FOTOS DANIELA NADER
01 de Janeiro de 2016
O Mundo Lá de Casa fica no Bairro da Encruzilhada, Recife
Foto Daniela Nader
Olhando de fora, ninguém diz, mas em um apartamento amplo e antigo no Bairro da Encruzilhada, no Recife, funciona um restaurante. Ao subir uma rampa para chegar ao primeiro andar do prédio, a porta se abre e é possível ver um salão com mesas e cadeiras coloridas, e instrumentos musicais pendurados na parede toda desenhada com giz. Ao lado do menu de bebidas, o quadro-negro pode trazer um poema ou palavras de apoio aos movimentos sociais. Em outro ambiente, mais uma mesa, a maior de todas, separada da cozinha doméstica apenas por uma estante de caixotes de madeira e garrafas com flores.
Ou seria melhor dizer que se trata de um “antirrestaurante”? Essa é a ideia das três donas da casa: a pediatra Lu Rodrigues, a enfermeira Jacque Farias e a doula Manu Duque. Quando a mãe de Lu, Maria Rodrigues, se formou em Gastronomia, em 2013, a filha ficou pensando em como ela poderia colocar em prática tudo que aprendeu, sem necessariamente ter que estar à frente de uma cozinha profissional. Maria convidou seu colega de turma Vinícius Arruda para acompanhá-la no comando das panelas e ele topou na hora. O Mundo Lá de Casa passou a abrir todas as quintas-feiras, com um menu diferente a cada semana.
O espaço abriga pocket-shows
As amigas já dividiam apartamento desde 2012 e sempre recebiam amigos em casa. Somou-se a isso o fato de todas terem vontade de vivenciar algo diferente da profissão. “A gastronomia é a arte mais completa, mexe com todos os sentidos”, opina Lu. Chegaram a pensar em abrir um bistrô, mas se depararam com a burocracia. Também não queriam comprometer o fim de semana – nem as idas de Maria à casa de praia. Então, abriram as portas de casa mesmo. A pré-estreia foi em dezembro de 2013, apenas para a família e alguns “amigos críticos”.
Depois, além dos amigos, começaram a aparecer os amigos dos amigos. Antes do agendamento, elas pedem que as pessoas se apresentem por e-mail, falando um pouco de si. De volta, respondem sobre o funcionamento da casa: “A proposta é que vocês dividam a conta conosco, somando ingredientes, subtraindo gorjetas e impostos, multiplicando pelo prazer de comer bem e dividindo pelo número restrito de reservas”. A conta sai por R$ 90 por pessoa para uma refeição de cinco etapas. Cada casal pode trazer um vinho, mas água e café coado na hora são por conta da casa. Na assinatura da mensagem, um desejo: “Que seja doce!”.
No começo, Lu lembra que muitos amigos se preocuparam com a novidade. Elas iriam mesmo aceitar cheques e transferências bancárias? E os convidados usariam o banheiro delas mesmo? “A gente está abrindo a porta da nossa casa e não vai confiar num cheque?” Nenhum contratempo digno de nota ocorreu até agora. As boas histórias para contar, ao contrário, vêm se somando. Desde os vizinhos que agendaram um jantar e só se identificaram no final da refeição até o marido da chefe de uma delas que emprestou um aparelho de ar-condicionado para o salão, sem data para devolução.
COZINHA AFETIVA
Para Jacque, a ideia de antirrestaurante vai além do pagar-e-consumir que acontece em um estabelecimento convencional. A relação é de colaboração, com os convivas dividindo a conta e os pratos saindo de um fogão simples, de quatro bocas. “A experiência mostrou que eles se sentem fazendo parte. As pessoas precisam disso, elas querem afetividade”, afirma. Alguns dos convidados – pois talvez a palavra cliente soe meio estranha por aqui – chegam a compartilhar o vinho trazido de casa com outras mesas. Não é incomum que amizades comecem no local, que abriga 20 pessoas.
Chefs Vinícius Arruda e Maria Rodrigues comandam a cozinha
Em raras ocasiões, como quando a casa é fechada para um aniversário, aparecem pessoas que não captam bem a proposta. Responsável pela recepção e atendimento dos comensais, Manu não troca as taças a cada novo vinho, por exemplo, pois o enxoval não tem taças sobrando. Quando alguém reclama, ela se acocora e explica tudo pacientemente. “É preciso ter disposição de acolher o outro, mas dá certo e a gente consegue chegar junto. No final da noite, muitos já querem remarcar a volta.” Há também quem se sinta tão em casa, que já chega tirando os sapatos e ficando descalço a refeição inteira.
