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“Fiz filmes ruins, mas nunca tive uma experiência ruim”

Geraldine Chaplin, mais famosa dos filhos de Charles Chaplin, esteve no Brasil e falou à Continente sobre o início da carreira, a influência do pai, os papéis que atuou e os diretores favoritos

TEXTO Luciana Veras

01 de Dezembro de 2015

Geraldine Chaplin

Geraldine Chaplin

Foto Mário Miranda Filho/Agência Foto/Divulgação

A lista de filmes, minisséries e produções televisivas das quais consta seu nome é extensa: segundo o Internet Movie Database/IMDB, Geraldine Chaplin possui 145 créditos de atuação. E um sobrenome que a define sem limitá-la. Mais velha dos oito filhos de Charles Chaplin (1889–1977) e Oona O’Neill (1925–1991), ela poderia ter sido batizada com uma controversa homenagem, se fosse feita a vontade do pai. “Nasci em 1944, quando os russos estavam avançando na Segunda Guerra Mundial. Meu pai era fã de Stalin e quis colocar meu nome de Staline. Ainda bem que minha mãe o convenceu, alegando que eu talvez tivesse alguns probleminhas na escola”, revelou à Continente durante uma agradável conversa em uma manhã de outubro.

Era um dos raros momentos em que ela não estava dentro de uma das salas de exibição da 39ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, da qual participou como membro do júri. “Vivo em Corsier, uma pequena cidade na Suíça, onde não existem cinemas. Na cidade mais próxima, só passam as grandes produções americanas. Odeio ver filmes na televisão. Portanto, adoro ser jurada em festivais, para ver muitos deles”, comentava, entre um sorriso e outro, com um par de óculos escuros comprados em Miami, uma blusa das Tartarugas Ninja e meias coloridas que ela fez questão de mostrar ao término da entrevista, numa postura alongada de corpo.

Tal elasticidade, herança dos anos dedicados à dança clássica, é equiparável à versatilidade que essa intérprete de icônicas figuras femininas demonstra em cena. Geraldine Chaplin foi Tonya, em Doutor Jivago (David Lean, 1965); a mãe e a protagonista adulta, em Cria cuervos (1975); a personagem de Elisa, minha vida (1977) e outras tantas mulheres escritas por Carlos Saura, com quem foi casada por 12 anos; senhora Welland, em A época da inocência (Martin Scorsese, 1993) e a professora Katerina Bilova, em Fale com ela (Pedro Almodóvar, 2002) – que profere a última frase do filme, “nada é por acaso”. De fato, nada foi por acaso na trajetória dessa filha, mãe, avó, talentosa e bem-humorada atriz.

CONTINENTE Você retornou ao Brasil para ser jurada na 39ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Como se sente tendo esta missão?
GERALDINE CHAPLIN Eu não gosto de julgar os filmes, mas amo vê-los. E a única oportunidade de assistir a bons de verdade é como jurado em algum festival. Primeiro, porque o único lugar para ver trabalhos bons, de fato, são os festivais. Mas, se você vai a um festival promovendo um filme, não vê nada. Como membro do júri, sim, você tem a chance de assistir a excelentes obras e depois surge o inevitável, a “morte”: você precisa julgá-las! Em São Paulo, foi muito bom, porque se tratava de primeiros e segundos longas – ou seja, você ia com o olhar virgem, sem saber o que encontrar. Adoro isso, pois não há ideias preconcebidas. Se você vai ver um filme de Atom Egoyan, ok, você sabe o que vai esperar. Mas, nesses casos, não, e é muito bom poder ser surpreendida.

CONTINENTE O que levou você a querer se tornar atriz? A rotina de casa, talvez?
GERALDINE CHAPLIN A preguiça! (risos). Eu queria ser uma bailarina. Estudei dança clássica e era uma excelente bailarina – na minha cabeça, claro! O corpo, na verdade, não seguia, o que é apenas um “pequeno” problema se você dança (risos). Na minha mente, eu era Margot Fontaine.

CONTINENTE Quanto tempo estudou?
GERALDINE CHAPLIN Estudei e trabalhei como profissional da dança em Paris. Cheguei a participar de balés como Cinderella, mas aí a companhia quebrou, não foi por minha causa, pode ficar tranquila (risos). Arranjei um trabalho aqui, outro acolá, e me dei conta de que não queria voltar para casa. Pensei: bem, eu poderia ser atriz. Tenho um bom sobrenome, acho que vai ser fácil. E foi mesmo. Quando disse que queria ser atriz, no dia seguinte, já tinha um agente. E ele disse que meu primeiro filme tinha que ser com (Jean-Paul) Belmondo, uma grande estrela na época. Então, meu primeiro filme foi com ele (O preço de um resgate, de Jacques Deray, de 1965).

