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"Esse esquecimento faz parte deste país"

Jornalista, biógrafa e viúva de Airton Barbosa fala sobre a trajetória do músico de Bom Jardim que integrou o Quinteto Villa-Lobos e a Orquestra do Theatro Municipal do Rio de Janeiro

TEXTO Carmem Lúcia Bandeira

01 de Fevereiro de 2016

Valdinha Barbosa

Valdinha Barbosa

Foto Guillermo Santi

Airton Barbosa (1942-1980) é pernambucano de Bom Jardim e foi para o Rio de Janeiro na década de 1960, ao ser selecionado, aos 17 anos, num concurso promovido pelo Ministério da Cultura de JK, cujo propósito era identificar jovens talentos na área musical, oferecendo a oportunidade de aprofundar o conhecimento e compor os quadros das orquestras sinfônicas da capital federal.

Único escolhido do Nordeste, o jovem já se destacava em sua cidade como um promissor saxofonista.Seguindo os conselhos do Maestro Mário Câncio, ao chegar ao Rio de Janeiro, buscou aproximação com o músico e professor Nöel Devos, que o orientou a optar pelo fagote. O encontro com Devos, na condição de aluno, resultou numa amizade que perdurou toda a sua vida, que, se foi breve no tempo (faleceu aos 37 anos), deixou um legado muito importante para a cultura brasileira.

Como fundador e integrante do Quinteto Villa-Lobos, realizou um importante trabalho de formação de plateias, divulgando a música brasileira, não apenas nas mais importantes salas de concertos do país, mas, sobretudo, em escolas, praças públicas, presídios, quadras de escolas de samba etc. Ao lado do seu mestre Noel Devos, integrou, por concurso, o naipe de fagotes da Orquestra do Theatro Municipal do Rio de Janeiro até o seu falecimento.

A admiração por esse músico surgiu desde que ouvi pela primeira vez o sopro do fagote que faz a introdução e acompanha Preciso me encontrar – composição de Candeia, interpretada por Cartola, incluída no clássico LP em que estão gravadas As rosas não falam, O mundo é um moinho, Alvorada, entre outras, igualmente belas e impregnadas de lembranças de um período político muito intenso, que indicava os primeiros sinais da abertura.

Mas foi somente no início do ano 2000 – quando nos emocionávamos mais uma vez ao ouvir a versão referida de Preciso me encontrar numa radiola de ficha –, que descobri que se tratava de um músico pernambucano, engajado na militância política e, por essa razão, alimentaria a lista dos desaparecidos políticos da ditadura militar. A revelação me deixou profundamente intrigada, principalmente por desconhecer um dado de tamanha relevância, que não teve nenhuma repercussão à época, no movimento local de luta pela anistia. E também por não saber que o nome dele constasse da lista dos desaparecidos políticos aqui no estado.

Iniciei uma pesquisa com a amiga Luzete Pereira, que escreveu um texto postado em sua página, no Portal Luiz Nassif, À procura de Airton Barbosa, no qual menciona “um silêncio ensurdecedor” contido nas informações sobre a sua biografia, que não permite esclarecer as causas de sua morte e instiga a continuidade da investigação, para que se restabeleça a verdade sobre a memória desse grande talento pernambucano. Foi então que cheguei até a página de Valdinha Barbosa (viúva do Airton), no Facebook, e, a partir daí, iniciamos uma correspondência, que começou meio tímida, como num jogo de reconhecimento de territórios, de ambas as partes, e aos poucos foi se consolidando ao ponto de possibilitar esta entrevista.

Assim, o sopro do fagote em Preciso me encontrar, além de responder à nossa pergunta, foi a chave que abriu as portas para a descoberta de sua família – Valdinha, Juliano e Daniel – que, em paralelo às luzes das ribaltas, faz a sua travessia ao longo do tempo, cultivando o legado e honrando a memória desse grande músico.

