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"A zooliteratura tem um enfoque multifacetado"

Com uma produção acadêmica diversa, pesquisadora e escritora Maria Esther Maciel tem se dedicado a um tema ainda pouco estudado no Brasil, a zooliteratura e a zoopoética

TEXTO Gianni Paula de Melo

01 de Janeiro de 2016

Maria Esther Maciel

Maria Esther Maciel

Foto Divulgação

Ao contrário dos acadêmicos que optam pelo caminho rigoroso da especialização única, a professora Maria Esther Maciel aposta em um rigor errante e, no decorrer de sua carreira, já se debruçou sobre diferentes interesses e abordagens da literatura. Conhecida não só pela sua atuação acadêmica, mas também por sua produção literária, Maria Esther publicou livros de poesia, prosa e ensaios. Durante muitos anos, dedicou-se ao estudo dos poetas críticos, com foco na produção do mexicano Octavio Paz.

Desenvolveu ainda pesquisa sobre literatura e cinema, com atenção especial para obra de Peter Greenaway. Recentemente, no entanto, a escritora abraçou uma temática da qual se pode dizer que é pioneira nas universidades brasileiras. Maria Esther iniciou, na pós-graduação em Estudos Literários da Universidade Federal de Minas Gerais, suas pesquisas sobre zooliteratura e zoopoética, que estuda não só os animais na literatura, mas a questão da animalidade e do limite do humano, como vemos nesta conversa concedida à Continente.

CONTINENTE Suas pesquisas mais recentes são identificadas como zooliteratura ou zoopoética. A que se propõem esses estudos?
MARIA ESTHER MACIEL Existe um campo de estudos mais amplo e de caráter transdisciplinar, chamado Estudos Animais, que surgiu nos países de língua inglesa, com uma forte presença na Austrália e nos EUA. Hoje, esses estudos se disseminaram em diferentes países. É um campo que acolhe áreas como Zoologia, Ecologia, Etologia, Filosofia, Ciências Políticas, Antropologia, Direito, Artes e Literatura, entre outros. E que conta com a presença também de ativistas pelos direitos animais. São dois os eixos que sustentam os Estudos Animais: o que concerne ao animal propriamente dito e à chamada “animalidade”, e o que se volta para as complexas e controversas relações entre homens e animais não humanos. No caso da “zooliteratura”, seria um ramo desse campo mais amplo. O termo é bastante recente, tendo sido usado nos estudos que temos realizado aqui nos últimos sete anos. Derrida já havia utilizado o termo “zoopoética” para designar o conjunto dos animais literários disseminados na obra de Kafka. Já o termo “zooliteratura”, embora guarde afinidades inegáveis com o termo derridiano, tem uma abrangência maior, visto que não se circunscreve a um autor e pode designar um conjunto de obras literárias (de um autor, de um país, de uma época) que privilegiam o enfoque de animais.

CONTINENTE Pensar os animais enquanto objeto de estudo literário inscrito em um campo específico parece algo recente. Quando começaram esses estudos regulares?
MARIA ESTHER MACIEL Sim, o interesse por um novo enfoque dos animais na literatura é recente. No Brasil, só há poucos anos essa abordagem passou a ser explorada a partir de um viés mais contemporâneo, afinado com as demandas do mundo de agora. Antes, só havia trabalhos esparsos, que se circunscreviam à visão do animal como símbolo, metáfora ou alegoria do humano. Hoje, felizmente, já existe um enfoque mais multifacetado da questão, que incorpora saberes advindos de outras áreas do conhecimento. Cada vez mais, a questão dos animais na literatura se afina com as discussões contemporâneas sobre os conceitos de humano, humanidade, animal e animalidade, à luz dos problemas ecológicos, filosóficos, políticos e econômicos do nosso tempo. Antes, o interesse pela presença do animal na literatura era predominantemente voltado para a análise textual.

CONTINENTE Quais estudiosos já haviam se ocupado desta temática e servem de embasamento para as novas reflexões literárias?
MARIA ESTHER MACIEL Estou certa de que Michel de Montaigne foi o pioneiro, ainda no século 16, dessa visão mais avançada sobre a questão dos animais, embora um ou outro filósofo anterior tenha tratado disso de forma mais esparsa. Os ensaios Da crueldade e Apologia de Raymond Sebond, de Montainge, são uma referência inicial importante, não apenas para as tentativas recentes de reconfiguração do conceito de humano, como também para o debate contemporâneo sobre as políticas da vida. Ele questionou a superioridade do homem em relação às demais espécies, além de ter discutido as relações éticas entre homens e animais. Suas ideias foram fundamentais para filósofos como Jaques Derrida, assim como para escritores como Machado de Assis e o sul-africano J.M. Coetzee, que escreveu romances magníficos em torno dessas questões, como Desonra e A vida dos animais. No Brasil, podemos citar Benedito Nunes, que foi um dos primeiros a articular, de forma interessante, literatura, filosofia e antropologia para a abordagem da relação entre humanos e animais. Outro nome é Eduardo Viveiros de Castro, que inaugurou uma instigante linha de pensamento no trato do tema da animalidade, sob o prisma das culturas ameríndias. Contos como Meu tio, o Iauretê, de Guimarães Rosa, ganham uma nova leitura à luz dessas contribuições do pensador brasileiro.

