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Rabada: uma aula de técnica de cozinha

De origem portuguesa, presente no cardápio popular brasileiro e de preparo complexo, o prato vem sendo uma das apostas dos chefs para ingressar na alta gastronomia

TEXTO Eduardo Sena

01 de Fevereiro de 2016

Rabada começa a cair no gosto dos chefs da alta gastronomia

Rabada começa a cair no gosto dos chefs da alta gastronomia

Foto Sérgio Lobo

Opulenta em gorduras saturadas, pesada, refeição para muita gente e que pede repouso – se possível, na horizontal e com ar-condicionado ligado no máximo. Por muito tempo, a rabada pairou no imaginário comestível sempre associada a esse leque monocórdico de predicados. A receita era sinônimo de lábios engraxados com gloss de origem animal, sempre escoltada por uma farinheira com molho de pimenta. “Comida para os fortes”, advertem os mais antigos, que hoje se admiram ao perceber que o corte do rabo do boi cozido pode virar um hambúrguer em um food truck da cidade; um bolinho, em um pub da Zona Sul; quiçá se tornar um risoto, num restaurante classudo.

Mas, obviamente, nem sempre foi assim. A receita, segundo a pesquisadora gastronômica Maria Lecticia Cavalcanti, tem sotaque belga. “Há um cozido muito famoso por lá chamado hochepotfeito com rabo de boi, vitela e presunto com osso. O europeu, por ter vivido em conjuntura de guerras e escassez de comida, nunca desprezou cortes menos nobres. Chegou ao Brasil com o colonizador português, que, procurando recriar aqui o meio de sua origem, nos ensinou a temperar carnes e cozinhá-las em caldo”, registra a dona da cadeira de número 23 da Academia Pernambucana de Letras.


Colágeno da gordura promove o artifício da liga, sem precisar de muita farinha.
Foto: Divulgação

Igualmente europeia, a sopa de rabo de boi, de DNA português, também pode ter sido o embrião da rabada que nos é familiar. “A gênese, de fato, está no conceito de cozido e há diversas combinações e matérias-primas, sendo ao mesmo tempo uma solução culinária camponesa e uma expressão de status gastronômico que reveste a cozinha rural a partir do século 19, no Brasil”, defende o pesquisador Carlos Alberto Dória. Praticante de uma cozinha afetiva, ou seja, aquela cuja relação de intimidade construída com o preparo é essencial na elaboração dos pratos, a chef Andréa Hunka é categórica quando resume a rabada a uma “iguaria grotesca”.

À frente do restaurante Roda, aninhado num prédio secular no Bairro do Recife, Hunka registra que do boi se aproveita tudo, e o rabo não escaparia. “Dele se cortam os tamanhos regulares, lava-se e tempera-se bem dosadamente, uma pitada daqui, uns pedacinhos de cheiros verdes, umas folhas de louro e a boa e velha cachaça de guarnição. Pode assustar, mas nem por isso deixa de ser encantador”, detalha a cozinheira. E, de fato, por muito tempo o preparo assustou os menos íntimos da receita. Mas bastou a famosa consultoria mundial Andrew Freeman & Co, que anualmente elenca o que deve ser hit nas principais mesas de restaurantes do mundo, eleger a rabada como tendência em 2014, para que os olhos dos cozinheiros se voltassem mais para o corte que, até então, só figurava nos cardápios mais tradicionais.

“Categoricamente, o rabo de boi é carne ‘de segunda’. E os restaurantes de alta gastronomia buscam a transformação desses ingredientes menos nobres em algo que surpreenda. O cozinheiro hoje cumpre uma função social de reeducar o comensal à mesa, fazendo-o comer aquilo de que ele tem preconceito”, opina o chef paraibano Onildo Rocha, comandante das panelas do Roccia Cozinha Contemporânea, em João Pessoa. Instalado em um hotel de luxo, o restaurante traz no seu menu um risoto de rabada.