CONTINENTE Você, que foi casada e teve filhos com Airton Barbosa, como define o homem e o artista que ele foi?
VALDINHA BARBOSA Rememorar o Airton – embora 32 anos sejam passados – conduz-me sempre ao mesmo sentimento de uma perda irreparável. Um sentimento que extrapola a dor da perda do amigo de infância e do companheiro com quem fui casada por 11 anos e do amoroso pai dos meus dois filhos, e que se aprofunda enormemente pela precocidade do acontecido. Ao falecer, aos 37 anos, Airton, embora tenha deixado uma extensa biografia, apenas iniciava o desabrochar de seu excepcional talento e de sua abrangente visão sobre a cultura do nosso país. Oriundo das classes populares, foi um batalhador incansável, um brasileiro apaixonado pelo Brasil, por nossa terra, por nossa gente. Grande parte de sua juventude, como aconteceu com tantos outros brasileiros, ele a viveu em regime de contenção de sonhos, amordaçados que foram pelo sistema político do Brasil, nos infindáveis anos de ditadura. Hoje, submergindo a cada lembrança, a cada comentário, essa dor, que não raro se expande em lágrimas, num misto de saudade e ainda de inconformismo, conduz-me sempre ao imponderável, a uma falta incomensurável: do Airton que foi, daquilo que ele poderia vir a ser.


Airton Barbosa. Foto: Reprodução

CONTINENTE É verdade que ele foi sequestrado numa rua do Rio, quando saía do ensaio da orquestra e desapareceu sem deixar rastro?
VALDINHA BARBOSA É verdade, sim; ele foi sequestrado na rua, quando saía do ensaio da orquestra. Foi um momento muito doloroso para nós, mas ele não é um desaparecido político. Foi preso por algumas semanas, mas depois o soltaram. Poucos anos depois, em maio de 1980, faleceu de um câncer no sistema linfático.

CONTINENTE Você pode falar um pouco sobre a carreira musical do Airton em Bom Jardim? Como ele se interessou pelo saxofone? Com quem aprendeu a tocar?
VALDINHA BARBOSA O Airton se iniciou na música com o Mestre Teté (Manoel Pessoa dos Santos) e, pouco tempo depois, sob a batuta desse grande músico bonjardinense, já se destacava como saxofonista na banda do Grêmio Lítero Musical Bonjardinense. No Salve a Retreta – concurso de bandas do interior, transmitido pela Rádio Clube de Pernambuco –, Airton chegou a executar aquele famoso solo de Vassourinhas, imortalizado pelo Felinho, um grande saxofonista pernambucano. (Esse solo, aliás, hoje em dia, anda esquecido nas orquestras de frevo, talvez por conta da grande dificuldade técnica.)

CONTINENTE Bom Jardim, como diz você, é uma terra fértil na produção de talentos musicais, principalmente nessa linha, de instrumentistas de sopro, música de orquestra, pois ali também nasceram Dimas Sedícias e Levino Ferreira. De onde vem, em sua opinião, essa vocação musical de Bom Jardim? Tem alguma razão especial que impeliu o interesse desses grandes músicos para esta vertente musical?
VALDINHA BARBOSA A banda de música, no Brasil, sempre foi um grande celeiro de músicos. Importantes instrumentistas brasileiros vieram desse movimento. Mas o curioso em Bom Jardim é que a música é uma arte que toca profundamente a alma de muitos de seus habitantes. Uma coisa mágica! Uma energia telúrica, que se expande sob a forma de talentos musicais em abundância, mas que necessitam de fertilizante para frutificar. Grosso modo, pode-se afirmar que, em Bom Jardim, quem não é músico é amante da música. É claro que, atualmente, como acontece em todas as cidades brasileiras, a música comercial, de consumo fácil, também atingiu em cheio o coração da cidade, com efeitos devastadores para as tradições locais, em todos os níveis. O que é uma pena! Bom Jardim foi local de manifestações populares com conteúdos musicais muito fortes, como o cavalo-marinho, o coco de roda, o caboclinho, o mamulengo, as bandas de pífanos, os grupos de choro, além de bandas de música que, durante anos, formaram músicos que engrandeceram o nome da cidade, como os nomes acima referidos e muitos outros igualmente talentosos que se destacaram na região. Ser músico da banda, ostentar aquele uniforme, representou, durante longos anos, algo muito valoroso para os rapazes da cidade, que se alimentavam da aprovação geral da sociedade. Embora fosse vedado às meninas, o acesso à banda era um espaço extraordinariamente democrático, não existindo qualquer distinção de cor, credo, classe social, ou partido político. Tudo junto e misturado, sem discriminação. A mais valia era representada pelo talento, pelo desejo, pela dedicação. Quem sabe não seja esse o segredo? No entanto, nos últimos tempos, por um longo período, o acirramento das lutas político-partidárias na cidade também contaminou o ambiente musical, inibindo essa forte energia telúrica da música no território bonjardinense.