CONTINENTE Quais as contribuições específicas que a literatura pode oferecer para este debate contemporâneo?
MARIA ESTHER MACIEL As contribuições da literatura são enormes. Basta citarmos a obra de Coetzee para que isso se justifique. É o autor contemporâneo mais empenhado em empreender, por vias complexas e sem dicotomias, esse debate. Nos livros que mencionei, ele trata do tema dos animais e das relações entre humanos e não humanos por meio de inventivas estratégias narrativas, levando a discussão também para os campos da ética e da política. No romance Desonra, por exemplo, ele evidencia de forma explícita a condição “à margem da margem” ocupada pelos animais na África do Sul pós-apartheid, um país com graves problemas de desigualdade social e conflitos raciais, onde os viventes não humanos representam o último grau na escala de relevância para a nação e, portanto, podem ser submetidos a todas as atrocidades possíveis por todos os homens. São seres radicalmente desgraçados, que vivem em extremo estado de penúria, ao mesmo tempo em que recebem de alguns personagens da trama manifestações contraditórias (e rarefeitas) de compaixão. Coetzee também incursiona nessa problemática em romances como Infância e Diário de um ano ruim, entre outros. No Brasil, o traço biopolítico já se pode ver em contos e crônicas de Machado de Assis.

CONTINENTE Você observa certa rejeição a este campo de estudo no ambiente acadêmico?
MARIA ESTHER MACIEL No início, percebi uma certa resistência. Às vezes, algumas pessoas reagiam, com ironia, ao tema de minha pesquisa, que foi iniciada por volta de 2008. Mas, na medida em que esses estudos foram ganhando notabilidade nos centros estrangeiros mais importantes e se expandindo no mundo, o preconceito por aqui começou a arrefecer. Hoje, percebo um interesse crescente dos brasileiros por esse campo de estudos, em várias áreas das ciências humanas.

CONTINENTE No âmbito da produção literária brasileira, Machado de Assis antecipa essa preocupação?
MARIA ESTHER MACIEL Digo que Machado de Assis é o grande precursor desse enfoque dos animais e das relações humanos/não humanos na literatura brasileira, sob um enfoque biopolítico. Acho que foi um “pós-humanista” por antecipação. Ele dedicou memoráveis contos, crônicas e passagens de romances à condição dos animais num mundo dominado pela ciência e pelo triunfo do racionalismo moderno. Foi também um dos primeiros escritores nacionais a abordar ferinamente a crueldade das práticas de vivissecção comuns nos laboratórios científicos do tempo (cito o Conto alexandrino como um exemplo), a se manifestar contra as touradas e a exploração da força animal no trabalho, além de ter manifestado sua simpatia pelas sociedades protetoras de animais. Vale mencionar também sua visão irônica sobre as filosofias humanistas amparadas na noção de racionalidade. Isso fica explícito em Quincas Borba, em que Machado não apenas embaralha as noções de humanidade, animalidade e loucura, como também os limites entre homem e cão, considerando que o nome Quincas Borba nomeia tanto o cão quanto o seu dono. É uma postura “cínica”, no sentido filosófico dessa palavra.

CONTINENTE Quando se fala em animais e literatura, é impossível não pensar em uma personagem como Baleia, de Graciliano Ramos. Antes da popularização dos Estudos Animais na literatura, esse personagem já chamava a atenção neste contexto. Continua a ser um livro pertinente para a zooliteratura?
MARIA ESTHER MACIEL Sim,Vidas secas é um livro fundamental para a zooliteratura. Até hoje, muita gente teima em caracterizar a cachorra Baleia como um animal humanizado, como se as qualidades emocionais, comportamentais e cognitivas que ela apresenta enquanto personagem fossem atributos exclusivos dos humanos e impróprias para caracterizar um animal não humano. Discordo dessa visão. As pessoas ainda sentem uma grande dificuldade em aceitar que o comportamento animal seja complexo e cheio de nuances. Por isso, não admitem que ele possa ser capaz de gestos de grandeza, de sentimentos elevados, demonstrações de solidariedade, compreensão do mundo e saberes sobre a vida. Baleia não é, a meu ver, humanizada, antropomorfizada. Se, no romance, ela tem traços que lembram os humanos, e os humanos têm traços animais, é porque o escritor trata os mundos humano e não humano como feitos de porosidade, que, quando em contato próximo, se contaminam reciprocamente. Nesse sentido, digo que a humanidade de um personagem se confunde com a animalidade do outro, independentemente da espécie a que pertencem. E é nesse sentido que não se pode afirmar categoricamente uma antropomorfização de Baleia. Uma coisa é o escritor vestir o animal com roupas, dar-lhe hábitos, profissões e valores de gente, como nas fábulas e nos desenhos animados; outra é conferir-lhe capacidade de sofrer, solidarizar-se, ter emoções, demonstrar medo, lutar pela própria vida e exercitar sua inteligência, como é o caso de Baleia.

