FOTOS PROJETO LAMBE LAMBE
01 de Fevereiro de 2016
Urso e caçador
Foto Projeto Lambe Lambe
"A la ursa quer dinheiro, quem não dá é pirangueiro" são os versos da marchinha popular que faz parte da tradição do carnaval pernambucano, principalmente dos subúrbios da região metropolitana do Recife. A brincadeira é levada às ruas com espontaneidade por crianças e adolescentes nos dias que antecedem a folia ou durante o Carnaval. “As crianças já vão crescendo e brincando, indo de porta em porta pedindo dinheiro. É impressionante como isso se perpetua, como a nossa cultura popular é tão forte. Uma caixa de papelão na cabeça, uma lata de leite ou balde e um cabo de vassoura nas mãos, está feita a brincadeira”, afirma Aelson da Hora, conselheiro nacional de cultura e presidente da Federação Cultural de Bois e Similares.
Mas os ursos também desfilam, com capricho, no Concurso de Agremiações Carnavalescas, sendo conduzidos por brincantes apaixonados que se esforçam para fazer bonito na competição realizada pela Prefeitura do Recife. Nos grupos que saem oficialmente, existem mais personagens envolvidos do que nas brincadeiras entre crianças. Além do urso, o concurso exige a figura do caçador com espingarda e a do italiano (às vezes, chamado gringo ou domador), com maleta e cartola, representando o dono ou o vendedor do animal. Os personagens remetem a tradições europeias, principalmente italianas, com influência dos povos ciganos e artistas circenses. Orquestra, coral e porta-cartaz também fazem parte da agremiação. Os ursos podem incluir outros elementos, que variam de acordo com o grupo, como cordão de crianças, cordão de mulheres e novos personagens ou homenagens.
“O urso ou la ursa é uma brincadeira trazida para o Brasil pelos italianos imigrantes. Em Pernambuco, ela se desenvolveu e agregou nossas características, sendo incorporada ao Carnaval. A manifestação é oriunda das feiras da Idade Média, nas quais um urso – o animal verdadeiro – era levado para embates que atraíam público”, explica Albemar Araújo, coordenador do concurso desde 2001.
Com uma categoria específica dentro da competição, os ursos compõem, de forma singular, a diversidade da folia pernambucana. O grande vencedor do concurso é o Urso Cangaçá, do Bairro de Água Fria, campeão há 10 anos, ininterruptamente. Fundado em 1983, é mantido desde 1996 pela funcionária pública aposentada Cristina Andrade, de 68 anos. “O urso desperta alegria e felicidade nas pessoas. A gente trabalha com crianças, adultos e pessoas da terceira idade, acolhemos todo mundo. Trabalhamos com muito amor”, diz Cristina, numa pausa da costura de fantasias. Ela vive a cultura popular com intensidade, do ciclo natalino ao ciclo carnavalesco, pois também organiza um pastoril.
Urso Cangaçá, de Água Fria, é campeão da folia recifense há
10 anos consecutivos
Este ano, tem o desafio de sublimar a dor para colocar o urso na rua, pois não poderá contar com Márcio Luna, seu sobrinho e companheiro nos preparativos para a folia. Ele faleceu precocemente, aos 36 anos, em julho de 2015, e era responsável por grande parte da criatividade que levou o Cangaçá a ser campeão por tantos anos. “A gente tomba e se levanta, mas estamos confeccionando as fantasias, tentando botar (o urso) na rua. É um trabalho que me preenche, sabe? Por causa desse acontecimento, eu pensei em acabar (com o grupo) ou entregar pra alguém, mas não tive coragem, porque é uma coisa que aperreia, mas, na verdade, é bom, gostoso”, declara, demonstrando o amor pela cultura popular. Além de brincante dedicado, Márcio Luna era historiador e se preocupava em evidenciar a importância cultural dos ursos. Chegou a idealizar o projeto de pesquisa Ursos do Carnaval. junto ao historiador Mário Ribeiro, para submeter documentação ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), e tentar registrar a manifestação como Patrimônio Imaterial do Brasil. O projeto foi aprovado para financiamento através do Funcultura e será iniciado ainda este ano.
