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A força do alimento é prevenir, não remediar

Pensamento que associa saúde à doença tem sido contestado pela percepção da urgência da alimentação agroecológica para o bom funcionamento do corpo

TEXTO Victória Ayres

01 de Março de 2016

Alimentos curativos

Alimentos curativos

Foto Divulgação

A ideia da cura no pensamento ocidental está quase sempre atrelada à de doença, ou a qualquer condição maléfica que precisa ser sanada. A conceituação do que seria uma alimentação curativa, ou o que são alimentos curativos, pode partir de uma visão equivocada sobre a comida, com a crença de que certos ingredientes ou pratos poderiam ter uma função objetiva e que sua ação no corpo se assemelharia a algum remédio sintético. Porém, uma alimentação curativa não é muito diferente do que se considera uma alimentação saudável e balanceada. As substâncias naturais presentes nos alimentos ingeridos com propósitos medicinais, em sua maioria, não vão por si só combater as enfermidades presentes no organismo, mas auxiliar os processos fisiológicos do próprio corpo, que, estes, sim, combaterão a doença presente – ou a que viria.

A alimentação voltada para a cura tem suas raízes nos saberes populares, ou como diz o médico Celerino Carriconde, do Centro Nordestino de Medicina Popular (CNMP), nas pesquisas empíricas do povo. “Temos que mudar a forma como a medicina enxerga as doenças. O povo sabe pesquisar a partir da observação, há um empirismo popular, as pessoas descobriam que tipo de planta poderia servir para sanar certas doenças vendo como os animais doentes se comportavam e que alimentos eles buscavam”, explica.

Em Conceição das Creoulas, uma comunidade quilombola perto de Salgueiro, no sertão pernambucano, as pessoas recorrem a saberes populares para combater alguns males do corpo. Partes da árvore chamada embira (da família das timeleáceas), por exemplo, é usada para aliviar os sintomas do crescimento de dentes em bebês. “Utilizamos a raiz da embira para fazer um chá e damos para o bebê; o chá ajuda também se ele estiver com diarreia”, explica a artesã Maria de Lourdes.


A agroecologia exclui agrotóxicos, produz fertilizantes naturais e respeita os ciclos e safras. Foto: Tecnologia Social Pais/Divulgação

Uma visão demasiadamente tecnicista da saúde – em que o paciente delega ao médico o poder absoluto sobre seu corpo, e uma eventual doença – fez com que a população fosse paulatinamente buscando produtos industriais, tanto para se alimentar quanto para se restaurar e se recuperar, quando necessário. Na contramão disso, Celerino Carriconde defende que comidas naturais e orgânicas devem ser consumidas. Ao mesmo tempo em que alimentam adequadamente o organismo, suprem a necessidade de muitos remédios sintéticos.

A própria alimentação contemporânea é vista como fonte de doenças: o consumo excessivo de produtos refinados, embutidos e oriundos da agricultura extensiva danifica o funcionamento do corpo. Os alimentos agroecológicos são vistos como uma alternativa aos produtos industrializados e pobres em nutrientes, pois, na agroecologia, o cultivo das plantas é feito de forma que o próprio ecossistema da plantação se regule, deixando que o solo fique sempre rico em minerais e as verduras, os legumes e frutos estejam carregados de nutrientes. Seguindo essa lógica, muitas culinárias tradicionais buscam consumir o mínimo de alimentos não orgânicos, a exemplo do povo xucuru. Para eles, a alimentação faz parte de todo um processo holístico de respeito e harmonia com a natureza, portanto, os xucurus evitam consumir alimentos que foram produzidos de forma não agroecológica.


O médico integrativo Eduardo Magalhães afirma que corpo saudável consegur absorver nutrientes e eliminar toxinas. Foto: Divulgação

“Muitos dos pratos que fazemos têm um propósito curativo e também espiritual, usamos vários deles em rituais sagrados. Há alimentos que têm atividade mais funcional, por exemplo, o café de guandu, que é usado por nós para ajudar com as diabetes”, explica Iran Xucuru, agrônomo e agricultor da comunidade xucuru de Pesqueira. Para produzir alimentos adequados e ricos em nutrientes, eles realizam o que Iran chama de agricultura do sagrado, que consiste em produzir de forma agroecológica, mas com a concepção de que o contato com os encantados – entidades religiosas dos xucurus – é essencial para que o alimento cresça adequadamente.

