Se o racismo encontrava nos tribunais legitimidade, no cinema, ele era institucionalizado, relegando aos afrodescendentes papéis estereotipados, quase sempre de serviçais, o que só reforçava a ideologia excludente que ainda dividia os Estados Unidos décadas após o fim da escravidão. Tome-se por exemplo Hattie: dos 94 papéis pelos quais foi creditada, 74 eram de empregadas domésticas ou escravas. Questionada por grupos ativistas do movimento negro sobre a razão pela qual continuava a aceitar esse tipo de personagem, ela disse: “Prefiro ganhar US$ 700 por semana interpretando uma empregada do que ganhar US$ 7 sendo uma”. O Oscar, como prêmio máximo da indústria cinematográfica, refletia essa realidade e manteve um relacionamento problemático com a comunidade negra, ignorando-a por décadas e falhando em reconhecer o talento de seus artistas.
“Pode-se dizer que existe um racismo institucionalizado (em Hollywood) que faz com que os atores negros ocupem principalmente papéis secundários, quando não estereotipados. Nesse contexto, as mulheres negras acabam sendo representadas em menor número e, principalmente, com menos destaque”, afirma o doutor em Comunicação Deivison Cézar Campos.
O tema da exclusão dos afrodescendentes em papéis de destaque nas grandes produções voltou às manchetes quando Viola Davis venceu o Emmy de melhor atriz em série dramática, em setembro de 2015, tornando-se a primeira negra a ganhar na categoria, em quase 50 anos da premiação. “A única coisa que separa mulheres de cor de qualquer outra pessoa é oportunidade. Você não pode ganhar um Emmy por um papel que simplesmente não está lá”, afirmou. “A repercussão da obviedade dita por Viola Davis deveu-se mais ao desconforto causado por desnaturalizar essa invisibilidade do que por se tratar de uma novidade”, complementa Deivison.
A atriz Halle Berry é a primeira negra a receber o Oscar de melhor atriz, por A última Ceia, em 2002. Foto: Divulgação
Os dados estão aí e só não vê quem não quer: de acordo com uma pesquisa da Escola de Comunicação e Jornalismo USC Annenberg (EUA), dos 700 filmes que mais lucraram entre 2007 e 2014, apenas 30,2% dos personagens com fala eram mulheres. E dos 100 filmes mais vistos em 2014, 73,1% dos papéis eram interpretados por artistas brancos.
BLACKSPLOITATION
Da histórica vitória de Hattie McDaniel até a de Whoopi Goldberg, em 1990, por Ghost, única não branca no trio de protagonistas do filme, também como atriz coadjuvante, houve um hiato de 50 anos sem que uma negra levasse para casa a estatueta dourada. Posteriormente, seria preciso mais de uma década até que o prêmio fosse novamente para as mãos de uma mulher negra. Desta vez, em 2002, Halle Berry entrou para os livros de história como a primeira atriz negra a ganhar o Oscar de Melhor Atriz por sua atuação em A última ceia. Naquele ano, outro fato inédito: além de Berry, Denzel Washington foi eleito melhor ator, fazendo com que, pela primeira vez, dois afro-americanos tivessem seus trabalhos reconhecidos nas categorias principais da premiação.
Como se pode observar, o caminho para o estrelato, no caso dos artistas negros – e ainda mais especificamente no caso das mulheres afrodescendentes –, é tortuoso. Exceções conseguiam “furar” a barreira que Hollywood impunha. Alguns papéis mais diversificados, a maioria de coadjuvantes, começavam a surgir, assim como poucas oportunidades de estrelato. O musical Carmen Jones (1954), estrelado por um elenco composto apenas por negros, protagonizado por Dorothy Dandridge, foi um sucesso e rendeu à protagonista a primeira indicação de uma negra à categoria de melhor atriz.
Filme de ação Foxy Brown consagra atuação de Pam Grier. Foto: Divulgação
Ao longo das décadas de 1960 e 1970, principalmente com as conquistas do movimento pelos direitos civis dos negros, que acabou com a legalidade do sistema segregacionista nos EUA, a representação dos negros nos filmes e na televisão começa a se diversificar, ainda que muito timidamente, principalmente devido ao fortalecimento de nichos de mercado. Dentro desse contexto, surge o Blacksploitation, movimento que, entre outras mudanças, deu protagonismo às mulheres negras em filmes de diferentes conteúdos, inclusive os de ação, como é o caso de Foxy Brown, que imortalizou Pam Grier.