“A ideia primeira é levantar o histórico. Já encontramos alguns registros. O mais antigo encontrado até agora é o do folclorista pernambucano Pereira da Costa (1851-1923), que no livro Folclore Pernambucano traz um relato do viajante português Tollenare, que passou por Pernambuco em 1817 e registrou uma brincadeira de homens e mulheres, e representações do urso e do caçador num pátio de uma igreja no Recife”, conta Mário Ribeiro, coordenador da pesquisa que pretende suprir uma lacuna nos estudos sobre os ursos na contemporaneidade.
A pesquisadora e antropóloga norte-americana Katherine Royal Cate (1927-2006), conhecida como Katarina Real, é a responsável pelos principais textos sobre a origem dos ursos de Carnaval. Na década de 1960, Katarina morou no Recife e fez parte da Comissão de Folclore de Pernambuco. No texto A La ursa – Os ursos do carnaval do Recife, ela afirma: “Não há dúvida de que o urso ‘veio da Itália’. Italianos com ursos dançando, ora indo pelas cidades do interior, ora se exibindo em circos foi uma coisa comum no Brasil de ontem. E em todos os ursos que pesquisei, o povo fala ‘do italiano’”.
HOMENAGENS
A influência do circo é celebrada este ano pelo Urso Cangaçá, com homenagem a Índia Morena, artista circense de 73 anos, que detém o título de Patrimônio Vivo de Pernambuco. A agremiação desfila na terça-feira de carnaval, na Avenida Nossa Senhora do Carmo, no centro do Recife, onde é instalado o polo dedicado aos ursos do Grupo Especial. Os desfiles do concurso das agremiações dos grupos 1 e 2 e do Grupo de Acesso também acontecem na terça-feira, a partir das 15h, nos polos da Estrada Velha do Bongi e na Avenida do Forte. As agremiações ainda são escaladas pela gestão municipal para animar os polos oficiais e comunitários nos outros dias da folia.
Este ano, 23 ursos participam da competição, entre eles o Urso Mimoso de Afogados, o Urso Brilhante do Coque e o Urso Branco da Mustardinha, que, nos seus nomes, já trazem suas marcas de origem nos subúrbios recifenses. Mas há também representante sertanejo que vem ao Recife participar do concurso. É o caso do Urso Pé de Lã de Arcoverde.
De acordo com Aelson da Hora, presidente da Federação Cultural de Bois e Similares, existe dificuldade de catalogação dos ursos, pois muitos grupos não são registrados oficialmente. A federação abrange mascarados como ursos, caretas, caiporas e papangus, e ainda pastoris, reisados e cavalos-marinhos. Aelson estima que existe mais de uma centena de ursos em Pernambuco, do Litoral ao Sertão, e afirma que a entidade iniciou uma catalogação dos bois e pretende dar continuidade com os ursos.
O Catálogo das agremiações carnavalescas, lançado em 2010 pela Prefeitura do Recife e pela Associação de Maracatus de Baque Solto, reúne, por exemplo, textos sobre 100 grupos, os principais das diversas modalidades. Entre eles, constam históricos de seis ursos: Branco do Zé, Cangaçá, da Tua Mãe, Zé da Pinga, Texaco e Teimoso da Torre. O Texaco é um dos mais antigos em atividade. Foi fundado em 1958 por Albérico Simões e amigos, quando estavam num bar em frente a um posto de gasolina, no Bairro de Campo Grande – por isso o nome da companhia de petróleo.
Apesar do nome, o Urso Traíra da Guabiraba não informa de qual bairro sai, para evitar multidão e permanecer uma brincadeira de amigos. Foto: Rodrigo Lobo
Com a morte de Albérico, o urso foi refundado em 1999 e passou para o comando de Degenildo Trajano, atualmente com 49 anos. O Texaco tem sede em Chão de Estrelas, atual residência do seu presidente, um autêntico brincante. Degenildo já fez parte de agremiações tradicionais, como o Maracatu Estrela Brilhante, o Maracatu Leão Coroado e o Caboclinho Sete Flexas, além de ter ajudado a fundar novas troças em Chão de Estrelas. De acordo com ele, o Texaco, que já foi campeão do Grupo 1 em 2015, desceu para o Grupo 2 devido a um problema com transporte, que inviabilizou o desfile. Este ano, o Texaco aposta nas cores dos principais times de futebol do Recife – Sport, Náutico e Santa Cruz – para tentar voltar ao Grupo 1 e, talvez, o urso tenha uma composição inédita. “Ainda estou tentando compor uma música nova. Mas, caso não consiga, tocaremos as antigas, pois temos 12 marchas, que eu mesmo inventei”, conta Degenildo.