CONTINENTE Quais as circunstâncias que levaram Airton Barbosa a se mudar para o Rio de Janeiro? Antes de ir para lá, havia uma relação aqui com o maestro Mário Câncio, é isso? É verdade que esse maestro deu um importante conselho que ele seguiu à risca ao chegar ao Rio de Janeiro?
VALDINHA BARBOSA Airton conheceu o maestro Mário Câncio quando foi ao Recife para participar da primeira seleção do Concurso Jovens Talentos Musicais e acho que até teve algumas aulas com ele. Quando saiu de Pernambuco, depois de aprovado na última seleção aqui no Rio, teria que trocar o saxofone por um instrumento de orquestra sinfônica, e recebeu do maestro a seguinte orientação: “No Rio, não escolha apenas o instrumento. Escolha também o professor. Preste atenção em um professor chamado Noel Devos”. Seguindo à risca o sábio conselho do maestro, Airton escolheu o fagote e o francês Noel Devos como mestre. Já no primeiro encontro, foi amor à primeira vista.


Foto: Reprodução

CONTINENTE Sou uma admiradora do talento e da obra do Airton Barbosa, mas desconhecia este dado de sua biografia: a militância, o sequestro, que são relevantes e principalmente esse dado do desaparecimento, que precisa ser melhor esclarecido para os pernambucanos e para os brasileiros.
VALDINHA BARBOSA A prisão do Airton, por questões ideológicas, nesse triste período da ditadura militar no Brasil, foi muito traumática. A frieza com que foi abordado pelos seus algozes, encapuzando-o e levando-o para um local ignorado, com um desaparecimento por muitos dias, sem que pudéssemos identificar o seu paradeiro, apesar das muitas ações de busca por advogados, instituições e pelos muitos amigos que nos ajudaram, foi muito traumática. Quando do seu retorno – graças a ações de amigos, Airton não teve problemas com o seu trabalho na orquestra do Theatro Municipal –, a nossa vida “parecia” ter voltado ao normal, tudo o que mais queríamos na época era esquecer aquele incidente funesto. Quando veio a anistia, a abertura política e o início da redemocratização do país, veio o período da doença do Airton e do seu falecimento. A seguir, foi a dor da falta, sem retorno, e a luta pela sobrevivência, com os filhos para criar – novamente com a ajuda dos fiéis amigos. Logo após o seu falecimento, vivenciamos um período de muitas homenagens a Airton, sempre com a participação musical de seu mestre Noel Devos, (que, por um tempo, generosamente, integrou o Quinteto Villa-Lobos, enquanto o grupo se refazia da perda de seu fagotista) e de outros músicos amigos. Airton recebeu carinhosas homenagens de importantes instituições musicais do Rio de Janeiro. Em todos os jornais cariocas, houve publicação de reportagens, artigos e comentários de renomados jornalistas e críticos musicais da época. Compositores como Nelson Macedo e Ailton Escobar dedicaram composições musicais in memoriam. Com o passar do tempo, porém, as homenagens foram se espaçando e veio o esmaecimento da memória. Mesmo assim, algumas homenagens pontuais continuaram a ser realizadas, embora com pouca ou nenhuma repercussão na mídia, como a inserção do Airton no livro Sopros do Brasil; o CD Fagote Brasil, de Juliano (Barbosa) – uma homenagem aos 20 anos de falecimento de seu pai. No início deste ano, o nosso conterrâneo Bráulio de Castro prestou uma linda homenagem, em seu novo CD, com um choro dedicado a Airton, levado também em apresentação pública na Festa de São Sebastião, em Bom Jardim, inclusive com a participação de Juliano, ao fagote. De certa forma, para um país sem memória como o Brasil, e com uma mídia comprometida com o que está “na moda”, e é sucesso comercial, esse esquecimento até faz parte. 

CARMEM LÚCIA BARBOSA, jornalista e pesquisadora.

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