CONTINENTE E, logo depois, você já era Tonya em Doutor Jivago?
GERALDINE CHAPLIN É, mas aquilo ali foi mais sorte. David Lean viu uma foto minha na capa de uma revista feminina que ele, muito provavelmente, nunca veria, exceto pelo fato de que estava num avião. Ele olhou e disse “hum, olhe para esse rosto, ela parece russa, talvez pudéssemos fazer um teste com ela… oh, é a filha de Charlie Chaplin!”. Lá fui eu e achei tudo tão fácil. Durante as filmagens de Doutor Jivago, fui me apaixonando pela profissão. Continuei me encantando, quando comecei a trabalhar com Carlos Saura. Vi que nada seria tão fácil, mas que seria sempre fascinante, pois era, como ainda é, o estudo dos seres humanos.

CONTINENTE Você nunca deixa de ser atriz, não é? É um pouco como ser jornalista: a pessoa está sempre observando.
GERALDINE CHAPLIN É isso mesmo, é completamente similar a ser jornalista. Eu tenho sorte de, vez por outra, passar um tempo nos Estados Unidos. Meu filho hoje mora em West Virginia, mas morou em Miami, então vamos sempre lá visitar o fantasma dele (risos). Bem, em Miami, se você tem mais de 24 anos, é invisível. Apesar disso, adoro aquela cidade, onde tudo é tão exagerado, tão falso, tão irreal. E, como na minha idade sou invisível, posso sentar e apenas observar. Assim, “roubo” coisas das pessoas – o modo como elas falam, gesticulam, interagem.

CONTINENTE Mas lá você não é reconhecida?
GERALDINE CHAPLIN Não, não muito. Sou reconhecida se quiser. Eu coloco minha maquiagem e minhas camisetas… Na verdade, todas as senhoras de Miami se parecem comigo: nós somos velhas, nós usamos muitas cores! Lá, descobri que todas as pessoas velhas se vestem sempre com muitas cores. Quando você é jovem, se veste de preto. Quando se é velho, se enche de cores. Então, em Miami, posso apenas observar e roubar atitudes, o gestual, a maneira de se expressar. Olho para o modo como um homem coça a sua cabeça e penso que posso usar aquilo em algum filme. Coloco tudo isso numa espécie de banco e, na maioria das vezes, devo dizer, esqueço tudo. Mas, algumas vezes, acesso esse cofre e uso o material para compor meu personagem.


Geraldine em cena de Doutor Jivago. Foto: Divulgação

CONTINENTE Falando em roubar, tem algo que você roubou do seu pai? De que maneira se parece com ele?
GERALDINE CHAPLIN Minha filha, Oona, tem uma resposta fantástica para essa pergunta. Como sempre indagam a ela “o que você acha que herdou do seu avô?”, ela normalmente responde: “o bigode, mas acontece que eu depilo o meu!” (risos). Acho que essa é a melhor resposta. Nunca poderia fazer melhor! Costumava responder “os dentes”, na verdade (risos).

CONTINENTE De que maneira o cinema de hoje difere de quando você começou a atuar?
GERALDINE CHAPLIN Eu acho que o embrião de um cinema realmente novo e fantástico está na América Latina. Vi tanto talento por aqui. E, sim, as coisas mudam. As locações são diferentes, os orçamentos ficaram menores, a linguagem se transformou – está muito mais rápida agora. Eu não percebo isso, mas, se eu for ao cinema com a juventude, eles vão dizer que um filme como Doutor Jivago é muito devagar. A linguagem mudou, mas o principal, o que não muda nem nunca mudará é que há bons diretores e péssimos diretores. E hoje tudo tem a ver mais com quanto dinheiro se consegue ter em uma semana, com essa indústria dos bilhões. Também acredito que existem poucos produtores com cojones para fazer algo porque querem fazer e não porque pode vender ou dar retorno. Faltam produtores assim.

