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'Algodão doce': Alegoria de um passado sofrido

Dramaturga Carla Denise, da companhia Mão Molenga, publica livro da peça, cujas histórias questionam paradigmas da Civilização do Açúcar

TEXTO Ulysses Gadêlha

01 de Fevereiro de 2016

Cenário é influenciado pelo universo da cana-de-açúcar

Cenário é influenciado pelo universo da cana-de-açúcar

Foto Sávio Uchôa/Divulgação

A companhia de teatro de bonecos Mão Molenga chega aos 30 anos neste 2016 com uma publicação elementar para o cenário cultural brasileiro. A dramaturga Carla Denise, integrante do grupo, lança o livro Algodão doce, peça baseada em três histórias de domínio público, tendo como pano de fundo a Civilização do Açúcar. O texto atua em várias frentes, inventariando a cultura do mamulengo, do cavalo-marinho, do maracatu rural e do caboclinho; entendendo também o lado amargo desse algodão que descende da escravidão, do patriarcado e da devastação ambiental. Fincada no teatro e na música, a peça é um manifesto que torna o público participante, um documento que registra esse esforço político coletivo.

São muitos os elementos em torno desse livro, que tem colaboração do diretor e integrante do Mão Molenga Marcondes Lima. É dele o artigo introdutório Enquanto se brinca a história se faz, que pondera sobre os brinquedos populares, o aspecto da tradição oral, dos mestres e da representação que esses folguedos fazem do povo nordestino, o homem talhado na palha da cana-de-açúcar e seus descendentes. Marcondes registra que o cultivo da cana surgiu em Papua, Nova Guiné, especificamente numa ilha do Oceano Pacífico e passaria por territórios árabes e europeus antes de se instaurar aqui no Brasil. Partindo desse recorte histórico da monocultura açucareira, ele encaminha o raciocínio à produção artística dos oprimidos, destacando o mamulengo, o cavalo-marinho, o maracatu de baque solto e o caboclinho. Os dois primeiros, pela feição cênica; os outros dois, pela dimensão da dança.


O grupo usa 20 bonecos, entre 50 cm e 1,80 metro, animados pela técnica mista, de luva e manipulação direta. Foto: Sávio Uchôa/Divulgação

A partir desse universo, Carla Denise recortou três narrativas: Comadre Fulozinha – um plantador de cana entra em crise e revê sua atitude em relação ao ambiente, após ter contato com a protetora das matas; As desventuras de Ioiozinho – filho de dono de engenho segue os passos do pai e, por suas brincadeiras maldosas, recebe um castigo infernal; e O negrinho do pastoreio – um pequeno escravo é salvo do martírio imposto pelo senhor de engenho e, nessa versão, consegue mudar o rumo de sua vida. Esses contos surgiram, primeiramente, do livro Assombrações e coisas do além, da escritora Fátima Quintas. Mas há uma imersão cênica nas produções intelectuais do sociólogo Gilberto Freyre, do historiador Leonardo Dantas Silva, dos estudiosos do teatro do povo do Nordeste Hermilo Borba Filho, Fernando Augusto Gonçalves Santos, Marco Camarotti, Marcondes Lima e Érico José.

A primeira encenação aconteceu em agosto de 2011, no Teatro Hermilo Borba Filho, no Recife. “O algodão-doce serve de alegoria para um passado no qual a aparência esconde processos difíceis e histórias de sofrimento e superação”, afirma a autora. Ela entende a proposta como um ato político, direcionado para o público infantojuvenil e seus pais. À maneira do teatro de Marcondes Lima, os entreatos são recheados de canções originais e tradicionais, transcriadas pelo artista Henrique Macêdo, referentes aos folguedos populares. São cantos religiosos, de trabalho, de brincadeiras infantis e toadas. Conforme diz o livro, são 20 bonecos, entre 50 cm e 1,80m, confeccionados pelo Mão Molenga, animados pela técnica mista, de luva e manipulação direta.


Mão Molega é integrado por Marcondes Lima, Fátima Caio, Carla Denise (autora) e Fábio Caio. Foto: Sávio Uchôa/Divulgação

Em cena, os manipuladores devem ser maquiados e vestidos como cortadores de cana. Os elementos cenográficos, próprios de brincadeiras populares, como as lançadas do maracatu de baque solto e os arcos do cavalo-marinho. “Tons, texturas e outras qualidades plásticas que lembram o açúcar de todos os tipos e outros derivados, como o melaço, a rapadura e o caramelo, aparecem nos figurinos usados pelos bonecos”, detalha. Diversas imagens do Mão Molenga em ação e do universo da cana-de-açúcar estão distribuídas em duas partes do livro.

Nas primeiras linhas da publicação, Carla Denise versa sobre a atualidade da sua obra, quando traça o paralelo entre os atos de racismo na internet e o precedente histórico desse comportamento, registrado na narrativa O negrinho do pastoreio, fixada desde cedo no nosso imaginário. “Continuo acreditando na importância de unir provocação e arte, principalmente para as pessoas em formação. O teatro, uma expressão viva e ao vivo, tem sido um maravilhoso espaço de troca para Algodão doce”, acredita Denise. 

ULYSSES GADÊLHA, estudante de Jornalismo e estagiário da Continente.

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