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Memória: A poesia contida no documento

Fotografias produzidas por Benicio Dias, entre 1930 e 1950, documentam o Recife e arredores em momento de radical transição urbanística

TEXTO ADRIANA DÓRIA MATOS E MARIA EDUARDA BARBOSA

01 de Dezembro de 2015

Em 1940, calçada e parte da fachada do elegante Grande Hotel, que hospedou artistas e figurões

Em 1940, calçada e parte da fachada do elegante Grande Hotel, que hospedou artistas e figurões

Foto Benicio Dias/Reprodução

Fotografias podem ser como crônicas escritas com luz, uma mistura de documento e poesia. Em sua Evocação do Recife, Manuel Bandeira “documenta” com saudosismo o Recife do cotidiano, das ruas e da natureza, numa construção na qual memória e imaginação tomam conta do leitor. As fotografias, mesmo aquelas feitas com fins documentais, podem também ser habitadas pela poesia, ao trazer histórias sobre os elementos retratados. Contribuem à formação da nossa identidade, fortalecem nossa imaginação e nos emocionam. Ao fotografar o cotidiano, Henri Cartier-Bresson realizou crônicas visuais sobre situações banais que se tornaram ícones de sua época.

Numa frase colhida pelo seu filho Sergio Benicio Whatley Dias, o fotógrafo recifense Benicio Dias (1914 – 1976) afirma que “ao longo da vida existem coisas das quais tomamos conhecimento e outras as quais reconhecemos” e que, estas últimas, “já habitam nossa alma desde sempre”. Suas imagens, assim como tantas que hoje fazem parte do nosso repertório visual, podem ser lidas de modo poético, imbuídas que estão da passagem do tempo. Diante de suas fotografias, contemplamos aquilo que reconhecemos – no caso, o Recife e seus arredores – como coisa que “habita a nossa alma desde sempre”, ainda que muito do que se inscreve nas imagens tenha desaparecido irremediavelmente.


Obras de construção da Ponte Duarte Coelho também ocorreram na década de 1940.
Foto: Benicio Dias/Reprodução

Com o lançamento de Benicio Dias – Fotografias (Cepe Editora), que ocorre no dia 10 deste mês, no campus de Casa Forte da Fundação Joaquim Nabuco, os leitores terão oportunidade de observar um conjunto mais adensado do acervo do fotógrafo e aferir o caráter ao mesmo tempo documental e artístico de sua produção. A seleção das imagens – que abrangem duas décadas, de 1930 a 1950 – foi feita em parceria por Albertina (Betty) Lacerda Malta e Rita de Cássia Barbosa de Araújo, historiadoras e pesquisadoras da Fundação Joaquim Nabuco, que salvaguarda um arquivo de 2.392 documentos doados pelo próprio Benicio Dias (entre cópias fotográficas impressas, negativos em nitrato, acetato e vidro, documentos bibliográficos e textuais). Além de fotos de sua autoria, o acervo doado por ele à instituição abrange imagens de várias épocas (situadas entre 1870 e 1950), inclusive de fotógrafos como Constatino Barza, J.J. de Oliveira e Francisco du Bocage (e mesmo de autores não identificados), conjunto que aponta para o seu perfil colecionista e seu interesse pela memória iconográfica do Recife.

“A cidade é sempre objeto de interesse na fotografia”, comenta José Afonso Jr., fotógrafo e professor da UFPE, ao analisar as obras de três grandes profissionais que fazem parte da história da fotografia de Pernambuco: Alcir Lacerda, Alexandre Berzin e Benicio Dias. As obras deixadas por eles se constituem em verdadeiros documentos-poesias acerca do Recife. “Seu Alcir tem um acervo maravilhoso, que registra a praia, o Bairro de Boa Viagem, a modernidade chegando à cidade. Benicio apresenta uma linha mais do planejamento urbanístico na primeira metade do século 20 e Berzin traz a questão do estranhamento, no sentido de estar se encontrando com algo inédito para ele”, compara Afonso. Parte do trabalho de Alcir Lacerda e do letão radicado no Brasil Alexandre Berzin encontra-se em dois livros publicados pela Cepe, sendo o lançamento agora deste volume dedicado a Benicio Dias uma continuação do projeto da editora de organização de obras acerca de importantes acervos de Pernambuco.


Benicio Dias também registrou o desaparecimento de vários trechos do Recife.
Foto: Benicio Dias/Reprodução

Mais do que as fotografias de Lacerda e Berzin, as imagens de Benicio explicitam o momento de grandes reformas urbanísticas por que passava o Recife. O cenário registrado por ele aponta os contrastes de uma província buscando tornar-se urgentemente uma metrópole, assim como vinha ocorrendo em outras cidades do Brasil, sendo a capital federal de então, o Rio de Janeiro, a síntese desse projeto de desenvolvimento nacional, cujo modelo era a Paris das grandes avenidas e bulevares idealizada por Haussmann ainda no século 19. (A história nos conta, lembremos, que a reconfiguração da Île de la Cité, o “miolo” de Paris, respondia sobretudo a estratégias militares de debelação de barricadas e outras insurgências populares.)

