volume tem como mérito esse novo modo de encarar o passado das HQs, inovando a bibliografia brasileira do tema, traçando relações precisas entre os fatos, contextualizando cada traço para sua época. Se boa parte dos livros ainda estabelece o nascimento dos comics em 1896, nos EUA, este aqui se propõe a mostrar um pouco dos “primeiros 500 anos” dessa linguagem – o que certamente vai entortar a cabeça de muitos aficionados e experts.


Narrativas ilustradas criadas a partir do século 12 no Japão. Imagem: Reprodução

Imageria argumenta que os quadrinhos, ao contrário do cinema, não precisaram de uma grande revolução técnica. Sempre puderam ser feitos com tinta e papel, ou qualquer material similar. Ou foram beneficiados por um avanço tecnológico muito anterior: a imprensa, aperfeiçoada no século 15. Durante esse lento período de gênese, era complicado perceber a linguagem tomando forma, e mais difícil ainda levar o assunto a sério. Era distração para gente ignorante, uma coisa solta, espalhada por aí, uma arte sem nome, da qual nem os próprios artistas pareciam se orgulhar, misturada com todas as ilustrações de jornais e panfletos.

Entre outros achados do livro, a análise da relação entre os quadrinhos e outras artes. Claro, há convergência natural dos quadrinistas, a maioria tendo uma carreira em pintura, gravura ou escultura, na qual as narrativas ilustradas são uma experiência a mais. O autor apresenta as bänkelsangs, espécie de contação de histórias com quadros ilustrativos, diversão popular em feiras da Europa, desde o século 14. Fala do desenho como impulsor para vender livros, que era (e continua a ser) de incalculável importância. Romances, hoje clássicos, eram publicados como folhetins em jornais, tendo relação simbiótica com as ilustrações – que às vezes vinham primeiro, orientando os rumos da ficção.

Os primórdios do cinema, por exemplo, devem muito de sua inspiração aos quadrinhos. A primeira ficção filmada, L’arrousseur arrosé, de Louis Lumiére (1895), é baseada numa HQ de Uzès, feita 10 anos antes. Porém, se houve uma pré-história do cinema, exposta no documentário O filme antes do filme (1986), de Werner Nekes, é visível o quanto ele dependeu de uma tecnologia específica do século 19. Enquanto que os exemplos mostrados em Imageria, com outra concepção, outra mentalidade e estética, operam princípios basicamente iguais aos de qualquer história em quadrinhos e produzem narrativas com começo, meio e fim, ou, sendo mais enfático: produzem um discurso elaborado, definido. São HQs deslocadas no tempo.

Por isso, Rogério de Campos prefere dizer que os quadrinhos foram inventados inúmeras vezes. E nem espanta o fato de existirem tantos possíveis pioneiros. Para os artistas, a atividade pagava as contas, entretanto sem ter o prestígio das artes oficiais ou acadêmicas. Motivados pela vontade de narrar histórias, ilustradores saíram do desenho único – que caracteriza a pintura e a gravura tradicionais e, num contexto mais jornalístico, a charge e o cartum – para experimentar a possibilidade das pequenas narrativas usando vários desenhos. Os quadrinhos nasceram no Japão, na Alemanha, na Inglaterra, nos EUA, em datas e séculos diferentes.


Livro inclui ainda a tapeçaria de Bayeux nos primórdios da HQ. Imagem: Reprodução

São muitas perspectivas possíveis, todas verdadeiras. Os conceitos podem se alargar e, quando são considerados outros materiais, surgem outras histórias em quadrinhos. A partir do século 12, os emakimonos japoneses, às vezes feitos de seda. No mesmo século, os vitrais da catedral de Chartres, na França. Ou, ainda, a tapeçaria de Bayeux, imensa história bordada num tapete, no século 11, sobre as conquistas de Guilherme II na Inglaterra. A Coluna de Trajano, talhada na pedra no ano 113, que descreve a guerra dos romanos contra os dácios. Volta ao mundo, viagem no tempo.

O século 19 surge como um ponto de virada, quando o humor vence o moralismo. Tudo que vem antes é marcado pela necessidade de punição, pelo exemplo moral. Os vícios são apontados de forma mais trágica. Faziam sucesso as histórias ilustradas referentes à religião. Nesse contexto, figura a vida de Lutero, sob o ponto de vista católico, na Alemanha do século 17; e basta ler o título para perceber a abordagem: “Martinho Lutero, doutor da impiedade, professor da vilania (…)”. Havia muitas páginas também dedicadas às façanhas dos criminosos e quase sempre às suas execuções públicas, suas cabeças empaladas e expostas, sem indício de piedade.