CONTINENTE Entre os cineastas com quem trabalhou, quais são os seus favoritos?
GERALDINE CHAPLIN Bem, na Mostra de São Paulo, eu vi um filme que me impressionou muito: Limite, uma obra brasileira famosa, feita em 1930. Nunca tinha visto algo tão bonito. Saí daquela sessão pensando que não há mais nada para ninguém aprender. Está tudo lá. Como alguém consegue fazer um filme daquele com apenas 21 anos? Na verdade, eu queria estar nele, ter feito parte dele. Então, Mário Peixoto é o meu diretor favorito. Adoraria trabalhar com ele (risos). Existem, claro, alguns diretores que admiro muito: Robert Altman, Carlos Saura, Alan Rudolph, Pedro Almodóvar, que é um diretor maravilhoso… Mais recentemente, os incríveis dominicanos Laura Amelia Guzmán e Israel Cárdenas, com quem trabalhei em Dólares de areia (2014).

CONTINENTE E seus papéis mais icônicos? Quais seriam seus personagens prediletos?
GERALDINE CHAPLIN Não saberia responder, porque não vejo tanto meus trabalhos. Eu fiz um monte de filmes ruins, mas nunca tive uma experiência ruim, sabe? Toda vez que faço um filme, tenho a impressão de que é o melhor a ser feito… Normalmente, estou errada! (risos). Mas isso ajuda muito. Eu fico acreditando totalmente que aquele filme vai mudar o mundo. Depois, não muda, mas tenho que acreditar nisso.

CONTINENTE Mas não seria essa crença fundamental para se trabalhar ou mesmo viver?
GERALDINE CHAPLIN Sim, claro. Uma vez meu pai disse para mim, quando eu era uma bailarina, e foi o único conselho que ele me deu – porque, como atriz, ele nunca me aconselhou, é bom lembrar. Mas, quando eu ainda dançava, ele me escutou reclamando da vida e me disse: “Escute, quando subir ao palco, você tem que acreditar que é Margot Fontaine. Se você não fizer isso, ninguém mais vai acreditar em você. Você não vai conseguir que ninguém acredite nisso. Acredite: você é a melhor bailarina do mundo”. E foi o melhor conselho que recebi. Porém, nunca pude colocá-lo em prática enquanto dançava, porque eu era realista demais. Mas, na verdade, você tem que acreditar, pois assim pode trapacear a plateia. Tem uma grande história, que Ralph Richardson contou, que considero a melhor lição de atuação. Ele estava sentado no parque e viu um coelho e uma raposa. O coelho avistou a raposa e, quando a raposa começou a se aproximar, escondeu-se atrás de uma lâmina de grama. E a raposa não viu. Isso é atuar, segundo Richardson.

CONTINENTE E os papéis que mais a desafiaram?
GERALDINE CHAPLIN Acho que o mais desafiador foi interpretar Madre Teresa de Calcutá (no filme Mother Teresa: In the name of God’s poor, de Kevin Connor, de 1997). Ela estava viva, todo mundo sabia como era, como se comportava, e a verdade é que eu não parecia em nada com ela. Mais recentemente, foi um desafio fazer Me and Kaminski, de Wolfgang Becker. Era um papel pequeno, mas estranho, porque não se sabe se a personagem tem Alzheimer ou se alguma outra condição clínica, mas o fato é que ela não se lembra direito das coisas. Parece um computador quebrado. Foi muito desafiador, porque não havia parâmetros. Tive que inventar tudo, claro que com o auxílio de um diretor extraordinário. Fora que o filme é falado em alemão e não falo nenhuma palavra de alemão. Aprendi tudo foneticamente. Mas aí chego no set e Wolfgang diz: “Está perfeito, um ótimo alemão, mas quero um sotaque francês” (risos).

CONTINENTE Por último, e tenho certeza de que é uma pergunta que lhe fazem com frequência: qual é o seu filme favorito de Charles Chaplin?
GERALDINE CHAPLIN Ah, não me incomodo com essa pergunta! Geralmente, o que mais gosto é o último que vi. Mas, com o passar do tempo, virou O garoto (1921). As pessoas diziam que era impossível misturar comédia-pastelão e drama. E meu pai disse “nada disso, é possível, sim”. E foi lá e fez O garoto. E Jackie Coogan, aquele menino, com aquele olhar… Amo aquele filme. Você sorri, se diverte, depois se emociona, se preocupa, aí chora… Como na vida. 

LUCIANA VERAS, repórter especial da revistra Continente.

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