MEDICINA AIURVEDA
Visões holísticas da saúde a partir da alimentação estão presentes em várias épocas e lugares. Uma das medicinas mais conhecidas dentro desse grupo é a aiurveda. Surgida na Índia, ela é um dos sistemas medicinais mais antigos que existem, tendo também influências japonesas, e sua prática parte da crença de que todas as pessoas e coisas são compostas por cinco elementos: éter, água, ar, fogo e terra. As diferentes combinações desses elementos no organismo formam o perfil biológico do indivíduo, e, para que ele tenha saúde, os tecidos corporais precisam estar em harmonia e a capacidade de absorção dos nutrientes, a energia vital que nos mantém, o agni, deve ser equilibrada. Para a aiurveda, a doença não começa a partir da sua manifestação, mas muito antes, a partir de um acúmulo de pequenos desequilíbrios. A elaboração da dieta parte da análise de quais elementos estão em falta no corpo e do quão forte é o agni do corpo, não muito diferente de segmentos da nutrição ocidental.


Médico Celerino Carriconde, do Centro de Medicina Popular diz que alimentação voltada à cura tem origem nos saberes tradicionais. Foto: Divulgação

Um corpo saudável consegue absorver os nutrientes que consome e eliminar as toxinas. O nutrólogo Eduardo Magalhães, que atua com a medicina integrativa, explica que um organismo que não realiza bem essas duas funções tem chances maiores de desenvolver alguma enfermidade. “Os alimentos têm micro e macronutrientes, sua função vai além de nutrir o estômago, ele tem que oferecer o elemento certo para o bom funcionamento das células. Os sinais de uma ausência de nutrientes são um reflexo da nossa desarmonia bioquímica, que é influenciada pela alimentação. Esses sintomas são sinais de sobrecarga ou deficiência de algo, e para sanar isso existem alimentos funcionais, que melhoram cada aspecto do seu corpo”, explica.

Originária dos Andes, a batata yacon, por exemplo, tem propriedades que ajudam o funcionamento do pâncreas e são boas para quem possui diabetes. Kiwi, nozes e banana possuem substâncias que ajudam na produção de serotonina, um neurotransmissor que as pessoas com depressão têm deficiência. Então, em vez de consumir remédios como o Prozac, que, segundo o nutrólogo, não conseguem sozinhos produzir a serotonina, mas retê-la, é possível ingerir maior quantidade desses alimentos e usufruir de benefícios mais duradouros e saudáveis.


Muito usada na culinária vegana, o kefir serve para fermentar líquidos. Foto: Divulgação

Para auxiliar o processo de absorção do sistema digestivo, algumas comidas cumprem essa função. Como a acidez do estômago precisa estar sempre um pouco alta, um copo de água com sumo de limão ou um pouco de vinagre de maçã ajudam a manter o pH do estômago baixo. Já o intestino precisa de microbióticos para que funcione adequadamente, e esses elementos podem ser encontrados em vários alimentos fermentados, tais como o kefir, também muito empregado na culinária vegana. O kefir é uma colônia de microrganismos que pode ser utilizada para fermentar líquidos, sendo possível produzir com ele, inclusive, bebidas alcoólicas.

Por razões políticas ou individuais, as pessoas estão paulatinamente investindo e acreditando menos na medicina ocidental, que tem a doença separada do organismo como objeto principal e seus tratamentos à base de substâncias sintéticas. Métodos que focam na alimentação e observam o indivíduo de forma integral estão mais ligados aos saberes tradicionais e conseguem cuidar da saúde do corpo de maneira menos invasiva, utilizando os próprios processos naturais do organismo como instrumentos de cura. 

VICTÓRIA AYRES, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.

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