Uma visão demasiadamente tecnicista da saúde – em que o paciente delega ao médico o poder absoluto sobre seu corpo, e uma eventual doença – fez com que a população fosse paulatinamente buscando produtos industriais, tanto para se alimentar quanto para se restaurar e se recuperar, quando necessário. Na contramão disso, Celerino Carriconde defende que comidas naturais e orgânicas devem ser consumidas. Ao mesmo tempo em que alimentam adequadamente o organismo, suprem a necessidade de muitos remédios sintéticos.
A própria alimentação contemporânea é vista como fonte de doenças: o consumo excessivo de produtos refinados, embutidos e oriundos da agricultura extensiva danifica o funcionamento do corpo. Os alimentos agroecológicos são vistos como uma alternativa aos produtos industrializados e pobres em nutrientes, pois, na agroecologia, o cultivo das plantas é feito de forma que o próprio ecossistema da plantação se regule, deixando que o solo fique sempre rico em minerais e as verduras, os legumes e frutos estejam carregados de nutrientes. Seguindo essa lógica, muitas culinárias tradicionais buscam consumir o mínimo de alimentos não orgânicos, a exemplo do povo xucuru. Para eles, a alimentação faz parte de todo um processo holístico de respeito e harmonia com a natureza, portanto, os xucurus evitam consumir alimentos que foram produzidos de forma não agroecológica.
O médico integrativo Eduardo Magalhães afirma que corpo saudável consegur absorver nutrientes e eliminar toxinas. Foto: Divulgação
“Muitos dos pratos que fazemos têm um propósito curativo e também espiritual, usamos vários deles em rituais sagrados. Há alimentos que têm atividade mais funcional, por exemplo, o café de guandu, que é usado por nós para ajudar com as diabetes”, explica Iran Xucuru, agrônomo e agricultor da comunidade xucuru de Pesqueira. Para produzir alimentos adequados e ricos em nutrientes, eles realizam o que Iran chama de agricultura do sagrado, que consiste em produzir de forma agroecológica, mas com a concepção de que o contato com os encantados – entidades religiosas dos xucurus – é essencial para que o alimento cresça adequadamente.
MEDICINA AIURVEDA
Visões holísticas da saúde a partir da alimentação estão presentes em várias épocas e lugares. Uma das medicinas mais conhecidas dentro desse grupo é a aiurveda. Surgida na Índia, ela é um dos sistemas medicinais mais antigos que existem, tendo também influências japonesas, e sua prática parte da crença de que todas as pessoas e coisas são compostas por cinco elementos: éter, água, ar, fogo e terra. As diferentes combinações desses elementos no organismo formam o perfil biológico do indivíduo, e, para que ele tenha saúde, os tecidos corporais precisam estar em harmonia e a capacidade de absorção dos nutrientes, a energia vital que nos mantém, o agni, deve ser equilibrada. Para a aiurveda, a doença não começa a partir da sua manifestação, mas muito antes, a partir de um acúmulo de pequenos desequilíbrios. A elaboração da dieta parte da análise de quais elementos estão em falta no corpo e do quão forte é o agni do corpo, não muito diferente de segmentos da nutrição ocidental.
Médico Celerino Carriconde, do Centro de Medicina Popular diz que alimentação voltada à cura tem origem nos saberes tradicionais. Foto: Divulgação
Um corpo saudável consegue absorver os nutrientes que consome e eliminar as toxinas. O nutrólogo Eduardo Magalhães, que atua com a medicina integrativa, explica que um organismo que não realiza bem essas duas funções tem chances maiores de desenvolver alguma enfermidade. “Os alimentos têm micro e macronutrientes, sua função vai além de nutrir o estômago, ele tem que oferecer o elemento certo para o bom funcionamento das células. Os sinais de uma ausência de nutrientes são um reflexo da nossa desarmonia bioquímica, que é influenciada pela alimentação. Esses sintomas são sinais de sobrecarga ou deficiência de algo, e para sanar isso existem alimentos funcionais, que melhoram cada aspecto do seu corpo”, explica.
Originária dos Andes, a batata yacon, por exemplo, tem propriedades que ajudam o funcionamento do pâncreas e são boas para quem possui diabetes. Kiwi, nozes e banana possuem substâncias que ajudam na produção de serotonina, um neurotransmissor que as pessoas com depressão têm deficiência. Então, em vez de consumir remédios como o Prozac, que, segundo o nutrólogo, não conseguem sozinhos produzir a serotonina, mas retê-la, é possível ingerir maior quantidade desses alimentos e usufruir de benefícios mais duradouros e saudáveis.
Muito usada na culinária vegana, o kefir serve para fermentar líquidos. Foto: Divulgação
Para auxiliar o processo de absorção do sistema digestivo, algumas comidas cumprem essa função. Como a acidez do estômago precisa estar sempre um pouco alta, um copo de água com sumo de limão ou um pouco de vinagre de maçã ajudam a manter o pH do estômago baixo. Já o intestino precisa de microbióticos para que funcione adequadamente, e esses elementos podem ser encontrados em vários alimentos fermentados, tais como o kefir, também muito empregado na culinária vegana. O kefir é uma colônia de microrganismos que pode ser utilizada para fermentar líquidos, sendo possível produzir com ele, inclusive, bebidas alcoólicas.
Por razões políticas ou individuais, as pessoas estão paulatinamente investindo e acreditando menos na medicina ocidental, que tem a doença separada do organismo como objeto principal e seus tratamentos à base de substâncias sintéticas. Métodos que focam na alimentação e observam o indivíduo de forma integral estão mais ligados aos saberes tradicionais e conseguem cuidar da saúde do corpo de maneira menos invasiva, utilizando os próprios processos naturais do organismo como instrumentos de cura.
VICTÓRIA AYRES, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.