O inglês William Hogarth (1697-1764), com sua série de gravuras O progresso de uma prostituta, de 1732, reproduzida aqui, é considerado um avô das histórias em quadrinhos. Seu sucesso avassalador deve muito ao moralismo da época, possivelmente disfarçando a curiosidade erótica sobre a vida na prostituição. Hogarth não perdeu tempo, criando imediatamente outra série de gravuras, O progresso de um libertino, de 1734. Iniciou um gênero: os “progressos” se multiplicariam dali em diante como fenômeno de vendas, através de vários artistas: James Gillray (O progresso de John Bull, 1793), Johann Heinrich Hamberg (A vida de Strunk, o novo-rico, 1822–25), entre outros.

SURGEM OS BALÕES
O livro The comics, de Coulton Waugh, lançado em 1947, descrito por Rogério como “a primeira tentativa relevante de uma história das histórias em quadrinhos”, elege como pioneiro Richard Fenton Outcault (1863-1928), autor da tira Hogan’s Alley, popularmente conhecida pelo nome do seu personagem recorrente, um garoto irlandês com a cabeça raspada (indício de piolhos) e um camisolão amarelo: o Yellow Kid. Waugh citava a publicação de 16 de fevereiro de 1896 do The New York Journal, no qual o menino amarelo, quase como coadjuvante, aparecia em meio a uma exposição de cães. A tônica era exatamente essa: o cotidiano das ruas, do populacho, sem qualquer idealização e com humor violento. Mas, a rigor, era cartum, um quadro único, não uma história em quadrinhos.


Gravura da série O progresso de uma prostituta, de Hogart, tido como avô da HQ.
Imagem: Reprodução

A hipótese Yellow Kid então se divide em dois caminhos. Para alguns, foi em 25 de outubro, do mesmo ano de 1896, que Outcault inventou o gênero, e o que definiria essa tira como marco inicial seria o uso dos balões de fala. Nessa publicação singela e minimalista, o Yellow Kid conversa com um gramofone para finalmente descobrir um papagaio dentro da caixa. Inegavelmente, uma história em quadrinhos, cinco momentos sequenciais, sem bordas, um design simples e elegante.

Mas restam dúvidas. Em que grau o balão do Yellow Kid é mais significativo que o de uma história publicada em 1886, em Paris? Uma página assinada pelo genial Caran D’Ache (1858–1909), O tenor teimoso, na qual Napoleão é um dos personagens e tem dois balões de fala. Caran D’Ache é um dos autores que surpreendem por ter encontrado um ritmo muito próprio, moderno, para as suas narrativas. O surgimento do balão de fala marca uma nova maturidade na integração do texto e imagem, mas sua necessidade compulsória não faz tanto sentido.

Várias HQs apresentadas em Imageria têm legenda em vez de balão, com o texto embaixo do quadro. E, de toda maneira, o texto é um elemento opcional. O livro traz vários exemplos de HQs totalmente sem texto: Rabier, Godefroy, Georges du Maurier, A. B. Frost. Exigir a presença do texto ou de um balão de fala excluiria também obras importantes da atualidade, como as de Shaun Tan, Jim Woodring, Rafael Sica, Brecht Vandenbroucke, Peter Kuper etc.


TÖPFFER E DORÉ
Na historiografia dos quadrinhos, o jogo começa a virar em 1973, quando David Kunzle lança seu livro The early comic strip, chamando a atenção para vários quadrinistas antigos, incluindo o suíço Rudolph Töpffer (1799-1846). (Esse é um caso à parte, um grande prazer encontrá-lo no livro Imageria.) Professor acadêmico, amigo de Goethe, fez de suas narrativas ilustradas um trabalho monumental, desbravador de territórios. Temos A história do Senhor Jabot, lançada em 1833, reproduzida integralmente neste trabalho de Rogério de Campos em 30 páginas do volume.


Yellow Kid, obra de Outcault, inaugura o uso de balões de fala. Imagem: Reprodução

Ironia fina, personagens bem-caracterizadas, a obra de Töpffer continua instigante depois de quase dois séculos. A mistura de texto e imagem começa a engrenar na nossa própria mente, depois de um tempo. Uma simples linha vertical, sem espaçamento, pode decompor o espaço retangular em quadros menores. As posturas corporais e faciais são o elemento mais evidente, já que Töpffer abre mão dos detalhes de cenário e adereços em nome da fluência da narrativa. Reduz ao mínimo o número de elementos, e funciona à perfeição. O traço muito solto e sem preciosismos, a narrativa uma engenhosa comédia de erros, crítica venenosa às convenções sociais da época, à frivolidade e ao narcisismo, temas sempre atuais.