O analista de sistemas Palula Brasil, 38 anos, também é compositor e este ano toca pela primeira vez com a La Ursa Traíra da Guabiraba, durante o período momesco. Apesar do nome, Guabiraba, o grupo sai de outro bairro, numa tentativa de despistar outros foliões, já que os fundadores querem manter a brincadeira sem multidões. O urso foi fundado em 2015, após o Carnaval, em parceria com a produtora cultural Carol Vergolino e o incentivo de vários amigos. Palula foi fundador do Urso Traquino, mas, há sete anos, tinha saído da agremiação. Com a chegada da sua filha, Nina, o folião se sentiu estimulado a criar um novo urso, para que ela pudesse vivenciar a brincadeira desde a infância.
Novos ursos também surgiram no sítio histórico de Olinda e no Bairro do Hipódromo. O Urso-Preguiça, criado em 2010 pelo designer e produtor cultural Leo Antunes, inova por ser carregado numa rede durante o desfile pela Estrada do Bonsucesso, em Olinda. Já a La Ursa do Hipódromo, inventada por Rafael Angelo e Olga Wanderley em 2012, nos moldes de uma brincadeira entre amigos, tem sua máscara de papel machê confeccionada de forma coletiva, dias antes de sair da praça do bairro pedindo dinheiro aos moradores da vizinhança.
PECULIARIDADES
O urso de Palula Brasil sai às ruas com músicas compostas com Maria da Paz Brasil, sua mãe. “As marchas são simples, curtas, com poucos acordes e sem introdução. Na La Ursa Traíra, vamos tocar as marchinhas e as composições que fazemos com elementos modernos. O hino conta a história da La Ursa Traíra, que veio da Romênia, depois de dominada por um domador Ursari”, explica.
Os ursos costumam desfilar ao som de marchinhas, xotes, baião, polcas e xaxados. Na musicalidade, um traço peculiar é a presença da sanfona na orquestra. Entre os diversos tipos de agremiações carnavalescas, somente os ursos utilizam o instrumento de fole. O grupo musical é composto ainda por triângulo, pandeiro, reco-reco, ganzá, tarol e surdo. Alguns também usam violão, cavaquinho, banjo, clarinete e trombone.
O brincante Aelson da Hora e o historiador Mário Ribeiro também destacam a dualidade que existe no folguedo entre a ludicidade do animal peludo que atrai crianças e o teor sexual contido nas músicas. “Você encontra a picardia e letras com duplo sentido, que são hilárias e fazem rir. Alguns ursos têm nomes singelos e outros bem safados, isso é bem interessante”, diz Aelson. Mário pretende investigar essa questão no seu estudo: “A forma lúdica de ter uma pessoa fantasiada de urso e que brinca atrai muitas crianças, é uma brincadeira ingênua. Já em alguns grupos, o urso ganha a conotação de amante da mulher. Nos subúrbios, alguns ursos trazem uma mulher de biquíni ao lado. Essas são vertentes que vamos estudar na pesquisa”.
Além do profano, a religiosidade também permeia as agremiações carnavalescas como maracatus, escolas de sambas, clubes de frevo. “Toda agremiação carnavalesca tem uma certa ligação com a religiosidade, qualquer que ela seja. O urso, em particular, não tem tanta ligação. Mas sempre há uma entidade da Jurema ou do Candomblé que apadrinha seus desfilantes, como o Urso Branco do Zé, cujo padrinho é Zé Pilintra”, afirma Albemar Araújo, coordenador do concurso.
Aelson acrescenta que, “entre as correntes dos cultos, os ciganos e os mestres são os que dominam os ursos. Mas falar do religioso ainda não é uma questão fácil, pois esses cultos foram muito marginalizados e até criminalizados. Então, nem todos se sentem libertos a falar sobre isso. É raro encontrar um grupo que vá para a rua e não tenha uma relação religiosa, muitos dizem ter uma ligação cristã. Existem bois e ursos que fazem culto a Nossa Senhora, por exemplo”.