“É o primeiro movimento organizado de combate ao racismo no campo do entretenimento audiovisual. Ele tem essa relevância histórica inquestionável de ter aberto um caminho e gerado alguns ícones importantes”, pontua o professor de Cinema da UFPE Rodrigo Carreiro. “Do ponto de vista político, ofereceu elementos de identificação e produziu um imaginário afrorreferenciado que apoiou o processo de ressignificação de ser negro nos Estados Unidos”, complementa Deivison.
Em 1972, pela primeira vez, duas afrodescendentes foram indicadas ao Oscar de melhor atriz: Diana Ross, por Lady sings the blues, e Cicely Tyson, por Sounder. Ao longo da década de 1980 e 1990, intérpretes como Diahann Carrol, Oprah Winfrey, Margareth Avery e Angela Bassett também receberam indicações por papéis que já ensaiavam (e em alguns casos conseguiam) fugir dos estereótipos.
Série de TV Empire é protagonizada por atores negros. Foto: Divulgação
Na categoria de melhor atriz, no entanto, de 1993 a 2001, quando Halle Berry levou a estatueta, nenhuma negra chegou sequer a ser indicada. A representação das mulheres de cor continuava mínima nos filmes, com algumas exceções dignas de nota, a começar pela própria Berry.
Entre as coadjuvantes, o quadro é um pouco mais animador. De 2002 a 2013, nove atrizes receberam indicações, com quatro vitórias: Jennifer Hudson (2006), Mo’Nique (2009), Octavia Spencer (2001) e Lupita Nyong’o (2013). Nas últimas duas edições da premiação, no entanto, nenhuma negra foi indicada nas categorias de atuação. Mais do que um sinal da falta de prestígio da Academia com os artistas afrodescendentes, essas estatísticas mostram que, apesar dos avanços, ainda são limitados os papéis para os negros em Hollywood.
“O Oscar é uma premiação ligada à indústria cinematográfica. Filmes de maior investimento e bilheterias muitas vezes tensionam os prêmios mais nobres, como o dos atores e atrizes. É possível dizer, então, que o preconceito começa nas produções”, aponta Deivison. “Os personagens principais dificilmente são negros. Quando isso acontece, os atores e atrizes se repetem. Numa análise mais atenta, sempre aparecem personagens negros, mas os papéis são periféricos à narrativa principal”, completa.
TV VANGUARDA
A televisão, com séries de sucesso estreladas por negros, como Um maluco no pedaço, Eu, a patroa e as crianças e Todo mundo odeia o Chris, teve papel importante em subverter estereótipos (ainda que às vezes pelo uso dos mesmos) e abrir espaço para os intérpretes negros. Mais recentemente, uma nova leva parece provocar uma mudança na forma como, principalmente, as personagens femininas negras são representadas, indicando um possível avanço positivo.
Em Ghost (1990), Whoopi Goldberg encontra enorme sucesso. Foto: Divulgação
O papel que deu a vitória a Viola Davis no Emmy, Annalise Keating, de How to get away with murder, e a série Scandal, estrelada por Kerry Washington, por exemplo, são exemplos de programas com protagonistas fortes, bem-sucedidas e moralmente complexas. Ambos foram escritos por Shonda Rhimes, considerada uma das responsáveis por esse momento de maior protagonismo na TV estadunidense. Outras produções que se destacam pela forma diversa como apresentam as mulheres negras são Orange is the new black, escrita por Jenji Kohan, que também discute outras questões, como gênero, sexualidade e classe; e Empire, atualmente a série mais popular dos EUA, com média de 22 milhões de espectadores, e estrelada majoritariamente por negros.
“A TV, nos EUA, talvez por ser uma mídia mais dinâmica e sensível a mudanças sociais, ou por envolver uma quantidade muito maior de projetos e pessoas, permite que a época de gradual tomada de consciência sobre o racismo que vivemos hoje gere consequências objetivas mais rapidamente”, acredita Carreiro. “A produção televisiva, lá, tende a ser mais multifacetada e interessante do que a produção cinematográfica.”
Apesar de não ser possível apontar com veemência uma transformação profunda do racismo nos filmes e séries, é animador perceber um movimento de inquietação e questionamento dessas barreiras impostas, com grupos de atores, roteiristas, produtores e escritores pressionando por novos caminhos. Para que haja mais e mais Hatties, Violas, Shondas, Halles, Lupitas e Whoopis. Para que elas não sejam exceções.
MÁRCIO BASTOS, jornalista.