CONTINENTE Em outra direção, se pensarmos em um livro como Metamorfose, é possível falar em certa “animalização” do homem? De que forma Kafka deu sua contribuição para a reflexão da animalidade?
MARIA ESTHER MACIEL Penso que a novela A metamorfose, de Kafka, é um marco para o surgimento de uma linhagem literária voltada para os processos de identificação/entrecruzamento de humano e não humano, sob um viés crítico, capaz de desestabilizar as bases do humanismo antropocêntrico. Gregor Samsa é um homem que, de repente, passa a viver uma condição híbrida de humano e inseto ao mesmo tempo, numa perspectiva bastante paradoxal. Ele se torna um inseto, mas não deixa de se manter humano. E é essa situação absurda que torna tudo um grande pesadelo. É também ela que revela a dimensão animal do humano.

CONTINENTE Quais outros autores, além dos já citados, também se destacam por suas apropriações e seus interesses pelos animais?
MARIA ESTHER MACIEL A lista é muito longa. Costumo dizer que os animais nunca deixaram de se inscrever no imaginário literário do Ocidente (e do Oriente também). Daí ser possível, em certa medida, extrair da história da literatura também uma história dos animais. Nesse vastíssimo repertório, podemos destacar alguns nomes internacionais da literatura moderna e contemporânea, como os norte-americanos Jack London, Patricia Highsmith e Gary Snyder, os hispano-americanos Jorge Luis Borges, Julio Cortázar, Augusto Monterroso, Juan José Arreola e José Emilio Pacheco, os portugueses Herberto Helder, Miguel Torga e Luíza Neto Jorge, o francês Jacques Roubaud, o inglês Ted Hughes, a australiana Eva Hornung, entre muitos outros. No Brasil, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Carlos Drummond, João Alphonsus, Manoel de Barros, Wilson Bueno, Astrid Cabral, Nuno Ramos, Regina Redha, entre vários, destacam-se como os nossos principais “animalistas”. Todos eles, autores que se voltaram para os animais tomados como animais, subtraídos da carga alegórica e metafórica que a tradição das fábulas e dos bestiários antigos depositou sobre o mundo zoo. São escritores que veem os animais como sujeitos, seres dotados de inteligência, sensibilidade e saberes sobre o mundo, como também exploram literariamente as relações entre humanos e não humanos, humanidade e animalidade. Os mais contemporâneos, inclusive, não deixam de pensar a questão a partir de preocupações ecológicas e éticas, decorrentes não só de uma série de catástrofes ambientais que passaram a assolar o planeta, mas também da tomada de consciência mais efetiva dos problemas éticos que envolvem a nossa relação com os animais e com o próprio conceito de vida e de humanidade.

CONTINENTE De que forma a aproximação deste tema dialoga com a sua produção literária recente? É possível observar a presença do mundo animal, por exemplo, em O livro de Zenóbia. Gostaria que falasse um pouco da abordagem da temática animal a que você se propõe na criação literária.
MARIA ESTHER MACIEL Sempre busco relacionar minhas pesquisas acadêmicas com o meu trabalho literário. Agora, com essa investigação sobre animais na literatura, tenho tentado também escrever alguns textos ficcionais afinados com o tema. Em O livro de Zenóbia, como você disse, já existe essa aproximação. Em O livro dos nomes, também. Vale dizer que incluí um personagem canino nesse livro, chamado Xavier – um cão vira-lata que assiste ao suicídio do dono e morre de culpa. Há vários outros animais no livro, de forma mais esparsa. Já no meu livro de crônicas, A vida ao redor, publicado há poucos meses, incluí uma grande quantidade de textos sobre animais (principalmente cães). Tenho ainda o projeto de um “animalário”, ou seja, um livro só com narrativas animais, em parceria com um amigo escritor. 

GIANNI DE PAULA MELO, jornalista e graduanda em Licenciatura em Língua Portuguesa na Universidade Federal de Pernambuco.

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