Ao ser questionada sobre a religiosidade, Cristina Andrade responde: “Eu costumo dizer que o Urso Cangaçá é católico. Quando eu saio, eu rezo, todo mundo reza. Não envolvo outra religião na brincadeira”. Já o Urso Zé da Pinga, com vários prêmios, tem origem na Jurema Sagrada (tradição afro-indígena). Foi criado no Centro Ilê Axé Oxóssi Gongobira, em 1985, no Bairro do Pina, zona sul do Recife. “Surgiu de uma brincadeira da entidade Zé da Pinga. Temos o Maracatu Porto Rico. Minha mãe Elza é a presidente e a rainha, e ela recebe essa entidade, Zé da Pinga, um mestre que fez muitas caridades. No dia 2 de agosto, a gente sempre faz a sua festa, e ele dizia ‘Bebete (entidade Elizabete) tem o maracatu e Zezinho não tem nada’. Então, a gente disse: ‘Se fizéssemos uma brincadeira para o senhor, o senhor gostaria?’ Ele disse: ‘Zezinho vai adorar’. Perguntamos: ‘O quê?’ Ele disse: ‘Como Zezinho gosta de mulher, é o urso’”, relembra Edileuza Lira da Silva, 60 anos, entre risadas.
Presidente do Zé da Pinga, ela é funcionária pública aposentada. Este ano, lamenta o urso não participar do concurso carnavalesco, pois perdeu o prazo de inscrição devido a uma cirurgia. Mas ela garante que Zé da Pinga vai às ruas: “A gente leva o urso com muito carinho, porque sabe que o mestre adora, e ele diz para a gente não brigar com ninguém, levar o Urso de ‘Zezinho Bonito’ e as casadinhas sempre vestidas para não aparecer as vergonhas e as pernas. O carinho e o amor são tão grandes, que não tenho nem como explicar”, declara Edileuza.
MUDANÇAS
Os ursos, assim como outras agremiações, passam por transformações ao longo do tempo. Albemar Araújo, atual coordenador do concurso, acompanha a competição desde 1975 e percebe as mudanças que ocorrem na busca por um título. “A evolução observada nos ursos é notória, posto que alguns chegam a aproximar-se de verdadeiras troças carnavalescas. Alguns deixam peculiaridades e singelezas para adentrar no universo de grandes desfilantes. Isso é complicado, visto que podem perder suas características. No entanto, o concurso prima por tentar deixar o urso o mais original possível.”
O historiador Mário Ribeiro aponta que as mudanças são naturais e têm influência de outras modalidades. “Houve uma maior sistematização do concurso a partir dos anos 2000. Os grupos passaram a participar dos seminários que a Fundação de Cultura Cidade do Recife promovia e acompanhavam a elaboração de temas das outras agremiações, passando a incorporar isso. Antes, a homenagem dos ursos vinha só na faixa. Depois, eles passaram a aprimorar isso na música, nas fantasias. E, quando um grupo ganha, como o Cangaçá, por tantos anos, serve de modelo para os outros”, diz.
Entre as transformações observadas por Mário, estão a preocupação com a criação de composições próprias a cada ano, a criação de alas e uma maior dedicação ao acabamento das fantasias. Aelson pontua sobre a plasticidade da roupa: “As la ursas eram feitas de estopa, com retalhos que eram costurados ou amarrados em forma de tiras, o que dava um movimento, uma beleza, um colorido muito bonito. Hoje em dia, eu considero uma perda dessa origem aqui, na capital, a utilização do veludo e da pelúcia. Eu sinto saudade”.
E com simpatia e safadeza, as la ursas estão soltas mais uma vez nas ruas neste Carnaval. A brincadeira pode ser descompromissada, valendo uns trocados ou uns prêmios de concurso, mas a alegria e a rebeldia sempre estarão soltas por aí. A la ursa é cigana, é circense, é maloqueira. Pode vir da Itália, da Romênia, de Água Fria, do Pina, de Chão de Estrelas, a la ursa vai chegar. E ai de quem for pirangueiro.
FLORA NOBERTO, jornalista, formada pela Unicap, atua na área cultural desde 2006.