Para receber O Mundo Lá de Casa, o apartamento alugado sofreu algumas adaptações. A cozinha, que já era o centro da casa, ganhou mais privacidade depois da reforma de baixo orçamento e com aproveitamento de objetos pré-existentes. “A gente queria fazer com que as pessoas vissem ser possível fazer isso em casa, retomar essa ideia de receber. Hoje em dia, tudo é feito em casa de festa”, afirma Lu, que não planejava ganhar dinheiro com o restaurante. “Agora, ele já paga uma parte da passagem da nossa viagem de férias.”
Como a ideia é ter também um lado B para a ocupação profissional, no restaurante, cada uma faz o que gosta. É o caso de Jacque, responsável pela produção musical d’O Mundo Lá de Casa. “É ótimo ter 20 pessoas para me ouvir”, diz ela, que também convida amigos músicos para se apresentar. Vez por outra, a música deixa de ser trilha sonora das quintas-feiras e vira pocket show às sextas. “É uma proposta bem intimista, para poder ser ouvida de fato”, explica.
Em volume baixo, para não incomodar os vizinhos. Eles, que eram a principal preocupação quando tudo começou, terminaram virando parceiros da história. Jacque conta que muitos não faziam ideia do que acontecia no apartamento. No aniversário de um ano, convidaram os vizinhos para jantar. “Algumas pessoas chegaram sem entender nada”, lembra Lu, que pede para os convivas não fazerem check-in em redes sociais para não expor o condomínio residencial.
MENU CONFIANÇA
Dependendo do tamanho do grupo, o tempo de espera por uma mesa pode ser de três meses. Por isso, o menu termina sendo uma surpresa, já que é definido com alguns dias de antecedência. “Maria não dorme, se não testar tudo antes”, entrega Lu. Sua mãe responde pelo couvert e pela sobremesa em todos os encontros, e eventualmente também pela entrada. Os pães, de fermentação natural, ficam a cargo de Guilherme Guerra, que chegou à casa numa noite em que substituiu o amigo Vinícius e hoje aproveita o espaço para testar receitas.
O cardápio varia a cada semana. O couvert pode ser manteiga maître d’hôtel (com salsinha e limão), berinjela siciliana, creme de provolone e ricota com pães artesanais. Como petisco, bacon e guaca (salada com guacamole, pimenta-caiena, crocante de bacon e crispy de cebola), seguido pela entrada nhoque púrpura (nhoque de inhame roxo com molho de queijo azul). E um salmão crostado (salmão selado com crosta de gergelim e purê de batata-doce com raiz-forte e molho de mel defumado) como principal, seguido pela sobremesa delícia tropical (abacaxi grelhado ao rum com sorvete de coco e chutney de manga).
Vinícius conta que nunca monta o menu com a antecedência que gostaria. “É um processo muito intuitivo e caótico. Estou sempre lendo livros de gastronomia ao mesmo tempo e vou me alimentando de ideias e conversas.” Como a casa não tem estoque e trabalha com a quantidade exata de insumos, tudo precisa ser calculado. Ele comenta que busca valorizar os produtos locais, mas sem regionalismos, e diz que aprendeu muito com a avó de Surubim, no interior de Pernambuco. Ela já foi à casa e aprovou, mas estranhou a sopa espanhola gazpacho, servida gelada.
Quando a trupe entra em férias, coloca avisos nas redes sociais e fecha as portas temporariamente. “Mas o Mundo ficou tão entranhado na rotina da gente, que fica até estranho quando não tem”, afirma Vinícius. A quarta e mais nova moradora da casa, a analista de sistemas e fotógrafa Virgínia Melo, também passou pela mesma crise de abstinência: fez um curso que durou seis quintas-feiras e sofreu de saudade da sala cheia. “Essa delicadeza de receber em casa é um aprendizado incrível”, diz ela.
Em breve, O Mundo Lá de Casa vai girar por outras paragens: as meninas se mudam para uma casa com quintal na Vila do Hipódromo, perto dali, em um espaço um pouco maior e mais isolado. A ideia é manter as quintas-feiras, com eventuais edições extras dos jantares, e continuar com o espírito de comunidade, até mesmo reunindo mais gente. “Queremos ampliar para o espaço ser mais coletivo do que já é”, explica Lu. “A gente acredita muito nesse formato de partilha”, sintetiza Jacque. Impossível passar pelo local e não se sentir também partilhando desse convívio.
RENATA DO AMARAL, jornalista, professora, doutora em Comunicação e autora de Gastronomia: prato do dia do jornalismo cultural.