Hambúrguer é um dos itens mais pedidos do cardápio do La Camioneta. Foto: Divulgação

“Risoto é um dos pratos que o brasileiro mais gosta de comer em restaurantes. Daí, quis fazê-lo com rabada justamente para seduzir, mostrando a versatilidade do rabo bovino”, explica. Onildo sublinha que essa opção é mais requisitada pelos muitos turistas que frequentam a casa do que pelo público local. “Ainda existe um ranço – dissolvido aos poucos com muito trabalho –, de que é um prato doméstico e sem valor.” A despeito do preconceito, o preparo vale como uma aula de técnica de cozinha. Não, cozinhar esse corte bovino para uma proposta gastronômica não é tarefa superficial como se supõe.

GUARDIÃ DO COLÁGENO
Primeiro, porque é um corte rico em gorduras, e uma das regras da cartilha da alta gastronomia é enxugar excessos, tornando-o mais digestivo e leve. Mais apresentável e estético, até. Uma espécie de suvenir do conceito original. “Para esse fim, precisa cozinhar lentamente, por cinco horas, de forma que toda a gordura se desprenda do osso, e depois segue para gelar por 10 horas. É aí que se vai iniciar o processo de gelatinização, quando esse sebo segue para a superfície em grossa camada, como gelatina, e é descartado”, ensina Rocha. Ainda assim, a proteína mantém um alto grau de colágeno, responsável por um sabor acima da média, quando o assunto é carne vermelha.

“É que, perto do osso, a carne é mais gostosa”, brinca a chef e consultora Taciana Teti, que mantém no Haus Bar, no Pina, uma entrada que consiste em bolinhos de rabada. “É uma carne que não tem como desossar, ou seja, ela vai ter que cozinhar necessariamente com o osso, o que garante um sabor único ao preparo. Não à toa, todos os caldos usados em restaurantes são produzidos a partir da estrutura óssea do animal. E toda essa gordura que se desprende traz bastante colágeno, que promove uma textura particular ao bolinho sem utilizar muito artifício de ‘liga’, como farinha de trigo ou ovo”, explica. Aliás, e a propósito, resumir um prato alentado, como uma rabada, a um bolinho é a nova diretriz gastrô da mesma Andrew Freeman & Co, que propõe uma “refeição de bolso”.


Risoto de rabada é hit no Rocica, restaurante instalado em hotel de luxo
em João Pessoa. Foto: Divulgação

Esse caminho vem sendo trilhado com sucesso pelo premiado chef Bruno Didier no seu food truck de comida espanhola La Camioneta. Parênteses: com berço na cidade de Córdova, rabo de touro é prato nacional na Espanha. “Como nossa proposta é de levar a alta gastronomia para as ruas, colocamos no nosso cardápio dois pratos com o corte, um hambúrguer e um croquete, que é um bolinho menor e menos sólido no interior, tem textura externa de crocância e é amanteigado”.

Didier relata que a grande maioria da clientela, ao identificar esses pratos, opta por eles logo de cara. “Mas há os que pensam duas vezes para pedir, por só enxergarem a rabada em uma possibilidade mais rootsentretanto, uma vez que provam, acabam se rendendo.” Para o cozinheiro, é preciso desconstruir essa ideia de prato pesado, que não digere bem. “Grande parte dessa gordura é colágeno que, após cocção, se transforma em gelatina, que é retirada. E o sabor é único”, defende.

O cozinheiro considera que o Brasil se adaptou bem a esse novo modismo – o de trazer para a alta gastronomia ingredientes de baixo valor representativo. “Acredito que todos os produtos têm o mesmo valor gastronômico, independentemente de seu valor comercial. Como diria Ferran Adrià (chef catalão, espécie de guru dos cozinheiros de todo o mundo), ‘melhor uma sardinha espetacular que uma lagosta medíocre’. A rabada é uma redenção de sabor intenso. Merece todas as mordidas”, finaliza. E, ao contrário de sua versão tradicional, pode ser refeição de rua, e para apenas um. 

EDUARDO SENA, jornalista com foco em gastronomia.

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