É um dos precursores do álbum de quadrinhos – ou da graphic novel, para usar um termo recente. Seguiram-se outras publicações: Monsieur Crépin, e Histoire, de M. Vieux Bois, ambos de 1937; Monsieur Pencil, de 1940, entre outros. A data de publicação nem sempre correspondendo à de criação, pois Töpffer tinha certo receio de ficar estigmatizado por essas obras, por não ser um trabalho respeitável. Mas o impacto foi imediato e incontrolável. Pouco depois do lançamento do Senhor Jabot, surgiam edições pirateadas em vários países da Europa. O termo albuns jabot passou a designar um novo segmento editorial, de álbuns de HQ. Aparecem inclusive HQs de Jabot desenhadas por outros autores.

Gustave Doré (1832–1883) é outro destaque. Gravurista francês, que criou imagens definitivas para grandes clássicos da literatura, do Dom Quixote à Bíblia, seu trabalho de quadrinhos e cartuns é pouco divulgado. Mais uma vez esbarramos num caso de autor que renega uma parte “pouco respeitável” do próprio trabalho; e só recentemente essa obra vem sendo redescoberta e valorizada. Ocupa quase 50 páginas em Imageria, tendo seu (Des)prazeres de uma viagem de prazeres publicado na íntegra. Uma sátira, talvez influenciada por Töpffer, mas de linguagem diversa, em que o suíço mostrava linhas frágeis, caligráficas, Doré aplica contrastes mais bem-definidos. Prefere uma diagramação mais livre, sem padrão reconhecível, os desenhos se espalhando sem muita regra pela página: tudo solto, arredondado, sem bordas rígidas.

Sobre a participação luso-brasileira nessa pajelança, o símbolo maior é a força criativa de um italiano que viveu longos anos no Brasil: Ângelo Agostini (1840–1910), que nomeou um dos maiores prêmios do quadrinho nacional. E também o português Bordallo (1846-1905), autor de Apontamentos de Raphael Bordallo Pinheiro, sobre a viagem picaresca do imperador do Rasilb pela Europa, descrita como uma das primeiras graphic novels a serem feitas, tendo como personagem o imperador D. Pedro II.


Gravura de Doré, que criou imagens para clássicos da literatura. Imagem: Reprodução

Imageria encerra sua trajetória temporal na primeira década do século 20 – o bastante para alcançar Winsor McCay, Lyonel Feininger, Clare Briggs, Fred Opper. Daí por diante, uma maior organização dos syndicates começaria a regular cada vez mais a criatividade dos autores, em busca de personagens de sucesso, que dariam retorno comercial garantido. Essas regulamentações viriam como uma lógica crescente do entendimento dos quadrinhos como negócio. Material para outro livro.

O AUTOR
Quanto à organização e ao texto de Rogério de Campos, poucos seriam tão qualificados para encarar uma empreitada dessas. Como autor, assinou Revanchismo (2009), Dicionário do vinho (2011, ganhador do prêmio Jabuti, com Maurício Tagliari) e ainda Livro dos santos (2012). Atual editor e criador da Veneta, tem longa história no mercado editorial brasileiro, na área de quadrinhos em especial. Começando na revista Animal, das mais influentes e explosivas que o Brasil já teve. Alguns anos depois, na editora Conrad, ele foi um dos pioneiros em tratar com seriedade os mangás e também a ficção de Neil Gaiman, além de livros politicamente explosivos, como os da coleção Baderna. Apresentou ao público brasileiro autores como Daniel Clowes, Joe Sacco, Posy Simmonds, Alison Bechdel, e o quadrinho nacional de Marcelo Quintanilha, Marcelo D’Salete, André Toral, entre outros.

Essa faceta de pesquisador e teórico dos quadrinhos, expressa nas introduções de livros que editou, finalmente ganha o espaço que merece. Talvez só o começo da discussão, já que hoje existem sites como Töpfferiana Comics democratizando o acesso a materiais esquecidos através dos tempos, em que o leitor pode achar novas HQ pioneiras. Mas é inestimável o valor de Imageria para qualquer leitor que considere os quadrinhos como linguagem abrangente, ou para qualquer um interessado em história, comunicação e artes visuais. O passado, como uma inesgotável fonte de novidades, chegou para provocar os leitores do século 21. 

GERMANO RABELLO, jornalista, ilustrador, autor de fanzines e histórias em quadrinhos, músico e compositor.

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