FOTOS CONTRATADAS
Na apresentação que escreveu para Benicio Dias – Fotografias, a historiadora Rita de Cássia Barbosa de Araújo faz apontamentos significativos sobre a motivação à produção desses registros por parte de Benicio, que trabalhou – como fotógrafos de várias gerações até hoje – sob demanda de órgãos do governo, o que acaba por direcionar uma interpretação de mundo por parte deles, já que estão a serviço de, e não fotografando livremente, quando se é possível expor subjetividades e eventuais críticas. No caso de fotógrafos contratados institucionalmente, o que prevalece, na maioria dos casos, são o virtuosismo técnico e a capacidade de realização e execução de tarefas com competência, vindo em segundo plano o valor artístico do material produzido.


Retrato do estivador Nascimento, no Cais do Apolo, anos 1940. 
Foto: Benicio Dias/Reprodução

Um dos contratantes de Benicio Dias, por exemplo, foi a Diretoria de Estatística, Propaganda e Turismo da prefeitura do Recife, criada em 1939, como nos relata Rita de Cássia, “em consonância com os princípios do Estado Novo de dar agilidade, tecnicidade e racionalidade à máquina estatal – mas também, tornemos claro, de produzir informações e de exercer o controle sobre os conteúdos, os meios e as formas de expressões da população em geral –, a Dept visava, entre outros objetivos, produzir, acumular e divulgar dados estatísticos sobre a cidade, como também estimular o desenvolvimento do turismo e produzir, acumular e tornar acessível aos ‘amigos do Recife’ um significativo acervo histórico-documental sobre a capital pernambucana”.

Essa estética visual mais propagandística se evidencia em fotografias como as que compõem o capítulo Velhas e novas visões do Recife, em que Benicio fotografa escolas, salas de aulas, laboratórios, alunos em filas recebendo merenda. Nesse conjunto, entretanto, as imagens das reformas urbanísticas por que passou o Recife, quando partes inteiras de seu patrimônio construído foram ao chão para “dar vez ao progresso”, estabelecem um embate entre aquilo que está sendo destruído e o “vazio” deixado. É possível que a edição das imagens nos leve a esse tipo de interpretação, mas não há como não supor o conflito vivido pelo próprio Benicio Dias diante de tantas ruínas e desaparecimentos.


O fotógrafo documentou trabalhadores urbanos e rurais, feirantes e artistas populares. 
Foto: Benicio Dias/Reprodução

Para o professor José Afonso Jr., “toda fotografia é uma ruína, no sentido de que ela dispara um aspecto de memória. Alegoricamente, podemos dizer que a fotografia documental é uma ruína”. Esse conjunto de fotos de Benicio sobre as demolições nos remete imediatamente às discussões contemporâneas sobre as novas configurações do Recife, sobre as ruínas de hoje.

Num outro trecho de sua apresentação, Rita de Cássia assim descreve a tarefa empreendida pelo fotógrafo: “Benicio Dias fotografou paciente e cuidadosamente os passos que iam sendo dados para a execução da reforma no Bairro de Santo Antônio. (…) Capturou os inquietantes vazios deixados pelas demolições de tantos e diversos artefatos urbanos e arquitetônicos. Não deixou escapar aos olhos os gritantes contrastes que surgiram na paisagem recifense. Deixou testemunhos visuais do progresso que se acreditava haver, enfim, aportado na capital regional do Nordeste. (…) Não documentou, porém, a vida de miséria dos ‘homens caranguejos’ nem as ações governamentais de derrubada dos mocambos. Esses aparecem distanciados nas fotos”.


Foto: Benicio Dias/Reprodução

A respeito dos limites impostos a quem saía fotografando pelo Recife naquela época, a historiadora ressalva que fotografar sob a repressão e o autoritarismo do Estado Novo podia ser um ato de vulnerabilidade, pois se estava sob vigilância e controle policial. Citando A construção da verdade autoritária, de Maria das Graças Andrade Almeida, Rita de Cássia lembra que se tornou comum, naquelas décadas, a prisão de turistas que fotografavam aquilo considerado abjeto, como ambientes “feios e sem higiene”.

Além de fotografar situações arquitetônicas e urbanísticas – sob as quais podem se ocultar, como vimos, pressões não reveladas pelo simples contemplar poético ou crítico das imagens –, Benicio Dias também fotografou gentes. O último capítulo do livro, Tanta coisa de sim para quem vive do não, leva o leitor às feiras públicas, aos produtores artesanais, aos artistas populares. Assim como nas demais imagens que compõem este título, está ali exposto o apuro técnico e composicional do fotógrafo, que dominava o equipamento e a linguagem fotográfica, com belos enquadramentos e iluminação. Benicio Dias foi, portanto, um fotógrafo moderno, que nos traz hoje, com sua fotografia bem-realizada, uma leitura poética e algo nostálgica de um Recife gravado na memória da alma, já que boa parte dele desapareceu com os escombros das reformas. 

ADRIANA DÓRIA MATOS, editora-chefe da revista Continente.
MARIA EDUARDA BARBOSA, estudante de Jornalismo e estagiária da Continente.

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